‘A burguesia fede; a burguesia quer ficar rica;
enquanto houver burguesia, não vai haver poesia’ – Cazuza, “Burguesia”.
Em 1995, Eric Hobsbawm publicava “A era dos Extremos”, livro que encerra a tetralogia “das eras”. Em um contexto marcado por quatro anos depois da desintegração da URSS e seis anos depois da queda do muro, Hobsbawm tinha uma apreciação que era bastante arriscada para ser dita naquele contexto de euforia liberal e neoliberal, e na ofensiva da OTAN. Para se ter uma ideia, o livro que mais vendia, na época, era o livro de Francis Fukuyama, “O fim da história e o último homem” (1991), uma obra em que seu autor defendia a ideia de que a história tinha chegado ao fim, uma ideia toscamente “hegeliana”. Passados pouco mais de 30 anos da obra, parece que o esquecimento, veja só, foi justamente o fim destinado a este livro.
Foi Hobsbawm que também, em 1995, alegou que qualquer um que entrasse no século XXI apostava que o mundo seria “estável”, uma vez que o mais provável era que esse século fosse repetir os dois séculos anteriores. E assim Hobsbawm seguiu-se como um historiador consagrado: o mundo de fato continuou em guerras (civis ou interregionais), com imperialismo, intervenções, golpes e contragolpes, mas também com revoluções. O mesmo diagnóstico fez, por exemplo, a cientista política Ellen Wood, em seu “O império do capital”, afirmando que o capitalismo não pode transformar a si mesmo sem também modificar formas culturais de vida.
Assim, por mais que possa parecer que em nosso contexto, fazer um breve apontamento de conjuntura política seja relativamente simples, entender as “formas culturais de vida” sob a lógica de mercado (categorias como, fetichismo e indústria cultural, etc.), é tarefa complexa que exige perspicácia para notar várias sutilezas. Guy Debord, com seu “A sociedade do espetáculo” (publicado no final dos anos 60), pode ser uma baliza para entender como, por exemplo, o escândalo da Cambridge Analytica evidenciou como foram conduzidas, em colaboração com essas redes, experiências político-digitais com vistas a produzir um determinado comportamento eleitoral e, mais do que isso: direcionar conteúdos tendenciais ao público diretamente.
Nas primeiras décadas do séc. XX boa parte das produções artísticas (literária, dramaturgia, cinematográfica, etc.) passavam, generalizando, a ideia de um progresso: homem descobrindo feitos científicos, a busca pela reconciliação no mundo, as buscas pelas distopias (de Huxley e Orwell), etc.; entretanto, por outro lado, havia o estranhamento (Brecht), o monólogo interior (Tchekov, Beckett, etc.) e a impotência de realizar-se na efetividade (“O homem sem qualidades”, de Musil, “O estrangeiro”, de Camus). Desde os anos 1970–80 vemos um retorno dessa dominante cultural trágica, agora baseada no apocalipse zumbi, nuclear, viral, no perigo e no conflito, intercalada com momentos de reativação de uma nova possibilidade de contenção social, de consenso social. Nesse período vale analisar o caso do Brasil, pensando principalmente em países de “economias emergentes”.
Em nosso caso, a ditadura (1964-1985) no Brasil cortou pela raiz o processo de amadurecimento político das bases político-culturais, especialmente dos trabalhadores, além de impor o crescente isolamento social ao mundo universitário com a reforma presidida pelo acordo MEC/USAID aplicada a partir de 1968. A ditadura militar, como também foi o caso da ditadura Vargas, no “Estado Novo”, moldou uma parte considerável da consciência popular, tanto que até hoje muitas pessoas fazem referências saudosistas a esses governos. A chegada da crise da dívida e o ascenso do movimento de massas destruíram a legitimidade da ditadura e mudaram a hegemonia da sociedade brasileira. Nos anos 1980, nas grandes cidades, enquanto talvez a maioria da população fosse vagamente social-democrata de esquerda a extrema-direita brasileira, até idos dos anos 1990, era sinônimo de grupos isolados neonazistas, ou mesmo de políticos considerados exóticos e bizarros, como o caso de Enéas Carneiro.
Foi neste caldo cultural que o Movimento Tropicalista, nos anos 70, partindo da música popular brasileira como o “epicentro” de eclosão, tratou-se de um espectro cultural mais amplo e diretamente conectado à emergência, em um pós AI-5, do que se convencionou chamar de marginália, aproveitando-se de aberturas e rupturas estabelecidas pelos artistas durante a breve aventura da Tropicália. Abrindo espaços para a renovação da cultura brasileira, a Tropicália transbordou a caixa de categorização de diversos setores artísticos: Glauber Rocha, Hélio Oiticica, Torquato Neto, Gal Costa, etc. todos eles artistas do híbrido, da mescla e confluência entre vertentes, sempre “desafinando o coro dos contentes” (para lembrar exatamente um verso de Torquato, musicado por Jards Macalé em “Let’s Play That”).
Fazer esse giro histórico significa fazer um paralelo, no plano cultural, entre o ambiente da cena 2018-2022 e os demais períodos como os por nós comentados, em que se deram o levante de pautas do pensamento conservador/reacionário no século XX. No caso do período mais recente, os debates acerca de pautas como o porte de armas, a criminalização do aborto, o “Escola Sem Partido”, a “ideologia de gênero”, o fantasma do “comunismo”, dentre outros “fantasmas” foram utilizados como ferramenta de compensação por uma coalização de direita, conservadora e retrógrada que enquanto proclamavam esses absurdismos, forjavam a base que conferia certa estabilidade ao governo Bolsonaro. No entanto, as classes populares sofrendo com a incapacidade do governo de lidar com a agenda econômica – e no caso sanitário/saúde pública – até organizaram mobilizações para derrubar o governo nas ruas e sem obterem sucesso, conseguiram somente ver o Bolsonarismo ser derrotado através da via eleitoral que organizou uma coalizão que envolveu forças institucionais e atores da centro-direita.
No plano cultural esse interregno temporal foi marcado por uma catástrofe “monumental”. O Memorial da América Latina em 2013; Museu da Língua Portuguesa em 2015; Museu Nacional da UFRJ em 2018; Museu de História Natural da UFMG em 2020 e a Cinemateca Nacional em 2016 e 2021. O que há em comum entre eles? Todos foram queimados. Em 2 de setembro de 2018, o caso do Museu Nacional do Rio de Janeiro, consumido pelas chamas, repercutiu internacionalmente, devido à importância da instituição que contava com 200 anos recém-completados e era um dos mais ricos acervos de antropologia e história natural da América Latina. A Ancine (Agência Nacional de Cinema) foi estrangulada; A destituição do MinC (Ministério da Cultura) se deu já no primeiro dia de 2019. O Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) foi atacado, reduzido à “entrave para empresas” fazerem “empreendimentos em lugares e regiões de proteção cultural e histórica”. E quando, em 2021, a Cinemateca pegava fogo, Bolsonaro fazia uma live constrangedora em todos os sentidos (menos para sua base relinchante): STF “comprometendo” as instituições e as “fraudes eleitorais”.
Talvez, a maior tragédia no Brasil, não sintomaticamente, tenha sido ele próprio. A Secretaria da Cultura, viu passar um Goebbels tupiniquim (Ricardo Alvim, demitido logo após replicar discurso nazist@), uma famosa ex-atriz que debochou do luto dos mortos por covid (Regina Duarte) e um um ex-ator medíocre e ressentido (o neanderthal Mário Frias). Inclusive, vale lembrar que a “Lei Rouanet", loucamente atacada eleitoralmente por Bolsonaro, promoveu, durante o governo Bolsonaro, financiamentos de produções “pró-armas” e conteúdos “anti-esquerdistas”.
No plano literário cinematográfico atual, a situação não é menos dramática –bem como na música, o processo é o mesmo. Salvo alguns exemplos, há uma chuva de livros exacerbadamente “autobiográficos”, descolados muitas vezes de uma narratividade que amarre mesmo o tom “pessoal” à estruturação poética do fazer literário. O fenômeno no qual o processo de politização obedece aos novos escritores e diretores brasileiros atinge outro “patamar”: a literatura, por exemplo, cortou seu cabelo, fez a barba, colocou sapatos de couro, um belo vestido ou uma gravata. Virou “o genro que mamãe pediu a Deus”. Vale destacar que a pasteurização crítica em escala industrial, não é novidade. Só se adequou às novas modas de “resistência”.
De fato, Indústria cultural não é sinônimo de arte popular. Tampouco é um adjetivo para designar “cultura de gente alienada” ou “arte reificada”. Não faz o menor sentido, para Adorno, utilizar essa expressão para designar programas e músicas específicos, pois a “indústria cultural” não é um conjunto de bens culturais (ou, “poder” ter algo, ou acesso a tal), já que também é uma crítica baseada em conceitos elementares da tradição marxista.
Ao olharmos as produções cinematográficas de “Intenso Agora” (2017) e “Democracia em Vertigem” (2019), respectivamente do herdeiro de um banco (João Moreira Salles) e da herdeira de uma empreiteira (Petra Costa), acompanhamos uma produção que usa “a mesmíssima configuração de um documentário em voice over monocórdica, de fusão entre a história pública e privada deles mesmos (como vítimas) em direção a uma inevitável decadência civilizacional, permeado por uma celebração da impotência e uma ausência de futuro”, como comenta o doutor em Teoria Literária, Lindberg Campos.
Um exemplo de produção engajada é o filme “Marighella” (2019), dirigido por Wagner Moura. Premiado fora do país, mas sofrendo boicotes (previsíveis) pelo governo federal, causou um frisson de uma melancolia revolucionária ao tratar de um guerrilheiro que tragicamente caiu por terra; mas, por outro lado, houve a ausência de colocações de situações, talvez compreendidas apenas por quem conhece a história de Carlos Marighella, ou sabe de detalhes de como funcionava a luta armada no Brasil (como se Marighella e ALN fossem apenas “apaixonados” pelo que faziam), em uma espécie de idealização do filme foi quase que uma “obrigação”, como se a linha narrativa do filme fosse uma “necessidade conjuntural” de um Brasil pós-2013 (o filme começou a ser gravado nesse período).
Outro filme que repercutiu nesse período, “Bacurau” (2019), dirigido por Kleber Mendonça Filho, passa-se em um vilarejo “heroico” que teve de expulsar o “imperialismo” pela força bruta (e não que isso seja por nós lido de tudo como absurdo, mas não é esse o ponto que se quer tratar aqui). O ideal conservador na ideologia é a distinção maniqueísta entre “mocinhos” e “bandidos” dentro do cinema, e os estereótipos para essas categorias de personagens, a violência espetacular (tipicamente Hollywoodianas), e os “finais felizes” (redentores) são apenas alguns exemplos. Equivalem-se, por exemplo, a dizer que “estamos do lado certo da história” (inteligibilidade histórica?).
Já o livro aclamado pela crítica foi “Torto Arado” (2019), de Itamar Vieira Jr., um modelo esquemático típico do jdanovismo soviético (a redenção deus ex machina) dos oprimidos; as composições beatas das personagens e a fé “ancestral” da terra (em alusão à defesa da reforma agrária), além de exaustivas descrições de imagens e objetos como se o público precisasse de “passar o tempo” até saber do enredo central.
Disso tudo, o que fica de lição para nós? Nesse contexto, 1) a destruição patrimonial por via de um governo desastroso em todos os sentidos deve ser entendida como parte do “programa” e não um caso de “desleixo” ou de “incompetência” política e 2) que as produções críticas na cena da construção cultural (artística) e politicamente interessada e consciente, a nosso ver, podem ter um papel fundamental dentro desse quadro de conflitos sociais. Pode-se notar que algumas produções artísticas tenham a força de tornar as proposições mais atraentes e com maior capacidade de circulação, além de formar artistas politizados dentro e fora dos movimentos sociais, coletivos e partidos políticos que produzam a defesa desses movimentos e partidos nas suas respectivas linguagens. Assim fez, por exemplo, Glauber Rocha no “cinema novo” e Graciliano Ramos em “Vidas Secas” (1937).
Atualmente, o livro de José Falero, publicado em 2020, intitulado “Os supridores”, que conta a história de dois amigos que vão para o crime de tráfico de drogas, tentando-se “livrar” da exploração do trabalho e da pobreza, é uma sátira do mito do “empreendedorismo” da “livre iniciativa” na sociedade capitalista. Dentro de limites, o livro – talvez pela pressa do mercado editorial – faltou melhor desfecho, ou composição, para sua interessante forma. Em 2023, estreia o filme “O pastor e guerrilheiro”, dirigido por José Eduardo Belmonte, trata de uma preservação da memória do passado de nossa experiência social (no caso da ditadura e o período da redemocratização) em diversos níveis (será que “atende” às expectativas?).
Para além das obras em suas especificidades, devemos olhar para os resultados das mobilizações dos produtores culturais/artísticos, iniciadas em 2020, com a Lei Aldir Blanc e da Lei Paulo Gustavo (voltado ao audiovisual). Esses seriam recursos de lei, que serão distribuídos aos 5.700 municípios do Brasil, aos 26 estados e ao Distrito Federal, independente de partido político ou mesmo de decisão do Ministério. A disputa por editais, Leis de incentivo a cultura – monetária –, de um lado, e o sufocamento de produções autorais (pintura, artesanato, etc.), seja no teatro (que não sobrevive de bilheteria), seja na literatura (apadrinhamento editorial), por outro lado, escanteadas pelos “financiamentos” coletivos que mal suprem os básicos de infraestruturas, materiais e de pessoal, devem chamar nossa atenção e mostrar nossos limites – mais especificamente, os limites das políticas públicas de Estado atuais para a cultura como se pudessem ser “monetizadas” ou “gerenciadas” .
Estamos aqui – em 2023 – após os anos de Bolsonaro e seus efeitos e as “formas culturais” reverberam nas urdiduras da sociedade brasileira em todos os sentidos. A campanha eleitoral do ano passado foi uma verdadeira “guerrilha” virtual de ambas partes. A ala bolsonarista, com a máquina de corrupção, violência e apelos sensacionalistas, viu-se contraposta por uma organização – quase desesperada – por uma ampla “frente democrática” diante da obscena e encarniçada “batalha” ideológica, que também marca pontos de cultura política. A questão que fica é a seguinte: é possível criar uma expressão cultural que seja, de fato, “resistente” a ponto de criar novas rupturas para formar uma “cultura”?
As grandes produtoras, editoras, companhias e também estúdios, antes de “revelarem” talentos, ou darem espaços criativos, visam atender um público já determinado, criam sensações frívolas ligadas às “estéticas” do presente, eliminando organizações autônomas e ideologicamente direcionadas às demandas populares. Um contraponto a isso – embora singular – poderíamos ver no filme “Eles não usam Black-Tie” (1981), baseado na peça de teatro de Gianfrancesco Guarnieri, cuja boa interpretação do Brasil da luta sindical na época constituiu o enredo do drama de uma família de operários fabris em dado período.
No ano passado, entretanto, uma aliança para um governo de amplíssima coalizão (Lula), “superou” a fraseologia anterior (Bolsonaro). Mas a incapacidade orgânica na sociedade civil paralisou iniciativas de nova “cultura política”. Talvez porque o verbo “fazer” do Brasil feliz de novo, nunca foi algo definitivo para nós. O mesmo vale para a cultura num todo. Quase não há sinal de “hegemonia” de esquerda nas formações ideológicas, muito menos uma organização cultural que tensione uma nova “consciência” prática. Existe o contrário. A perseguição da cultura, a massificação dos afetos, a “defesa” da catástrofe, a modulação da subjetividade em “caça-clicks”, a padronização do charlatanismo – “coaches” (influencers digitais) – e da insensibilidade coletiva são, de fato, a regra imposta pela subjetividade neoliberal.
Curiosamente, o exemplo da construção da “hegemonia da extrema-direita” que nos mostra o caminho a seguir. Em vinte anos, eles sem apoio da direita oficiais, conseguiram formular um discurso e enrolá-lo profundamente na sociedade, com pautas senão velhas do ponto de vista histórico, mas com adesão significativas em grupos neopentecostais crescentes que faziam “oposição” aos adeptos da “Teologia da Libertação” (liderados por padres e bispos “católicos de esquerda”). Talvez fique, neste caso, uma relevante lição de que a arte e a cultura, também, é uma práxis: ridicularizar o presente e criar um mundo que ainda não existe.
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