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A voracidade do capital contra os salários no Brasil contemporâneo

Por Pedro Rocha Badô

O presente escrito condensa brevemente as conclusões e aspectos teóricos mais relevantes do trabalho de pesquisa “A administração política dos rendimentos do trabalho por meio do direito: uma análise imanente da intencionalidade de rebaixamento dos salários nos instrumentos legais entre 2017 e 2020 no Brasil”

Foto: Jeso Carneiro - Flickr

Apesar do Brasil do século XXI parecer um barco a navegar em um remanso após o fim da ditadura dos generais em 1985, a marcha dos acontecimentos no início da segunda década indicavam uma relevante mudança na vida social brasileira em curso. O irromper de fenômenos políticos qualitativamente diferentes em relação à década anterior, obrigaram os olhares mais distraídos e as consciências mais cínicas a admitir que algo acontecia nas profundezas da sociedade. As inesperadas jornadas de 2013, que levaram a pequena burguesia, as camadas médias trabalhadoras e grupos populares radicalizados a manifestar suas insatisfações com as condições de vida, foram sucedidas, entre 2015 e 2016, pelo agonizante e fraudulento processo de deposição de um governo social-liberal de 14 anos. O governo interino, praticamente um terceirizado, se encarregou fundamentalmente de aprovar a contrarreforma trabalhista de 2017. Coroando o fim da década, a eleição de 2018 conduziu à presidência um indivíduo externo ao rol dos figurões da política republicana, desconstituindo a ciranda eleitoral forjada pela República de 1988, onde se enfrentavam os liberais e os nem tão liberais assim. O governo Bolsonaro, por meio de suas medidas provisórias, deu rápido prosseguimento ao achincalhamento jurídico das regras trabalhistas

O que nos chamou atenção é que essa intensa modificação de leis trabalhistas no país a partir de 2017 não se deu por um mero acaso, isto é, não é exatamente um raio em céu de brigadeiro. Ao analisar as novas leis, parece haver uma intencionalidade bem direcionada em rebaixar os rendimentos do trabalho fundada em uma inflexão na tendência da gestão da força de trabalho no país.


Dos anos de glória à fossa

Os primeiros anos dos governos PT, a partir de 2002, tiveram como impulso decisivo para a expansão da economia nacional o aumento da demanda internacional pelas chamadas commodities, produtos primários como soja, minério e petróleo. Entre 2002 e 2007, o preço dessas mercadorias teve um aumento de 135%, alavancando a lucratividade das atividades extrativistas e agropecuárias no país. Nesse período, a Vale e a Petrobrás acumularam os maiores lucros da história das empresas brasileiras de capital aberto (MARQUETTI; HOFF; MIEBA, 2016 apud JORGE, 2019, p.100).

Para o governo, o desafio era fazer com que esses índices econômicos positivos não ficassem restritos ao setor agroexportador. O governo Lula decidiu então pelo incentivo à ampliação da demanda interna do país por produtos industrializados e, para isso, buscou estimular o capital financeiro a ampliar a oferta de crédito às empresas e à população em geral. Uma das medidas mais conhecidas foi a redução da taxa Selic pelo Banco Central, que passou de 26,5% para 16%, chegando em 2009 a 8,75%. Podemos dizer que alcançaram relevantes resultados, apesar da frustração de certas expectativas que tinha o governo.

O Brasil tornou-se o “país da classe média”. Os programas de redistribuição de renda, principalmente o Bolsa Família, ganharam notoriedade. A valorização do salário mínimo, de 2003 a 2010, cresceu cerca de 270% - contra um Índice de Preços ao Consumidor que cresceu 157%. De tal modo, “a atuação conjunta dessas medidas e a valorização das commodities permitiram que a taxa de lucro da economia brasileira rompesse a barreira dos 30%”, envolvendo “toda a economia brasileira numa espiral positiva” (JORGE, 2019, p.100).


Salário médio real e a produtividade líquida do trabalho no Brasil (2000-2015)

Entretanto, no que se refere ao setor industrial, o período demonstra a passividade do capital produtivo. Embora a taxa de lucro já se eleve ao fim de 2002, os investimentos do capital produtivo só se intensificam a partir de 2006, revelando a prioridade em reduzir o seu endividamento e em ampliar o nível de utilização da capacidade produtiva já instalada. Mesmo quando ampliaram os investimentos, o fizeram de maneira tímida. Entre 2008 e 2014, a indústria nacional operou acima da sua capacidade produtiva regular, capacidade, entretanto, “tecnologicamente muito defasada” em relação a outros países (JORGE, 2019, p.102-3).


Proporção do lucro média investida (%) (2000 a 2016)

A característica atrófica do capitalismo no Brasil é ainda mais danosa para o capital produtivo “quando analisarmos a evolução da relação lucros x salários”, pois num contexto em que o governo priorizava a valorização dos salários, era de se esperar, sob uma lógica legitimamente capitalista, que os gestores do capital produtivo aumentassem “sua independência em relação às reivindicações da força de trabalho”. Afinal, "aumentando a relação capital constante / capital variável” - grosso modo, aumentar os investimentos em maquinário e tecnologia em detrimento da quantidade de trabalhadores empregados) -, haveria o aumento do desemprego, o que pressionaria os salários para baixo. O capital produtivo, entretanto, optou por apostar largamente no emprego massivo de força de trabalho (JORGE, 2019, p.103). Não por outro motivo, o país alcançou em 2014 o chamado “pleno emprego”.

Em síntese, os governos petistas implementaram uma política de distribuição de renda, buscando aumentar o consumo das classes subalternas, na expectativa de que o capital produtivo respondesse a esta demanda com intensos investimentos. O desencontro entre os gestores políticos e gestores do capital produtivo se dá quando estes últimos, sob o signo de sua debilidade histórica, não apresentaram respostas significativas, de modo que, no que tange à composição orgânica do capital, aumentaram o número de trabalhadores empregados e pouco investiram na substituição destes por meios mais novos de produção – novas máquinas, robótica etc. Desse modo, o aumento da parte variável do capital – os salários – passa a impactar cada vez mais na lucratividade do capital produtivo.

É a partir dessas condições que as complexas interações entre Estado e as frações do capital - incluindo também aqui o capital financeiro e o capital comercial - definiram os mais importantes acontecimentos da vida política nacional. O próprio impedimento do governo Dilma, apesar de não se explicar apenas por isso, possui estreita vinculação com o que narramos.


Particularidade da legislação social como administradora da força de trabalho no Brasil

Não se pode entender as circunstâncias atuais dos salários no Brasil sem que se entenda o papel que o direito e a estrutura trabalhista desempenharam em nossa história. A esse respeito, é preciso destacar que em praticamente todo o mundo a legislação social teve as lutas populares como precursoras. Foi assim no século XIX na Inglaterra e na França, onde o capitalismo de via clássica e em pleno desenvolvimento, gestou um proletariado que ascendeu como classe revolucionária a partir das lutas de 1848. É evidente que também no caso do Brasil o elemento do combate proletário e popular influiu na formação da legislação. Porém, diferentemente dos casos inglês e francês, essas lutas se deram com uma particular estreiteza, fruto da também particular formação histórica do país, o qual se integrou ao capitalismo mundial de maneira subordinada; motivo pelo qual Chasin (1978, p.639) chamou a chamou de via colonial de objetivação do capitalismo hiper tardio.

Marcado pela conciliação e pelas transições graduais, mesmo o alvorecer industrial brasileiro, nos anos 1930, foi marcado pela transação entre a vanguarda industrialista no comando do Estado e as antigas frações agroexportadoras. Enquanto as transições pelo alto marcam as relações entres frações dominantes de classe, a interação entre estas e as classes exploradas se deu basicamente através da repressão estatal. Ficando historicamente à margem dos decisivos eventos políticos da nação, as classes subalternas foram politicamente apartadas da formação do Brasil moderno. Assim, “enquanto o palco político serviu à conciliação entre as classes dominantes (nominalmente, o capital agroexportador e o capital produtivo-urbano ascendente) na ausência de uma ruptura”, vemos que “o terreno jurídico mediou o conflito dessas classes dominantes com o proletariado em desenvolvimento” (PAÇO CUNHA, 2017, p.16).

Já na primeira década do século XX, a pressão proletária resultou em algumas leis concernentes ao tabelamento do valor da força de trabalho, a responsabilização por acidentes laborais e a criação de agências estatais reguladoras. Nos anos 1920, apesar da ampliação das conquistas, as lutas sociais permanecem submetidas à intensa repressão da liberdade de organização, com um proletariado reduzido aos grandes centros urbanos e com profundas debilidades teóricas. Vê-se, então, surgir entre os setores da vanguarda proletária concepções ideológicas um tanto deletérias, derivadas, em grande medida, das próprias condições da aspereza da luta operária no Brasil. O resultado disso é o início de um processo de institucionalização dos sindicatos. Mesmo levando a cabo sua luta com greves e mobilizações, o sindicalismo brasileiro buscou obter no disciplinamento do operariado uma moeda de troca para que fosse reconhecido como interlocutor legítimo pelo patronato (MUNAKATA, 1981, p.46-55).

Na industrialização dos anos 1930, a gestão estatal toma grande relevância em decorrência do fato de que “as leis trabalhistas [fizeram] parte de um conjunto de medidas destinadas a instaurar um novo modo de acumulação” no país (OLIVEIRA, 2003, p.37). Deu-se logo o agrilhoamento dos sindicatos por meio da institucionalização, devendo sua existência legal à prestação de contas ao recém criado Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MUNAKATA, 1981, p.64).


A intervenção do Estado sobre o mercado de trabalho revestia-se, portanto, da força generalizadora do direito, servindo-se da coerção moral de uma decisão jurídica. Privado do direito de greve para reivindicar seus interesses no universo mercantil, o fator trabalho se verá obrigado a emprestar uma roupagem jurídica às suas pretensões, perdendo de vista seu interlocutor direto no mercado, o capital. (VIANNA, 1978, p.227).


As leis trabalhistas - a CLT -, fruto desta razão estatal, deveria buscar a equalização de forças entre o capital e o trabalho e, por isso, reconheceu o trabalhador como a parte mais vulnerável dessa relação, sendo “explicitamente favorável aos mais fracos” (MUNAKATA, 1981, p.71). Dessa forma, sob o manto da neutralidade técnica, o Estado pregava que


o impedimento da luta de classes se faz através da criação de canais competentes que absorvam os conflitos. Em outras palavras, procura-se exterminar a luta de classes retirando aos trabalhadores todas as possibilidades de controle e decisão sobre seu próprio destino, confinando-os ao terreno da incompetência e da passividade. Os operários não precisam mais fazer nada, controlar nada, decidir sobre nada, lutar por nada: tudo está dado, rigorosa e cientificamente determinado por especialistas altamente competentes. (MUNAKATA, 1981, p.78).


Não corroboramos, entretanto, com o mito difundido pelo chamado novo sindicalismo dos anos 1980 de que toda a “história do sindicalismo brasileiro” é uma “pura e simples pletora de covardias, traições e infindáveis mesquinharias, derivadas do vínculo de dependência que aferra a estrutura sindical brasileira ao Estado”. Se isso é, em parte, real, deriva do fato de que “tal dependência [do Estado] é um dos instrumentos mais eficazes e perversos de controle e sufocamento do movimento operário” (CHASIN, 2000, p.116). Nesse ponto é fundamental demarcar que até mesmo os críticos do antigo sindicalismo nacional, sendo a CUT e o PT representantes máximos desse novo sindicalismo, não escaparam dessa armadilha estatal e, assim, ampliaram a níveis extremos a dependência, a debilidade e a burocratização dos sindicatos.

Portanto, o histórico da legislação trabalhista brasileira demonstra um árduo esforço da burguesia e do Estado para evitar que o proletariado expandisse a perspectiva de suas lutas para além dos limites da sociedade burguesa. Se na esfera política, após 1988, aparenta-se generosidade ao propor o debate dos aspectos formais da liberdade, da democracia etc., na esfera jurídica constituiu-se um aparato estatal de proteção ao trabalhador que também atuou como o principal instrumento de contenção do proletariado brasileiro, domando suas ações nos limites da reprodução do capital. Dessa maneira, “a legislação trabalhista, no seu espírito e no processo de seu implemento, carrega as marcas das lutas operárias mas também as de sua derrota” (MUNAKATA, 1981, p. 105). Tal qual um abraço caloroso que, ao fim, sufoca sua vítima.


Significado das mudanças na lei trabalhista

A essa altura da história em que nos encontramos, dificilmente veremos defesas explícitas da retirada de direitos ou da arrocho sobre os salários. Após mais de dois séculos de embates do trabalho contra o capital, que arrancaram desse último melhores condições de vida, poucas pessoas são cínicas o suficiente para defender a cassação de direitos sociais. Portanto, em nossa investigação foi necessário um trabalho de observação que fosse além da mera letra da lei, buscando extrair quais são as verdadeiras intenções e os impactos que as mudanças podem ter na realidade.

Os desejos da burguesia muitas vezes são proferidos aos quatro ventos de forma descarada, como é o caso da reunião ocorrida em 2016 entre empresários e Michel Temer, na qual o presidente da Confederação Nacional da Indústria, Robson de Andrade, sugeriu o aumenta da jornada de trabalho de 44 horas para 80 horas semanais. Entretanto, parece ser através das leis que o capital dá os primeiros passos, tal como na Lei Nº 13.467, a famigerada reforma trabalhista de 2017, na direção de uma investida contra os salários.

A proposta, redigida pelo governo Temer, teve sua sessão de motivações escrita pelo Ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira de Oliveira e ganhou relatoria de Rogério Marinho na Câmara de Deputados, os quais entoaram a voz do capital. A defesa da reforma tem três argumentos principais: 1) o combate à insegurança jurídica das relações contratuais; 2) a melhoria das condições negociais contra a rigidez da CLT e 3) a necessidade de modernização e adequação da lei.

O primeiro argumento, antes de tudo, mascara uma verdadeira batalha contra a estrutura sindical e da Justiça do Trabalho. O ministro Oliveira fala da ameaça aos “pactos laborais”, que têm “sua autonomia questionada judicialmente”, gerando “insegurança jurídica às partes quanto ao que foi negociado”. Para ele, o problema está na ausência de um “marco legal claro dos limites da autonomia da norma coletiva de trabalho” (BRASIL, 2016, p.7-8). De modo mais explícito, o deputado Marinho menciona um “ativismo judicial” que faz “com frequência os tribunais trabalhistas extrapolarem sua função de interpretar a lei” (BRASIL, 2017, p.23-4).

O segundo argumento, a questão das condições negociais, liga-se diretamente ao primeiro, uma vez que, para o ministro Oliveira, o Brasil tem “um nível elevado de judicialização das relações de trabalho”. Sua avaliação é de que faltam “canais institucionais de diálogo nas empresas”, o que faz com que “o trabalhador só venha a reivindicar os seus direitos após o término do contrato de trabalho” (BRASIL, 2016, p.8). Da mesma maneira, Marinho acredita que a nova legislação seria “importante para conter o avanço dessa excessiva busca pelo Judiciário para solução dos conflitos entre as partes” ao criar “mecanismos que estimulem a solução desses conflitos antes que seja necessário submetê-los ao Poder Judiciário” (BRASIL, 2017, p.23-4). É visível que, sendo partidários do capital, os parlamentares estão incomodados com a presença dos sindicatos e do judiciário nos conflitos trabalhistas.

Para Oliveira, citando um voto do magistrado Luís Roberto Barroso – conhecido entusiasta da reforma –, não existe, "no âmbito do direito coletivo”, a “mesma assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho”. Sob tal arenga subjaz a ideia de que o princípio da proteção à parte mais frágil da relação trabalhista, isto é, às entidades sindicais, em acordos coletivos – que vige desde a criação da CLT – é um entrave à “valorização da negociação coletiva”, impedindo que haja “segurança ao resultado do que foi pactuado” (BRASIL, 2016, p.8). Já Marinho afirma que os sindicatos laborais não são hipossuficientes em relação ao patronato, pois “ao longo dos últimos vinte anos, os sindicatos negociaram aumentos salariais iguais ou superiores aos índices inflacionários”. Ele afirma que em 2016, ano de uma das “piores crises econômicas”, “52% dos sindicatos negociaram índices de aumento superiores à inflação”, sendo que mesmo nas “entidades cujos reajustes foram inferiores aos índices inflacionários” preservou-se “os empregos de seus representados”, sendo “um grande ganho em momentos de aumento do desemprego”. Causando a “insegurança jurídica da representação patronal”, para ele, tudo isso é “um grande empecilho à celebração de novas condições de trabalho mais benéficas aos trabalhadores” e, até mesmo “um entrave à contratação de mão de obra” (BRASIL, 2017, p.26).

Oliveira e Marinho alegam expressamente que a hipossuficiência dos trabalhadores, reconhecida por lei, tem dado aos sindicatos vantagem sobre o patronato na disputa judicial. Ao tratarem a Justiça do Trabalho como tendenciosa, insinuam que o trabalhador é incentivado a ingressar com reclamações trabalhistas, pois o empregado teria a certeza de que arrancaria de seu patrão algum dinheiro. No cenário montado, trabalhadores, sindicatos e magistrados concorrem para prejudicar e desestimular o empresariado, resultando em seu insucesso, o que, por consequência, seria o insucesso de toda a sociedade. São argumentos que desafiam a lógica.

Ao mencionar os ganhos salariais obtidos no período de 2016 como prova de que os trabalhadores estão em vantagem sobre o patronato, tais parlamentares deixam transparecer seu compromisso com o capital contra o aumento dos salários das últimas décadas. Assim, se antes o princípio da proteção ao mais frágil constituía um elemento importante para arrefecer conflitos - sob a lógica de que reconhecer a desvantagem do trabalho perante ao capital ajudaria a pacificar o processo de acumulação - logo vemos que os atuais gestores políticos do capital já não pensam mais assim.

A primeira expressão da alegada necessidade de maior liberdade negocial nos contratos se dá com o fim da obrigatória participação dos sindicatos nas negociações que, antes, estavam em muitos artigos da lei. A CLT reformada, nos artigos 59 e 59-A, passa a permitir que horas extras diárias, “banco de horas”, regime de compensação de jornada e jornada de doze horas seguidas sejam negociadas por acordo individual entre patrão e trabalhador (BRASIL, 2018, p.101). De modo mais drástico, o novo artigo 477-A permite “dispensas imotivadas individuais, [e] plúrimas” sem a “necessidade de autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho para sua efetivação” (BRASIL, 2018, p.141). Institucionaliza-se a lei selvagem do mercado, jogando o trabalhador sem armas diante da voracidade do capital.

Se retornarmos ao texto de motivações da lei, o ministro Oliveira diz que, além de mudar as condições contratuais, também deve-se criar um “ambiente colaborativo entre trabalhador e empresa” que melhore o “nível de produtividade”. Assim, como solução para o “nível elevado de judicialização”, visando que a empresa possa “se antecipar e resolver o conflito, antes que o passivo trabalhista se avolume” (BRASIL, 2016, p.8-9), a nova CLT postula no artigo 510-A que nas “empresas com mais de duzentos empregados” haverá “eleição de uma comissão para representá-los”, devendo, pelo artigo 510-B, os que forem eleitos representar, “aprimorar” e promover “o diálogo e o entendimento”, além de prevenir conflitos e encaminhar “reivindicações específicas”. Se não parece o suficiente, o artigo 510-C impede, no processo de eleição desses representantes, a participação do sindicato da categoria (BRASIL, 2018, p.146).

Em relação ao financiamento dos sindicatos, o artigo 578 torna o “imposto sindical” – que era obrigatório a todo trabalhador – condicionado à autorização “prévia e expressa” deste (BRASIL, 2018, p. 155). Segundo o relator, o objetivo é que “aqueles que se sentirem efetivamente representados por seus sindicatos” vão pagar “suas contribuições em face dos resultados apresentados”, enquanto que as entidades “que não tiverem resultados a apresentar, aqueles que forem meros sindicatos de fachada, criados unicamente com o objetivo de arrecadar a contribuição obrigatória, esses estarão fadados ao esquecimento” (BRASIL, 2016, p.28).

A nova legislação tem marcado caráter preventivo contra o sindicalismo. Os gestores políticos têm em conta que a “ação sindical pode ser um fator poderoso para contrabalançar a influência que o monopólio do mercado de trabalho por parte dos compradores exerce diretamente sobre os salários monetários” (DOBB, 1977, p.135).

Mas parece contraditório afirmar isso diante da situação atual do sindicalismo brasileiro. Os sindicatos contavam no ano de 2019 com apenas 11, 2% da população trabalhadora sindicalizada (IBGE, 2020). A verdade é que os anos de governo do PT, com sua burocracia controlando a maior parte dos sindicatos do país, ajudaram a renovar àquelas velhas relações entre Estado e sindicalismo, já que se tratou de um longo período em que o partido ocupou simultaneamente o aparelho estatal e os órgãos de direção sindical, aplicando uma intensa política de colaboração entre as classes sociais, refreando o ímpeto do proletariado. Mas isso não seria o suficiente sem a profunda derrota em escala mundial das forças do trabalho durante o último século. Essa conjuntura conformou um sindicalismo pragmatista, que priorizou as reivindicações fragmentadas das categorias profissionais, adensando a perspectiva conciliatória e subalterna vigente nos sindicatos do Brasil.

Dessa maneira, independentemente do juízo político que se faça da obrigatoriedade do desconto salarial como fonte de financiamento dos sindicatos, seu fim teve grande impacto em toda a estrutura sindical do país. Além disso, se for efetivo o sistema de eleições de representantes por fábrica, estes tendem a substituir os sindicatos no local de trabalho. Sob os auspícios dos patrões e encarregados, as comissões de representantes podem ser instrumentalizadas pelo patronato, mais ainda do que os sindicatos “amarelos” já o são. Podendo interferir nas negociações, tratar diretamente com a administração da empresa e assumir outras funções dos sindicatos, a representação por local de trabalho tem potencial de tornar-se um instrumento de sabotagem da organização dos trabalhadores nas mãos dos gestores do capital.

Devemos observar que, antes de ser resultado do poder ameaçador dos sindicatos frente ao capital, a reforma é o atestado das derrotas fragorosas da classe trabalhadora. A aprovação desta lei contou com pouca resistência, principalmente por parte dos sindicatos, o que demonstra que os agentes políticos tinham em conta a incapacidade das forças do campo do trabalho de reagirem. A expressão jurídica máxima do ímpeto dos gestores políticos contra os sindicatos é o novo artigo 611-A (BRASIL, 2018, p.159), que instituiu o que popularmente chama-se de preponderância do “negociado sobre o legislado”, provando que o capital está seguro de que nas negociações, sob a livre lei do mercado, ele obterá vantagem sobre o trabalho.

No que se refere ao terceiro e último argumento, a necessidade de modernização da lei, Rogério Marinho constata - o óbvio - que o “Brasil de 1943 não é o Brasil de 2017”. Segundo ele, “estamos no século XXI, na época das tecnologias da informação”, em que, segundo ele, os celulares têm “mais capacidade de processamento do que toda a NASA quando enviou o homem à lua”. Afirma que “novas profissões surgiram e outras desapareceram” e as “as leis trabalhistas permanecem as mesmas”. Marinho roga pela evolução que nos iguale “ao mundo em que os empregados podem executar as suas atividades sem que estejam, necessariamente, no estabelecimento”, já que a “informatização faz com que um empregado na China interaja com a sua empresa no Brasil em tempo real” (BRASIL, 2017, p.17-8).

Mas tal descrição não parece ser do Brasil que conhecemos, de parcos recursos para o investimento em pesquisa e sem incorporação de alta tecnologia nos setores da produção mais relevantes. Se o senhor deputado brada “precisamos de um Brasil com mais liberdade”, só pode ser mais liberdade para o capital. O sonho utópico de uma economia que utilize alta tecnologia – para acumulação capitalista, é claro –, nada mais parece ser do que a distopia real de jornadas laborais sem limites que se abate sobre os trabalhadores. Na abertura de seu voto, o deputado diz que as “leis são construídas e escritas com o objetivo de atender o zeitgeist [sic] em que estão inseridas”, explicando que zeitgeist [sic], para os “filósofos alemães”, é “o espírito do tempo, o espírito da época, é o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo” (BRASIL, 2017, p.17). Entretanto, em um macabro Hegel de trás pra frente, aparentando ter mais “consciência deste princípio” do que sendo um “instrumento inconsciente” nesta “marcha do espírito”, nosso parlamentar esquece de mencionar o quão comezinho é seu “clima intelectual” e de como é farisaica a época desse espírito, o Kapitalgeist.

Sob tal argumento, o artigo 58-A permite contratos de tempo parcial de 30 horas semanais, com o qual o empregador - antes restrito ao contrato de tempo integral de 44 horas ou de tempo parcial de até 25 horas - adquire maiores possibilidades de contratação para substituir trabalhadores de tempo integral por outros de tempo parcial. De maneira semelhante, o artigo 443, § 3º inaugura no Brasil o “modernizante” contrato de trabalho intermitente, no qual o período de atividade laboral não é contínuo, “ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade” (BRASIL, 2018, p.134). Se amplamente adotados, tais modelos impactam diretamente na chamada “estabilidade” dos empregos, principalmente pelo fato de que o artigo 452-A, § 5º estabelece que o “período de inatividade” não é considerado “tempo à disposição do empregador, podendo o trabalhador prestar serviços a outros contratantes” (BRASIL, 2018, p.135).

Somando-se a estas modalidades contratuais, um ponto anunciado como forma de modernização da legislação foi o teletrabalho, definido pelo artigo 75-B como a prestação de serviços “preponderantemente fora das dependências do empregador” através da “utilização de tecnologias de informação e de comunicação” (BRASIL, 2018, p.104). Não estando enquadrado na “duração normal do trabalho” de 8 horas diárias, como estabelece o artigo 62, III (BRASIL, 2018, p.102), não há previsão do direito ao recebimento de horas extras ou adicionais noturnos, bem como não há certeza jurídica sobre a possibilidade de controle de jornada por parte do empregador. Tais características criam uma forma de trabalho relativamente simples de ser controlada, principalmente através de plataformas virtuais que estabelecem metas, ritmo e quantidade de trabalho sem que haja um controle explícito do tempo pelo empregador.

Nestes três últimos casos, podendo combinar uma infinidade de diferentes jornadas de trabalho de acordo com suas necessidades de mercado e pagando salários proporcionais à cada tipo de jornada, o capital busca eliminar limites que lhe foram impostos historicamente pela luta de classes. Ao mesmo tempo em que não há mais a garantia legal do recebimento de um salário mínimo mensalmente, devido à ampliação dos contrato de tempo parcial, tem-se também que, no caso da modalidade intermitente, trabalhando para diferentes empregadores, a jornada diária máxima pode ser excedida, sem nenhum horário de descanso ou pagamento de horas extras. Contanto com a elasticidade do uso da força de trabalho, o capital busca não só eliminar os “tempos mortos” de trabalho, como também se empenha em aumentar a produção de valor - seja de maneira legal ou fraudulenta, como veremos mais adiante.

De contrabando, aproveitando as possibilidades de extensão da jornada de trabalho, os legisladores fazem uma sutil alteração na CLT, no § 2º do artigo 58. Todo e qualquer tempo de deslocamento do empregado até a empresa não será considerado como parte da jornada, “por não ser tempo à disposição do empregador” (BRASIL, 2018, p.101). Isso significa que todo o tempo da jornada será agora utilizado diretamente na produção. Se antes o trabalhador gastava uma hora no ônibus fretado que o levava até a fábrica numa localidade distante - como agroindústrias ou montadoras de automóveis fora do perímetro urbano - e essa uma hora era contada como hora trabalhada, agora o empregador pode exigir que seja uma hora a mais trabalhando na empresa. E com o mesmo cinismo, ainda no artigo 58, ao substituir o termo “local de trabalho” por “posto de trabalho”, a lei muda a interpretação nos casos em que o trabalhador se desloca para diferentes lugares durante a jornada. Um empregado que realiza reparos técnicos em diferentes plantas da mesma empresa pode não ter o tempo de deslocamento entre um “posto de trabalho” e outro computado como hora trabalhada, necessitando trabalhar mais horas para compensar.

Nesses casos, sem que o acréscimo de tempo trabalhado resulte em um aumento proporcional do salário, a alteração legal permite ao capitalista, que nem sempre necessitará comprar mais máquinas e ferramentas - capital constante - proporcionalmente ao aumento do tempo de trabalho, ter a sua disposição um tempo que antes era para ele improdutivo, em que não era gerado mais-valor.

Assim, em todos esse caso de prolongamento da jornada, o trabalhador, que ao contrário do maquinário “se esgota numa proporção muito superior à que a mera soma numérica do trabalho acusa” (MARX, 1982, p.178), terá um salário insuficiente para repor a sua força de trabalho; e ainda que o capital pague “salários mais altos” e que o “valor do trabalho diminua”, essa relação se mantém enquanto o aumento salarial não corresponder “à maior quantidade de trabalho extorquido e ao mais rápido esgotamento da força de trabalho que daí resultará” (MARX, 1982, p.178).


A ousadia do capital contra os salários

Como vimos até aqui, as mudanças na lei, que isoladas parecem ser pequenas, tomadas em conjunto, vão se tornando relevantes. Entretanto, também há aquelas medidas mais explícitas que demonstram de maneira mais decidida as intenções dos gestores políticos que formularam a lei.

Em uma perspectiva de redução mais direta dos salários, o novo artigo 457, § 2º diz que as “importâncias” pagas, mesmo que habitualmente, “a título de ajuda de custo, auxílio-alimentação”, bem como as “diárias para viagem, prêmios e abonos não integram a remuneração do empregado”, fazendo com que elas não sejam incorporadas ao contrato de trabalho, nem à “base de incidência de encargo trabalhista e previdenciário”. Da mesma forma, o § 5º do artigo estabelece que a alimentação fornecida pela empresa, “seja in natura”, seja por “tíquetes, vales, cupons”, não possui “natureza salarial” (BRASIL, 2018, p.136). Assim, tais parcelas podem ser legalmente suspensas pelo empregador.

Como dizem respeito à subsistência do trabalhador, esses valores são objetivamente parte do salário, e sua suspensão configura redução salarial. Trata-se, portanto, de um rebaixamento forçado dos salários abaixo do valor dos bens de subsistência, pressionando-os abaixo do valor da força de trabalho, artifício que pode transformar, “dentro de certos limites, o fundo necessário de consumo do trabalhador num fundo de acumulação de capital” (MARX, 2013, p.675).

Por outro artifício, o artigo 458 institui que, além de pagamento em dinheiro, o salário compreenderá a “habitação, o vestuário ou outras prestações in natura”, “por força do contrato ou do costume”, que o empregador fornecer “habitualmente ao empregado” (BRASIL, 2018, p.137). Similarmente, os proprietários fundiários demonstraram correspondentes intenções no texto de um Projeto de Lei de 2016, posteriormente arquivado, do deputado federal Nilson Leitão, o qual permitia, no artigo 3º, o pagamento do trabalhador rural “mediante salário ou remuneração de qualquer espécie” (BRASIL, 2016b, p.1).

Há muito eliminada da maioria das legislações trabalhistas, Dobb (1977, p.81-2) mostra como essa prática, nomeada de sistema de pagamento em gêneros, causa “abusos consideráveis”. Não raramente, o patronato fornecia alimentos e outras mercadorias “de má qualidade, [ou que] valessem menos do que o salário combinado”, podendo também estar associados à estabelecimentos específicos que “cobrassem do operário preços exorbitantes”. A prática, portanto, atua no mesmo sentido de rebaixamento forçado dos salários abaixo dos bens de subsistência, pois “enseja ao empregador ocasiões de ‘dar uma boa mordida’ nos salários que paga”, reduzindo-o como puder.

Ainda em 2017, tivemos edição da chamada Lei da Terceirização, que nada mais é que a liberação total dessa forma de contratação. Se antes havia apenas a permissão da terceirização das “atividades-meio”, o novo texto da Lei nº 6.019 de 1974, no artigo 4º-A, estabelece que empresas podem ter a “execução de quaisquer de suas atividades” por terceirizadas, inclusive a “sua atividade principal”, a chamada a “atividade fim”. A lei esclarece que a “empresa prestadora de serviços”, a terceirizada, é quem “contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores”, ou que “subcontrata outras empresas para realização desses serviços”, permitindo, portanto, que a empresa contratada ainda contrate outra empresa para executar a atividade. Para não restar dúvidas, o § 2º afirma que não configura “vínculo empregatício entre os trabalhadores” dessas “empresas prestadoras de serviços” e a “empresa contratante” (BRASIL, 1974).

A possibilidade de que uma empresa capitalista transfira a execução de qualquer uma de suas atividades a outra empresa é a legalização ampla da subcontratação da força de trabalho. Garantindo que a empresa contratante seja excluída o máximo possível da relação jurídica, pulveriza-se o vínculo trabalhista, evitando, em larga medida, que as ações judiciais acessem os fundos do grande capital para reparar violações feitas contra trabalhadores. Mas não apenas isso. Dados de 2014, de quando a terceirização ainda se restringia às “atividade-meio”, apontam que os salários das atividades tipicamente terceirizadas eram, em média, 27% menores que os salários de atividades executadas por trabalhadores contratados, além do fato de terceirizados trabalharem cerca de 3 horas a mais durante a semana em relação aos empregados contratados (DIEESE, 2017, p.8). O modelo também possibilita o pagamento valores menores e com menos benefícios já que trabalhadores terceirizados não constituem legalmente a mesma categoria sindical dos trabalhadores contratados, o que ajuda a refrear os pedidos de equiparação salarial. Através de diferentes formas de contrato, na terceirização o empregado pode até mesmo ser contratado como pessoa jurídica prestadora de serviços.

Com a generalização da terceirização a tendência é de que as grandes empresas contratantes busquem por empresas prestadoras com custos cada vez menores, acirrando a competição entre estas últimas para oferecer serviços mais baratos, o que baixa seus ganhos, e que podem ser compensados retirando da massa salarial. Trata-se, portanto, de empresas que “negociam” no mercado o preço da força de trabalho. A terceirização, portanto, guarda semelhança, ao menos no aspecto do avanço sobre os salários, com um antigo sistema chamado “subempreitada” que, em um momento histórico anterior à expansão das fábricas,


o capitalista dava trabalho por determinado preço a um capataz ou subempreiteiro, o qual, por seu turno empregava trabalhadores para fazerem o serviço. O subempreiteiro obtinha seu lucro conseguindo que o trabalho fosse feito por um preço inferior ao que ele ajustara com o empregador; e, em consequência disso, era induzido a reduzir ao mínimo os salários que pagava. Se o empregador diminuísse o preço da empreitada, ele por sua vez, diminuía os salários que pagava aos seus homens. (DOBB, 1977, p.78).


Curiosamente, Dobb afirma que, em meados do século XIX, na Inglaterra ainda se construíam ferrovias usando esse modelo de emprego, mas que àquela altura em que escrevia, nos anos 1920, a subempreitada era extremamente rara, sendo que “todos reconheciam que o sistema é mau”. Essas situações excepcionais eram “reguladas por acordos sindicais”, de maneira que os sindicatos se mostraram quase sempre hostis ao sistema” (DOBB, 1977, p.79), fato que, em certa medida, pode comprovar a intensificação da terceirização diante do enfraquecimento dos sindicatos.

O novo governo eleito em 2018, de Jair Bolsonaro, logo que pôde editou uma MP, para que não dependesse dos trâmites legislativos, contra os salários. Assim deu-se a edição da Medida Provisória nº 905, vigente entre novembro de 2019 e abril de 2020, que instituiu a chamada “carteira de trabalho verde e amarela”. Em sua exposição de motivos, o ministro da economia Paulo Guedes diz que os objetivos são “estabelecer mecanismos que aumentem a empregabilidade”, “simplificar e desburocratizar normas”, além de racionalizar “procedimentos que envolvam a fiscalização e as relações de trabalho”. Ainda segundo Guedes, o novo contrato criaria “oportunidades para a população entre 18 e 29 anos que nunca teve vínculo formal” “ao simplificar a contratação do trabalhador”, reduzir os “custos de contratação e dar maior flexibilidade ao contrato de trabalho”.

O contrato, por “acordo entre empregado e empregador” – isto é, acordo individual em que tende prevalecer o interesse do capital –, poderá versar sobre matérias como adicional de férias, décimo terceiro salário e multa rescisória sobre o FGTS, de modo que essa “flexibilidade permitirá que empregadores e empregados encontrem a melhor forma de pagamento dessas obrigações” (BRASIL, 2019c, p.1). Mas a redução direta do salário se dava através do artigo 15, § 3º, que permitia, também através de acordo individual, o empregador contratar um seguro privado de acidentes, reduzindo o adicional de periculosidade pago diretamente ao empregado de 30% sobre o salário-base para a alíquota de 5%. Além disso, o § 4º restringiu as hipóteses em que incidia este adicional, já que a “exposição permanente do trabalhador” passou a ser caracterizada como “efetivo trabalho em condição de periculosidade por, no mínimo, cinquenta por cento de sua jornada normal de trabalho” (BRASIL, 2019c).

A medida impactava nos salários na medida em que o adicional de periculosidade é recebido mensalmente, sendo gasto na reprodução da força de trabalho. Contratando um seguro privado, é provável que o empregador pague mensalmente muito menos à seguradora do que paga diretamente ao trabalhador.

Pudemos observar também que a pandemia do novo coronavírus criou enormes possibilidades para aqueles que pretendem atacar os salários. Assim, em abril de 2020, o gabinete presidencial editou a Medida Provisória nº 936, chamada de “Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”. O contrato de trabalho pode ser suspenso para que o empregado participe de “curso ou programa de qualificação profissional”. Essa suspensão do contrato poderia ser acordada individualmente com o empregado, sendo facultado ao empregador conceder ao empregado ajuda compensatória mensal sem natureza salarial e com valor definido entre empregado e empregador.

Outra possibilidade era o uso do acordo individual para que o empregador possa alterar o regime de trabalho presencial para o teletrabalho - sempre lembrando de todas as consequências dessa modalidade, a qual já abordamos. O texto explica que o empregador “poderá reduzir proporcionalmente a jornada de trabalho e o salário de seus empregados por até 90 dias”, respeitando o valor do “salário-hora”, de maneira que será aplicado ao “valor previsto pelo seguro desemprego o mesmo percentual da redução da jornada de trabalho” (BRASIL, 2020b, p.1-3).

Apesar da MP ser calcada no argumento do caos causado pela pandemia, nenhuma medida de distanciamento social ou outra atitude sanitária relevante foi tomada pelo governo Bolsonaro. Sem nenhum planejamento centralizado, o Governo Federal editou tal medida sabendo que não há o mínimo controle e fiscalização das reduções de jornadas em cada caso particular de modo que se possa respeitar a redução proporcional do trabalho.

A questão fundamental da medida é confusa e mais parece um cipoal jurídico. Só com uma leitura atenta das Seções II, III e V (BRASIL, 2020b) percebe-se que a redução salarial feita pelo empregador obedecerá às porcentagens de 25%, 50% e 70% sobre determinadas faixas salariais. Nesses casos, o Estado também pagará o percentual do valor reduzido do salário sobre o valor total do seguro-desemprego. Para que fique claro, vamos recorrer ao exemplo de um trabalhador que receba algo próximo de um salário de R $2.000. Reduzindo a jornada de trabalho e o salário em 25%, o patrão deverá pagar 75% desse salário, o que corresponde a R $1.500. O Estado pagará o valor de 25% sobre o seguro-desemprego - que normalmente corresponde em sua integralidade a R $1.479,89. Assim, o patrão economizará R $500, o governo complementa com R $369,98, e o trabalhador receberá um salário de R $1.869,98, tendo sua renda reduzida em R $130,02.

O empregador não necessita mais despedir o trabalhador e arcar com os custos trabalhistas, do mesmo modo que também não precisa manter o seu salário integral. Trata-se de um mecanismo simples que permite à empresa destinar menos recursos para a renda dos trabalhadores e acrescentar mais a sua própria renda.

A medida foi convertida na Lei nº 14.020 em julho de 2020 e, mais recentemente, em agosto de 2021, o governo buscou editar um “Novo Programa Emergencial”, MP 1.045. Não tivemos tempo suficiente para analisar cuidadosamente tal medida, mas é visível que há nela - depois de ter sido ainda mais recheada pela Câmara de Deputados com novas alterações - criação de modalidades contratuais que possibilitam a exclusão do direito a férias, décimo terceiro salário e FGTS; reduz pagamento de horas extras para algumas categorias como bancários e operadores de telemarketing; restringe o acesso à justiça gratuita e proíbe juízes de anular pontos de acordos extrajudiciais firmados entre empresas e empregados. É notável também que a medida tente aumentar o limite da jornada de trabalho de mineiros, uma vez que na indústria extrativa, o “objeto de trabalho” – metais, minerais etc. – não foi “produzido por um trabalho anterior”, sendo fornecidos, por assim dizer, “gratuitamente pela natureza”. Desse modo, o capital constante é composto “quase exclusivamente” por “meios de trabalho que podem suportar muito facilmente uma quantidade de trabalho aumentada”. Logo, “a massa e o valor do produto aumentarão na razão direta do trabalho empregado” (MARX, 2013, p.678).


Fraude como máxima do capital

Analisando os diferentes dispositivos das leis e as determinantes conjunturais, mais do que a legalização das possibilidades de redução dos salários, foi inevitável perceber a possibilidade do rebaixamento salarial naquilo em que a lei não fala, isto é, não legaliza, mas facilita que ocorra. Pois como forma ideológica que prima pelo solapamento da realidade social, a operação mais básica do direito é proclamar a igualdade formal entre indivíduos de modo que esta oculte a desigualdade material entre eles. Sob a lei da troca de mercadorias, o capitalista, como comprador, quer fazer valer seu direito de máximo aproveitamento da mercadoria que comprou e o trabalhador, enquanto comprador, quer ter sua mercadoria poupada do uso abusivo. Assim sendo, é evidente que “entre direitos iguais, quem decide é a força” (MARX, 2013, p.309).

A fraude é antiga companheira do capital. Os capitalistas e seus gestores há muito lançam mão da burla como meio de satisfação de sua avidez pelo lucro, tal como mostra Marx ao transcrever relatórios de inspetores de fábricas da Inglaterra da segunda metade do século XIX.


O fabricante fraudulento [...] subtrai 5 minutos tanto no início como no final da 1/2 hora nominalmente reservada ao café da manhã, e mais 10 minutos tanto do início como no final da hora destinada ao almoço. Aos sábados, ele trabalha até 1/4 de hora depois das 2 da tarde – às vezes mais, às vezes menos. Desse modo, seu ganho é de: Ou 5 horas e 40 minutos por semana, o que, multiplicado por 50 semanas de trabalho ao ano, depois de subtraídas 2 semanas relativa aos feriados e a interrupções eventuais, totaliza 27 horas de jornadas de trabalho. (MARX, 2013, p.314-15).


Se tal prática parece pouco compensatória para o capital aos olhos do leitor, as palavras de um capitalista a um dos inspetores da época são bem ilustrativas,


“Se permitires” – disse-me um fabricante muito respeitável – “que eu faça com que meus operários trabalhem diariamente apenas 10 minutos além do tempo da jornada de trabalho, colocarás em meu bolso £1.000 por ano.” “Os pequenos momentos são os elementos que formam o lucro.”. (MARX, 2013, p.317).


Nesse sentido, o artigo 4º da CLT - que define como “serviço efetivo” aquele “período em que o empregado esteja à disposição do empregador”, seja “aguardando ou executando ordens” - ganhou com a reforma de 2017 um § 2º que estabelece que não configura “tempo à disposição do empregador” os casos em que o empregado, “por escolha própria, buscar proteção pessoal, em caso de insegurança nas vias públicas ou más condições climáticas”, bem como ao “adentrar ou permanecer nas dependências da empresa para exercer atividade particulares” como “descanso”, “estudo”, “alimentação”, “higiene pessoal” ou “troca de roupa ou uniforme, quando não houver obrigatoriedade de realizar a troca na empresa” (BRASIL, 2018, p.95). Desse modo, é possível que a “força de vontade”, a “garra” e o “esforço” incontroláveis do trabalhador – entre outras expressões do peculiar dialeto contemporâneo do mundo empresarial – se tornem justificativas para o puro e simples, e nem tão contemporâneo, prolongamento da jornada. Como mostra, mais uma vez, o inspetor inglês do longínquo século XIX,


“Muitas vezes, quando flagramos pessoas trabalhando durante a hora da refeição ou em outras horas ilegais, ouvimos a evasiva de que esses trabalhadores não querem de modo algum deixar a fábrica e precisam ser forçados a interromper o seu trabalho” (limpeza das máquinas etc.), “especialmente ao sábados. [...].”. (MARX, 2013, p.315).


Na Lei da Liberdade Econômica, de nº 13.874 – antiga MP 881 – a intencionalidade é a mais evidente. Alterando artigo 74, § 2º da CLT, o texto permite que empresas de até 20 trabalhadores não sejam obrigadas a anotar diariamente a hora de entrada e de saída de seus empregados e, pelo § 4º, dá prerrogativa para que os empregadores passem a usar apenas o “registro de ponto por exceção à jornada regular de trabalho” (BRASIL, 2019). Trata-se de uma típica permissividade que facilita largamente a adulteração dos registros de jornada de trabalho por parte da gerência capitalista.

Ao contrário do que possa parecer, a crise econômica que se arrasta no atual momento, evidenciada por certa paralisia da produção durante a pandemia do novo coronavírus, não reduz a avidez do capital por tempo de trabalho. Como nos revela Marx acerca do período conturbado de 1857-1858,


As crises em que a produção é interrompida e as fábricas trabalham apenas “por pouco tempo”, durante alguns dias da semana, não afetam em nada, naturalmente, o empenho pelo prolongamento da jornada de trabalho. Quanto menos negócios são feitos, maior deve ser o ganho sobre o negócio feito. Quanto menos tempo se trabalha, maior é o tempo excedente de trabalho a ser extraído. (MARX, 2013, p.315).


É nesse sentido que, no tópico sobre a Lei do Programa Emergencial, destacamos a ausência de qualquer planejamento pelo Governo Federal, ainda que a crise econômica – reputada falsamente como mera “crise sanitária” – fosse a justificativa para a redução salarial proporcional à redução da jornada. Sem nenhuma forma legal de fiscalização de cumprimento de jornadas reduzidas, a lei poderia perfeitamente se configurar como um subterfúgio para o aumento da intensidade do trabalho e para a extensão ilegal da jornada. Assim, diante da elasticidade característica da força de trabalho, da maneira prolongada com que ela se desgasta enquanto está gerando valor – pois não pode ser reduzida matematicamente tal qual as máquina e equipamentos que transferem valor às mercadorias – um inspetor inglês relata que


“Para muitos fabricantes, o lucro extra a ser obtido com o sobretrabalho além do tempo legalmente estabelecido parece ser uma tentação grande demais para que possam resistir a ela. Eles consideram a probabilidade de serem descobertos e calculam que, mesmo que sejam apanhados, o pequeno valor das multas e dos custos judiciais ainda lhes garante uma boa margem de ganho.” “Nos casos em que o tempo adicional é obtido pela multiplicação de pequenos furtos (a multiplication of small thefts) no decorrer do dia, os inspetores se deparam com dificuldades quase intransponíveis para a obtenção de provas da infração.”. (MARX, 2013, p.316).


Se nem mesmo o temor da punição costuma impedir o capitalista ou gestor fraudulento, mal pode-se imaginar as consequências de um artigo como o 59-B da CLT, no qual está dito que o não cumprimento das “exigências legais para compensação de jornada” extrapolada, inclusive no caso de acordo tácito, “não implica a repetição do pagamento das horas excedentes à jornada normal diária se não ultrapassada a duração máxima semanal” que era a forma de punição legal anterior à reforma; agora o empregador deverá “apenas o respectivo adicional” (BRASIL, 2018, p.102). De tal modo, abolida a punição nesses casos, ao desrespeitar o limite da jornada, sobre o empregador não recairá nada além do mero pagamento ao que já era devido.

Mas a fraude não está apenas na extensão da jornada de trabalho. Com a reforma trabalhista, é possível identificar a intenção da burla no já citado artigo 59 da CLT que, ao permitir o acréscimo de 2 horas extras diárias “por acordo individual”, não exige mais que o acordo seja estritamente por escrito (BRASIL, 2018, p.101). O acordo tácito entre patrão e trabalhador, presente também nos § 5º e § 6º do mesmo artigo como instrumento de adesão ao chamado “banco de horas” e adoção de regime de compensação de jornada, pode se tornar uma excelente ferramenta de constrangimento sobre o empregado, fazendo com que ele aceite condições desfavoráveis. Em última instância, o acordo tácito, diante dos tribunais, é “palavra contra palavra”, o que ajuda enormemente na vantagem que o capitalista possui naturalmente sobre o empregado.

Em outra circunstância, ainda que haja necessidade de um contrato escrito, o regime de teletrabalho estabelece, pelo artigo 75-D da CLT, que a “aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos” e da “infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto” serão “previstas em contrato escrito”. Não bastasse isso, o artigo 75-E diz que cabe ao empregador instruir ao trabalhador “precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho”, de modo que, pelo parágrafo único do artigo, o trabalhador “deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador” (BRASIL, 2018, p.104). Assim, se no primeiro caso o trabalhador fica à mercê da pressão que o poder do capital exerce sobre ele fazendo-o negociar a respeito de seus instrumentos de trabalho – que de maneira fraudulenta pode ser descontado de seu salário, ainda que isso seja expressamente proibido – no segundo caso, a saúde e os acidentes de trabalho, que historicamente passaram a recair sobre a responsabilidade do patronato, agora podem deixar de sê-lo.

Com similar modus operandi, o artigo 507-B da CLT permite que trabalhadores e patrões, “na vigência ou não do contrato de emprego”, estabeleçam o “termo de quitação anual de obrigações trabalhistas”, que, segundo o parágrafo único, “discriminará as obrigações de dar e fazer cumpridas mensalmente” e “constará a quitação anual dada pelo empregado” tendo “eficácia liberatória das parcelas nele especificadas” por parte do empregador. Assim, também se estabelece um tipo de situação que possibilita a exposição do empregado à pressão do empregador. Ainda que seja necessária a assinatura do termo “perante o sindicato dos empregados da categoria” (BRASIL, 2018, p.144), não se deve deixar de cogitar a hipótese que, diante da ameaça do desemprego, o trabalhador não deseje a oposição do sindicato a qualquer condição contratual, cedendo, mesmo que em desvantagem, ao patronato.

Entretanto, a eficiência da fraude seria reduzida diante da possibilidade da fiscalização. Não por coincidência, os sindicatos foram alvo central da ofensiva legislativa, como já mostramos. Mas as relações de trabalho sempre se mantiveram relativamente escrutinadas pelos órgãos estatais, principalmente pelo braço judiciário especializado, a Justiça do Trabalho.

Essa fiscalização é, em grande parte, derivada do papel histórico que assumiu o direito do trabalho na formação do capitalismo brasileiro. A densa estrutura estatal dedicada a este ramo, a despeito de descontinuidades, encarnou, e encarna, a concepção inaugurada pela CLT varguista de que – para que a reprodução do capital se perpetue sem grandes dificuldades – a parte mais fraca da relação jurídica, o trabalhador, deve ser tratada como tal. Não por outra razão, os gestores políticos expressam tão eloquentemente a sensação de que falta liberdade negocial e de que é extremada a intervenção do Estado nas relações trabalhistas. Daí resulta a investida da legislação contra as normas processuais trabalhistas.

Nos últimos anos, novos casos na Justiça do Trabalho vinham crescendo constantemente, chegando a aumentar 25% em 2016 quando comparado com o ano de 2010 (TST, 2019, p.11). Tais números não são mais que a comprovação de que o ramo judicial trabalhista nada mais vinha fazendo do que desempenhar a tarefa histórica para qual foi criado, amortecer os conflitos entre capital e trabalho dando vazão a eles pela via jurídica. Por essa razão, a reforma de 2017 buscou criar na CLT empecilhos para que o empregado acione a Justiça do Trabalho. Tendo início no artigo 790, § 3º, que tornou a concessão de gratuidade da justiça uma faculdade do magistrado, a inovação legislativa criou, no artigo 844, a possibilidade de que o trabalhador arque com as custas do processo. Além disso, há previsão de hipóteses em que os honorários advocatícios do empregador, artigo 791-A, § 4º, bem como as despesas periciais, artigo 790-B, recaiam sobre o trabalhador, ainda que a ele tenha sido concedida a gratuidade. No mesmo sentido, segundo o artigo 793-A, o empregado que ingressar na justiça ainda pode responder por litigância de má-fé caso o juiz assim entenda (BRASIL, 2018, p.184- 90). Assim, sem nenhuma pretensão de fazer algum tipo de futurologia, é no mínimo curioso que, após tais mudanças procedimentais do processo trabalhista, no período de um ano, entre 2017 e 2018, o número de novas ações caiu em 21% (TST, 2019, p.11).

A extinção do Ministério do Trabalho pelo governo Bolsonaro em 2019 veio acompanhada também de uma drástica redução de mais de 50% do orçamento destinado à fiscalização trabalhista (RESENDE; BRANT, 2020). Porém, esse não é propriamente um itinerário novo por parte dos gestores políticos, uma vez que


De 1802 a 1833, o Parlamento [inglês] aprovou cinco leis trabalhistas, mas foi esperto o bastante para não destinar nem um centavo para sua aplicação compulsória, para a contratação dos funcionários necessários ao cumprimento das leis etc. Estas permaneceram letra morta. (MARX, 2013, p.350).


Não bastasse isso, o Ministério da Economia (2019) do governo Bolsonaro instituiu o Grupo de Altos Estudos do Trabalho – GAET – dedicado a tirar conclusões sobre a realidade brasileira para propor uma nova rodada de alterações legislativas a respeito das relações trabalhistas. Com palavras já conhecidas por nós de outros documentos legais, a portaria que institui o GAET pretende, entre outras coisas, “avaliar o mercado de trabalho brasileiro sob a ótica da modernização das relações trabalhistas” e a “simplificação e desburocratização de normas legais”.

Nesse sentido também, é revelador o incômodo público do alto escalão da burocracia especializada na gestão da força de trabalho, como é o caso do chefe do Ministério Público do Trabalho procurador-geral Ronaldo Fleury, que declarou publicamente que nos últimos quatro anos “tivemos um movimento muito direcionado à flexibilização da legislação trabalhista e, ultimamente, à extinção da legislação trabalhista” ( Sakamoto, Leonardo, 2019), indicando que as leis recentemente editadas parecem desafiar e, em alguma medida, desmantelar a função de mediação entre capital e trabalho historicamente atribuída a essa estrutura jurídica do Estado brasileiro ao dificultar que tarefas fiscalizatórias e punitivas sejam cumpridas.

Portanto, sendo a intenção de rebaixar os salários nada mais é do que a necessidade do próprio ser do capital de se expandir a partir da exploração da força de trabalho, a aprovação da lei que analisamos – mesmo que ainda não saibamos seus resultados práticos – é uma posição de vantagem que galgou o capital nas atuais circunstâncias.


Conclusões parciais

Diante de tudo aquilo que pesquisamos, nos deparamos com um interessante caso que Marx cita sobre a legislação implantada pela Rússia nos antigos Principados do Danúbio em 1831 (Cf. MARX, 2013, p.311-13.). A lei chamava-se Règlement organique e legalizava a crescente usurpação da classe dominante local sobre o campesinato; de maneira que o camponês valáquio livre teve o produto de sua terra comunal convertido no obrigatório pagamento da corveia. O velho alemão afirma que tal legislação “foi uma expressão positiva da avidez por mais-trabalho, legalizada a cada parágrafo”. Por outro lado, Marx cita as Factory acts inglesas da década de 1850


que refreiam o impulso do capital por uma sucção ilimitada da força de trabalho, mediante uma limitação compulsória da jornada de trabalho pelo Estado e, mais precisamente, por um Estado dominado pelo capitalista e pelo landlord. (MARX, 2013, p.313).


Neste caso, Marx (2013, p.313) afirma que a lei inglesa é “uma expressão negativa dessa mesma avidez”, demonstrando como a gestão política estatal pode atuar contrariando os interesses imediatos de alguns setores do capital. O objetivo patente de tais medidas estatais é evitar que problemas como esses “obstruam a acumulação de capital num contexto mais amplo” (JORGE, 2019, p.75), contendo não apenas revoltas populares, mas também as ameaças à reprodução da força de trabalho devido a altos índices de exploração - como nos casos de fome e miserabilidade da população. Em suma, os gestores políticos atuam racionalizando no plano social “questões que o capital não pode solucionar individualmente”, ainda que nem sempre plenamente conscientes desse papel, mas certamente em vantagem sobre os capitalistas individuais. As contradições sociais se transmutam ao “plano político, administrativo, militar e jurídico ao invés de se resolver no plano econômico pelo embate direto entre as classes” (PAÇO CUNHA, 2019, p.63).

Fazer qualquer afirmação sobre o futuro dos salários tendo por base apenas os dados que apresentamos seria imprudente. Entretanto, é perceptível na lei o elemento de intencionalidade em reduzir, ou permitir que o gestor do capital reduza, os rendimentos do trabalho. Isso fica ainda mais evidente quando temos em conta que a CLT varguista correspondeu às necessidades da industrialização dos anos 1930, sendo a legislação o palco principal da gestão da força de trabalho. O notável papel do direito como instrumento para garantir uma reprodução segura do capital - por mais que os capitalistas individuais nem sempre estivessem de pleno acordo e que coubesse ao Estado levar a cabo tais medidas -, nos permite afirmar que, no atual patamar de acumução capitalista no Brasil, a resposta ao aumento da massa salarial ocorrido nos últimos anos necessita que a legislação trabalhista, produto de um outro momento da acumulação do capital, seja enterrada. Assim, contando com a ausência da classe trabalhadora enquanto força política organizada e com a impopularidade do Partido dos Trabalhadores, dirigente das classes populares durante o último período histórico de lutas sociais, o capital parece ter encontrado o momento ideal de sua ofensiva. Mas devemos sempre ter claro: a efetividade dessas medidas jurídicas em realmente rebaixar os salários só o futuro pode nos dizer.


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