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A teologia lulista e a profecia dos desesperados

Tem-se visto nas últimas semanas diversas movimentações eleitorais que trazem consigo um aspecto cômico – camuflar seu caráter trágico. A de maior repercussão é a declaração de alckmin, que afirma a harmonia entre lula e chuchu. O desespero eleitoreiro de um partido que sequer tem proposta de resolução para os problemas mais imediatos (desemprego, inflação e as contrarreformas) dilui as pretensões idealistas daqueles que já tinham à sua frente um fato: o PT, aparentemente a única saída popular dita à esquerda, já abandonou há muito o campo progressista.

Mas estas articulações políticas de caráter duvidoso - seja por muitos denominada demagogia ou por outros tantos de populismo - não são novidade; a busca pela conciliação das tensões sociais em direção a uma estabilidade, para que a relação entre capital e trabalho se reproduza com paz e tranquilidade, é própria de uma prática política que é progressista apenas na palavra, mas que, em seu conteúdo, há tempos já abandonou até mesmo o que resta de radicalidade no progressismo como garantia da manutenção da ordem. Assim, os dilemas presentes nas articulações políticas, sempre requentados e com sabor cada vez mais rançoso, encontram respaldo ainda que sejam apontadas há tempos na análise marxiana:

“E, assim como na vida privada se costuma diferenciar entre o que uma pessoa pensa e diz de si mesma e o que ela realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se diferenciar tanto mais as fraseologias e ilusões nutridas pelos partidos do seu verdadeiro organismo e dos seus reais interesses, deve-se diferenciar as suas concepções da sua realidade.” [1]


Ora, Lula-paz-e-amor, assim como todos os pacifistas, moraliza seu discurso, contrapõe sua bondade à vileza bolsonarista, a gentileza ao ódio, a verdade à falsidade; Ora, conhecereis a verdade (a real verdade, não a falsa profecia bolsonarista), e a verdade vos libertará! Regularize seu título, defendam o Bem que ainda resta em nossa sociedade! Para nós, o debate disseminado não é a interação entre as diferentes classes e diferentes setores das classes, [2] mediado pela especificidade de nossa época miserável, material e ideologicamente; nos parece que para os bons democratas do Partido Lulista, para alçar a vitória contra o Mal, “não teriam necessidade de verificar, na iminência de uma luta, os interesses e posicionamentos das diferentes classes. Não teriam necessidade de sopesar com todo cuidado os seus próprios meios. A única coisa que precisariam fazer era dar o sinal para que o povo se lançasse sobre os opressores com todos os seus inesgotáveis recursos.” (MARX, 2011, pp. 67-68). [3] Para nós, o debate teológico toma corpo, seja nos termos imanentes, como defesa de uma fraseologia por uma hermenêutica constitucional progressista (que traz consigo inevitavelmente a imputação de uma impotente universalização da própria moralidade do intérprete do texto), ou como apelo aos surdos gritos de direitos humanos; ou, em um campo ainda mais reacionário, no embate acerca da leitura mais ou menos correta dos evangelhos para tensionar um setor dos mais conservadores – e em constante crescimento – da nossa sociedade: os neopentecostais.

Para isso, nosso candidato não poupa em suas falas tensionar o discurso conservador – que elegera há quase quatro anos seu antínoma – com um discurso, ainda teológico, mas com ares progressistas, de amor. Seus partidários abraçam a visão humanista e pacifista de Jesus Cristo, não o que levara ao chão o templo dos fariseus, mas o que mostra a outra face; seus partidários vibram com o grito eloquente de “o amor vencerá o ódio!” – afinal, o amor é humano, o amor é universal, enfim, o amor é cristão! E, assim como os bons democratas, seus apoiadores progressistas abdicam de analisar as relações de força por trás desse amor abstrato e vazio, demiurgo da miséria, material e espiritual, que se enfrenta nesta crise de nossos tempos. Ora, abdicar da análise de conjuntura é caminhar no escuro, confiando em deus e na fé que os inimigos da humanidade serão julgados no tribunal da História. Abdicar da análise de conjuntura é perder mesmo em caso de vitória – afinal, nem quem ganhar nem quem perder vai ganhar ou perder; no fim todos perderemos. Se as condições de nossa atuação no mundo permanecem-nos alheias, se é preciso confiar em uma entidade redentora para alcançar os cumes luminosos frente ao ponto do caminho em que trilhamos enquanto sociedade, é porque não vencemos, e sequer haverá perspectiva enquanto esta fé cega, motivada pelo desespero diante da miséria real, for o motor da atuação política.

Reconhecer a situação em que se encontra e as forças por trás desta postura, possibilita a realização do que se propõe, e reconhecer a derrota permite a reorganização das forças para atuar de maneira objetivamente efetiva diante da realidade – assim, transformando a crítica negativa em crítica positiva. Do contrário, repetir-se-á a mesma fórmula falida dos democratas de quase dois séculos atrás:

Mas quando, no momento da ação concreta, os seus interesses se revelam desinteressantes e o seu poder se revela impotente, atribuem esse fato ou a sofistas perniciosos que dividem o povo indivisível em diversas frentes hostis ou ao exército que estava por demais abestalhado e ofuscado para compreender os fins puros da democracia como a melhor coisa para si mesmo, ou tudo falhou em algum detalhe de execução ou então algum imprevisto pôs a perder essa rodada do jogo. Como quer que seja, o democrata sai da derrota mais vergonhosa tão imaculado quanto era inocente ao nela entrar, agora renovado em sua convicção de que ele deverá triunfar, não de tal modo que ele próprio e o seu partido tenham de renunciar ao seu velho ponto de vista, mas, ao contrário, de tal modo que as condições amadureçam no sentido por ele pretendido. (MARX, 2011, p. 68)


Ora, repetir-se-á os mesmos erros do segundo governo Dilma: aliança com setores conservadores para a garantia do sucesso eleitoreiro, ingovernabilidade e, ao fim, após sua derrota, a certeza abstrata de estar no lado certo da História; e de que, por isso, a bênção espiritual agraciará a consciência daqueles que, ao contrário dos vis, deitarão com a cabeça leve e terão uma boa noite de sono.

Por isso é que disputar teologicamente uma visão de mundo, e não as condições materiais, é se colocar em um terreno infértil para a colheita dos frutos previamente idealizados. Acreditar na solução pros antagonismos estabelecidos materialmente em um conceito pretensamente universal, e disputar o campo transcendental é precisamente, ao tentar trazer fiéis à sua posição, aderir à reação. Não se pode esquecer que, mesmo enquanto protesto contra a miséria real – como é visto idilicamente na doutrina teológica da libertação morta e enterrada na América Latina – a religião ainda é expressão da própria miséria real; é o reconhecimento da ausência de controle sobre os meios de produção e transformação de sua vida e, além, da imutabilidade desta condição, de que somos reféns do mundo e que nos resta aguardar o doce alívio da morte e a recompensa no plano superior da existência.

Mas quanta confusão entre política e religião! Impossível aqui se desenvolver de outra forma: como tratar a posição partidária que centra suas forças na imagem de um profeta que traz como central não a relação que dá nome à sua organização, mas simplesmente ao seu reflexo?; como analisar o Partido Lulista de outra forma que não essa, se os seus discursos são incapazes de ir além do amor abstrato ou da carestia desesperada? Daí entende-se o porquê da impotente luta pela aliança dos cristãos conservadores. Quanto mais miseráveis estamos, mais fraco é o suspiro da criatura mais oprimida e, portanto, maior o apelo à religião. E quanto mais depende-se da religião, mais distante se está de alcançar os objetivos progressistas (supostamente) propostos. E, reiterando o dito a princípio, ao se abandonar um programa, e consequentemente um projeto de país (não que o do PT fosse dos mais potentes), realmente, é preciso rogar a deus, porque já se abandonou a concepção de que a humanidade é capaz de solucionar os dilemas por ela própria criados; que ao atuar diante da realidade nós a transformamos e nos transformamos. A historicidade do mundo e da humanidade foi jogada às traças de fato. O mundo se torna devasso e miserável, nos tornamos essencialmente egoístas, vis e mesquinhos, e nosso destino passa a ser nos cobrir com a manta de Santo Antônio: quando a moléstia aperta, alguém passa frio.

Esse esforço de Sísifo cada vez mais presente na decadente sociedade burguesa traz, por essas camadas pretensamente progressistas (e nunca nos esqueçamos de que aquilo que algo diz de si mesmo não necessariamente corresponde à sua realidade), certo romantismo de setores de apoio a Lula diante de um impotente renascimento da teologia da libertação frente à força da teologia da prosperidade; o messianismo dos desesperados ignora que são determinadas condições materiais que permitem o surgimento de determinadas vertentes teológicas. Essas, por sua vez, trarão, no limite, uma determinada postura específica dos sujeitos religiosos diante da realidade que os rodeia, ainda possuindo, por mais aparentemente revolucionária que seja, um caráter reacionário ao tratar o mundo material como subsumido hierarquicamente a um hipotético mundo transcendental, eterno e em unidade a deus.

A teologia da libertação morreu, e foi substituída pela prosperidade sonhada pelos contribuintes da burocracia transcendental; os banqueiros de deus ganharam força com a teologia da prosperidade à época nova, e o sonho dos oprimidos pela compra de assentos no céu, ao invés da busca pela construção coletiva do paraíso na terra havia sido percebido pelo governo petista já nos primeiros mandatos, que tiveram papel ativo na formação desta nova forma de prática política, hoje, hegemônica; ora, dos grupos responsáveis pelo impeachment no congresso, a bancada da Bíblia se mostrou uma das mais visíveis com os fervorosos e hipócritas discursos em defesa de Deus, da Moral e da Família. E, assim como César, que cegado pela arrogância não percebeu a conspiração de seus traidores, o partido lulista não viu a lâmina do punhal que o derrubou.

Apesar das duras críticas, no entanto, as linhas aqui escritas não se direcionam imediatamente ao candidato representante do Bem, mas a seus cegos partidários, que compram a fraseologia vazia do amor, ou da redenção messiânica dos oprimidos. Nesse sentido, Lula está de mãos atadas – condição criada por seu próprio partido; hoje, o partido lulista não detém o mínimo de controle da concretização do que diz pretender efetuar durante o governo. Ele depende de apoio de setores reacionários da sociedade – aqui, em específico, os evangélicos -- justamente pelo Partido dos Trabalhadores ter – pasmem –, “abandonado” a pauta do trabalho – senão em seus emocionados e carismáticos discursos.

Assim, entrega-se o prometido por quem brada ser o profeta a reconciliar capital e trabalho no Brasil: lucros máximos ao capital, e enfraquecimento das classes trabalhadoras que, desesperadas com a perspectiva de futuro, trazendo às mentes a visão nostálgica de um breve e recente passado que não há mais de voltar, apertarão treze com o coração sufocado. Perdemos, e prosseguiremos perdendo, enquanto tomarmos nossas derrotas como conquistas e nos recusarmos a ousar transpassar os limites das impotentes reformas burguesas.


NOTAS

  1. cf. MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (tradução de Nélio Schneider). São Paulo, Boitempo, 2011, pp. 60-61

  2. Aqui, o debate se esvai de análise de conjuntura. A atuação política conciliatória do Partido Lulista não depende de análise de conjuntura! Ele já carrega consigo toda a positividade do mundo! Essa posição petista por vezes se assemelha à crítica de Marx à Montanha, que traz em sua tendência democrática o elemento universal da sociedade burguesa: “Os democratas admitem que o seu confronto é com uma classe privilegiada, mas pensam que eles é que constituem o povo junto com todo o entorno restante da nação, que eles representam o direito do povo, que o seu interesse é o interesse do povo. Por conseguinte, não teriam necessidade de verificar, na iminência de uma luta, os interesses e posicionamentos das diferentes classes. Não teriam necessidade de sopesar com todo cuidado os seus próprios meios. A única coisa que precisariam fazer era dar o sinal para que o povo se lançasse sobre os opressores com todos os seus inesgotáveis recursos.” (MARX, 2011, pp. 67-68).

  3. cf. MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (tradução de Nélio Schneider). São Paulo: Boitempo, 2011, pp. 67-68.


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