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A “carta” pela Democracia: quem assina não entende!

por Pedro Badô e Wesley Sousa

Na quinta-feira, 11/08, alardeou-se, por todos os meios, a carta em defesa da democracia escrita pelos professores da Faculdade de Direito da USP – à qual foi anexada também um outro documento, mas este escrito pela Federação da pomposa burguesia paulista. As assinaturas da carta uspiana ultrapassaram a marca de um milhão. O documento encabeçado pelos professores se cobre com as vestes da Carta aos brasileiros de 1977, elaborada e lida pelo professor, e integralista, Goffredo Telles, apoiador – arrependido àquela altura – de primeira hora dos generais golpistas de 1964, a quem ofereceu a redação de uma nova Constituição de caráter “corporativista” – um eufemismo comum para referir-se a inspirações fascistas.

Mas a atual carta não esconde a que veio. Apoiada por candidatos à presidência, como Lula (PT), Ciro (PDT) e Tebet (MDB), além de outros políticos, empresários, banqueiros, artistas, juristas – e por qualquer outra coisa que possa ser chamada de “integrante da sociedade civil” –, a leitura pública do texto teve clima de festa, mas de festa reservada, pois o acesso ao evento foi limitado a pouco mais de 1.200 pessoas. A carta de alguns parágrafos não diz nada. Seu anunciado e virtuoso objetivo de ser ampla e reunir todos os interesses em defesa da democracia a tornam vazia de conteúdo.

Nas últimas pesquisas eleitorais, se vê o parco efeito prático da “defesa da democracia”. Em São Paulo, Bolsonaro, que não para em sua escala retórica de autoritarismo, aumentou a vantagem em sete pontos percentuais entre os evangélicos, cinco pontos entre os homens e doze entre os que recebem o Auxílio Brasil. Essas são algumas das principais explicações para o avanço das intenções de voto no estado mais populoso do país.

Claro, números são números e sua interpretação, por assim dizer, é linguística. Mas não se pode negar o que opera de fato dentro da cabeça do povo: a ideologia. Como comentou um amigo nosso, todo santo dia um figurão manda um recado contra o comunismo e a “ideologia de gênero”. Sobre a terra arrasada da miséria material e espiritual, erguem-se palanques nas periferias, seja nas igrejas, seja nas rádios locais. Operam onde há gente pobre, negra e que está fora do acordo “democrático”. Vemos, por outro lado, os senhores guardiões da democracia nos gabinetes...

É preciso entender que em um país no qual quase a metade da população passou a viver apenas para buscar comida, onde um terço está desempregada e que a grande maioria do povo tem empregos que são sublocações e “bicos” – os freelas –, refletir o medo imposto pela extrema-direita em uma pauta tão vazia como é a “defesa da democracia” é um tremendo tiro no pé.

Antes que o leitor nos acuse se sectários, cabe dizer que o marxismo, frente à ameaça reacionária, sempre esteve pela defesa de garantias democrático-liberais, principalmente no que se refere aos interesses das massas populares. Lênin, por exemplo, não tinha dúvida de que quanto mais democrático for o regime estatal, mais claro será para os operários que a raiz do mal é o capitalismo, não a falta de direitos. Em seu embate com os “internacionalistas abstratos” – para os quais os marxistas não deveriam, em nenhuma hipótese, defender a autodeterminação dos povos colonizados –, Lênin condena o crasso erro do economicismo, o qual se baseia na crença de que apenas a luta pelas pautas econômicas e proletárias “puras” poderia levar à revolução socialista. Grosso modo, segundo Lênin – para quem a autodeterminação nacional é mais um entre outros direitos democráticos –, não era possível afirmar como regra geral que as lutas democráticas servem apenas ao campo burguês, sendo necessário analisar em cada caso concreto em que medida haveria contradições a serem exploradas entre os interesses do capital e a vigência da democracia, e até que ponto uma luta democrática pode beneficiar ou não o proletariado. Em geral, democracia política é apenas uma das formas possíveis de superestrutura sobre [above] o capitalismo (embora seja, em teoria, o normal para o capitalismo ‘puro’)”, pois o capitalismo e o imperialismo se desenvolvem no contexto de qualquer forma política e subordinam a todas. É, portanto, erro teórico elementar falar das ‘impraticabilidade’ de uma das formas e de uma das exigências da democracia, dizia o velho bolchevique.

A questão da democracia, portanto, não pode ser tomada abstratamente. Quem dirá que a guerra sanguinária impetrada pelo Estado brasileiro contra a população negra não é um problema, em muitos níveis, democrático? Quem dirá que a perseguição, a marginalização e o despreparo no entendimento médico da população trans e travesti não é um problema democrático? Para ficarmos com Lênin, “quanto mais completa for a liberdade de divórcio mais claro será para a mulher que a fonte da sua ‘escravidão doméstica’ é o capitalismo e não a falta de direitos”. E portanto, a nós, marxistas, cabe dar cabo das eventuais lutas democráticas de maneira revolucionária, pois seria uma bobagem voluntarista erguer artificialmente uma muralha da China, parafraseando Lênin, entre as demandas democrático-burguesas e aquelas de caráter proletárias, revolucionárias e emancipatórias.

Mas ainda cabe chamar atenção para o fato de que Lênin escrevia em um momento em que grande parte do mundo – nas colônias e até mesmo na Rússia – as relações sociais capitalistas conviviam com antigos modos de produção, com antigas classes sociais – nobreza, um imenso e diverso campesinato e até sistemas de castas. Se em muitos locais do globo a luta por repúblicas democráticas cumpriu papel progressista do ponto de vista do proletariado mundial, Lênin também apontava – principalmente em relação à Europa Ocidental – que a “onipotência da ‘riqueza’ funciona, portanto, melhor em uma república democrática, uma vez que não depende de determinados defeitos do mecanismo político, do mau invólucro político do capitalismo. A república democrática é o melhor invólucro político possível para o capitalismo; por isso, o capital, tendo se apoderado [...] desse melhor invólucro, fundamenta seu poder de modo tão sólido, tão seguro, que nenhuma substituição na república democrática burguesa, nem de pessoas nem de instituições, tampouco de partidos, abala esse poder”.

É fundamental notar que Lênin via no parlamentarismo burguês uma das formas políticas mais modernas e bem desenvolvidas do modo de produção capitalista. Para ele, mesmo sem previsão legal, o capital é plenamente capaz de contornar os entraves aos seus interesses através do “suborno” e da “corrupção”. Isso teria sido aperfeiçoado com a paulatina monopolização característica do capitalismo e, em sua fase imperialista, com o poderio desenvolvido pelo capital financeiro. O líder revolucionário observa que “sob o capitalismo, a república mais democrática só conduz ao suborno dos funcionários pela burguesia e à aliança da Bolsa com o governo”. Lênin sabia que a liberdade da democracia burguesa é, acima de tudo, a liberdade de compra, a liberdade do capital, tal como observa em vários momentos sobre o amplo alcance da imprensa burguesa, que circulava muito mais que os jornais socialistas, mesmo entre o operariado revolucionário russo em 1917.

Lênin é categórico ao apresentar uma mudança na ação do capital no início do século XX naquilo que poderíamos chamar de “vida democrática” das repúblicas. É um dado quase prosaico de nosso cotidiano a ideia do controle de nossas vidas “pelas corporações”. Mais do que isso, no catálogo de qualquer plataforma de streaming encontramos dezenas de documentários – principalmente norte-americanos, ao estilo Michael Moore –, de tipo progressista, que denunciam a interferência das “corporações financeiras” na democracia.

É relativamente simples notar que do fim do século XIX e início do século XX, tivemos mudanças significativas no modo de produção capitalista. Temos elementos como o avanço do imperialismo; a entrada da grande indústria capitalista em diversas áreas da produção – como os assim chamados “bens e serviços” –; a expansão global das relações sociais burguesas no planeta; o surgimento da figura do Estado de Direito – na “medida que o direito foi se tornando um regulador normal e prosaico da vida cotidiana [...] e mais fortes foram se tornando dentro dele os elementos manipuladores do positivismo”. É a natureza do capitalismo pós-guerra – chamado por Mandel de capitalismo tardio –, que tem como um de seus fundamentos a intensificação da extração de mais-valor relativo, que deve ser levada em conta para que se compreenda o que Lukács aponta como “a manipulação hoje predominante”, sendo imprescindível compreender o elemento de “mediação entre a produção em massa dos meios de consumo (e dos serviços) e a massa composta de consumidores singulares”, pois, enquanto “informação necessária sobre a qualidade etc. da mercadoria, tal sistema de mediação é economicamente indispensável nesse estágio da produção. Nas condições do capitalismo atual, tais informações têm de converter-se justamente na manipulação hoje predominante, que gradativamente se estende a todas as esferas da vida, sobretudo à política”.

Certamente a questão da democracia no Brasil de hoje deve ser encarada em toda sua complexidade – com tudo aquilo que há de anti-democrático e antipopular remanescente da formação colonial, e que, ao mesmo tempo, apresenta hoje, na economia, um “capitalismo completo” (pois os diferentes ramos do capital encontram-se minimamente desenvolvidos), bem como a tendência geral de desenvolvimento daquilo que Lukács chama de “capitalismo manipulatório”. Para ficarmos apenas no nível superficial da “propaganda”, quem poderá esquecer das batalhas eleitorais entre PT e PSDB e suas imensas e influentes campanhas de marketing paga em dólares (além, é claro, do lado obscuro disso: o Bolsozap de 2018)?

Quem assina o manifesto pela democracia não entende do que se trata! Quem, em sã consciência, pode subscrever a afirmação de que “sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática”? Quem, preocupado com a miséria da população, pode achar que a fome e desespero é uma “divergência menor” com os banqueiros e empresários que assinam a carta? Ninguém deveria esquecer que toda essa gente, junto dos jornalões, passaram as últimas décadas instrumentalizando o pânico moral anticorrupção e privatista contra os benefícios sociais, a saúde e a educação públicas e tudo aquilo que mantém as condições para a reprodução da força de trabalho no país. Essa gente se empenhou em uma cruzada contra as cotas raciais, e qualquer coisa que cheirasse à povo, usando sua miríade de cães raivosos – colunistas da estirpe de Mainardi, Constantino, Cantanhêde, etc – e pavimentaram um seguro caminho para a besta bolsonarista. Não à toa, até mesmo um liberal bem-formado – hoje, ao que parece, arrependido de ter composto a matilha de colunistas – como Reinaldo Azevedo, a questão é transformar a democracia política em democracia social, algo que, na avaliação do jornalista, está longe de ser realidade no país. De fato, aqui é o cerne da questão.

Mesmo entre aqueles que desejam democratizar a democracia – isto é, “aperfeiçoá-la” dentro dos limites da própria sociedade burguesa –, não podem sonhar em fazê-lo sem tocar, minimamente, no atual estado de coisas da propriedade privada no Brasil – seja com medidas tributárias realmente significativas, estatizações, expansão de gastos públicos, etc. Eles esperam ressuscitar o miserável orçamento participativo da Constituição de 1988. Obviamente, encontrariam relutância entre o grande capital. É nesse sentido que a “opinião popular” – mais ampla que a opinião pública –, percebe um certo cinismo em toda essa articulação de setores médios e intelectuais.

Roberto Schwarz, em um conhecido ensaio de 1978, Cultura e política: 1964-1969, analisa a situação nos primeiros anos da ditadura no aspecto cultural e intelectual. Dizia que, apesar de muitos intelectuais brasileiros serem de esquerda – em sentido amplo (social-democratas), as problemáticas que se depararam, tanto para as comissões estatais ou do grande capital, quanto para rádios, televisões e jornais do país, não refletiam suas posições políticas imediatas, sendo somente a matéria cultural que produziam ao consumo próprio realmente com conteúdo de “esquerda”. Essa situação, que vinha desde o governo João Goulart, cristalizou-se em 1964 quando, grosso modo, a intelectualidade socialista, já encaminhada à prisão, ao desemprego e ao exílio, foi ligeiramente poupada (basta ver a criação do CEBRAP). A maioria dos presos, exilados e torturados foram somente aqueles que haviam organizado o contato com operários, camponeses, trabalhadores autônomos e soldados. Isso resultou numa fissura entre o polo formativo – o intelectual – e esses setores da classe trabalhadora. Assim, cortadas naquela ocasião as pontes entre o movimento cultural e os trabalhadores produtivos, o governo militar Castelo Branco não impediu a circulação teórica ou artística do ideário de esquerda (liberal, em certo ponto), que embora em área restrita, floresceu.

Esse argumento de Schwarz, malgrado algum problema de diagnóstico, serve aqui para ilustrar o raquitismo que tomou o vocabulário da esquerda. O que também nos faz lembrar György Lukács, quando analisando a situação do pós-guerra, com a derrota militar do fascismo/nazismo, não deixou de ponderar no seu ensaio “As tarefas da filosofia marxista na nova democracia”, que era necessário priorizar a mudança política na educação dos novos sujeitos políticos; pela cultura da formação de novos quadros dos quais sejam imprescindíveis para nossos objetivos; mas, igualmente neste caso, segundo o filósofo, valeria a observação de Hegel, segundo a qual as pessoas devem aprender a nadar atirando-se na água. Somente por meio de todas essas mudanças, bem como através de transformações nas condições de vida da população trabalhadora, política e culturalmente, pode emergir uma nova consciência, tal seria uma nova posição em face da relação, para usar termos hegelianos, entre Estado e sociedade civil. Com isso, esse elemento, tanto no diagnóstico de Schwarz quanto na reflexão de Lukács, se consolida em nossa “cultura política” de gabinete, isto é, a separação entre a práxis e a crítica.

No entanto, o atual cenário de “medo do fascismo”, a criação de uma frente “amplíssima” que aglutina a todos e não preenche em nada o conteúdo real dessa democracia, já tem seus resultados milagrosos. Se trata de show business. A produção acadêmica – tentada a ser crítica – é agora um grande adorno para os engajados “republicanos”, os quais se esquecem que mais da metade do Brasil real não tem a menor ideia de seus debates. A métrica de nossos arautos da democracia são as “bolhas” e círculos específicos da população verdadeiramente letrada. Na prática, o Bolsozap é muito mais amplo que qualquer manifesto de carimbo datado.

Não nos enganemos, a democracia política que os diversos setores do capital estão defendendo significa, como quase sempre na história brasileira, controle social, pois pretende rebaixar a ação política a meros instrumentos institucionais – pensemos na passagem do Império à Primeira República por meio de um golpe militar que conteve revoltas populares pela reforma agrária e direitos civis. No Brasil hoje, se pode matar milhares e ainda seguir os ritos sagrados dos processos legais como se fosse um passeio no parque. Portanto, é evidente que os revolucionários brasileiros devem responder com dureza às ameaças contra o processo eleitoral, pois isso, claramente, tem um conteúdo reacionário e atende aos interesses de setores do capital e de camadas da burocracia estatal. No entanto, não é nosso dever dourar a pílula da democracia burguesa.

A pobreza da esfera política em si não pode ser potência transformadora. Nada disso é fácil de ser encarado de maneira simplificadora, pois, não bastasse estarmos num momento de fraqueza da luta dos trabalhadores, ainda temos que lidar com pobreza política como herança do bonapartismo à brasileira e com o conteúdo cada vez mais manipulatório do capitalismo contemporâneo que penetra nas diversas esferas sociais. É sintomático que, ao final, espremendo todo o suco que esses democratas de gabinete podem dar, aparecerá sempre a mesma ladainha do país que não foi – não do que efetivamente se tornou – nos arranjos funcionais dessa tal democracia. Pois bem, para os marxistas, às vezes, fazer qualquer coisa é pior do que não fazer nada. É preciso meditar e ponderar para que passamos a mensagem certa, para que deixemos claro de que lado estamos. Este lado não é ao lado dos banqueiros esclarecidos – do tipo Setúbal –, ou, ao menos, não deveria ser. Se for para fazer algo, que seja feita a coisa certa.

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