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Intelectualidade e luta de classes: uma crítica à postura tuísta - parte 2

por Vera Cotrim

Nota introdutória - segunda parte - da Revista Barravento

Nesta segunda parte do artigo da professora Vera Cotrim, vemos uma análise muito detida, embora relativamente extensa, da produção intelectual dos ideólogos do capitalismo. Em outros termos, a dita “classe intelectual”, atuante como testa de ferro da legitimação da divisão social do trabalho; da cisão entre produtores e produto (intelectualidade e “povo”). Os autores criticados por Cotrim, balizando-se pela peça brechtiana, mostra não apenas sua atualidade, mas também proporciona-nos uma reflexão da sátira da peça. Muito mais que uma caricatura, é sintoma de nossa tragédia moderna que configura a sociedade alienada pelo Capital.

Muitos intelectuais que, nos dias atuais, se colocam como críticos, mas que usam dessas alcunhas para adornar as profundas fissuras sociais postas pelo modo de produção; deixando também intactas alternativas que rompam, pois do contrário, é esse tipo social que os mantêm seus empregos e status de “pensadores”. Em resumo, ainda que diagnósticos críticos possam ser válidos, o que se critica as posturas dominantes de hoje é que essa suposta “classe intelectual” (curiosamente cada vez mais diluída pela subsunção dos trabalho formal e na precarização), cujo ímpeto estar em ser contra o “neoliberalismo”, e não contra a subsunção formal do proletariado à forma valor e ao sobre-trabalho; se põem contra o “neoliberalismo”, e não contra a propriedade privada dos meios de produção; são contra o “neoliberalismo”, e não contra o Estado Burguês e nem da abolição do assalariamento ( bem como da família patriarcal e estratos sociais).

Convidamos os leitores e as leitoras ao texto, cujo conteúdo foi exposto nesta segunda parte pela professora Vera Cotrim com uma análise de fôlego. Utilizando das referências que dão fluidez textual necessária, traz consigo um vasto conhecimento daquilo que se debate, e também salientando o papel da crítica teatral e artística em nosso tempo.



1. As soluções

2.1. Os discursos dos tuis

Dos muitos que se dispõem a falar no congresso das lavadeiras, Brecht nos brinda com três respostas que os tuis oferecem na Grande Conferência para explicar ao povo o paradeiro do algodão que todos sabem onde está. O primeiro tui que discursa para convencer o povo de que o império, tanto o chinês como o de algodão, nada têm a ver com o desaparecimento dessa importante matéria prima, culpa as vicissitudes da natureza e assim termina seu discurso:

Nós, intelectuais, em geral nos recusamos a formular argumentos simplistas, pois soam rasos, superficiais. Muito bem. Eu não vou me recusar. Onde foi parar o algodão? Eis aqui minha resposta irrebatível: foi uma safra ruim! (...) Em suma, não há algodão simplesmente porque o algodão não vingou (Ki Leh, reitor da Universidade Imperial. BRECHT, 1993, p. 141)

Como parte do povo ali presente é camponês, e sabe que as safras foram abundantes; como o próprio Sen, camponês que veio estudar na cidade, teve seu algodão confiscado, o discurso foi um fiasco e Ki Leh teve sua cabeça cortada.

Outro tui, Hi Wei, responde que o algodão desapareceu no transporte. Argumenta que, durante o regime desta casa imperial, a cultura se desenvolveu tanto que as pessoas passaram a utilizar muito mais algodão. Assim, são as crescentes exigências culturais de um povo em progresso que tornaram o algodão exíguo, já que a demanda ampliou. Com isso, o algodão não pôde chegar a Pequim. Sua proposta para enfrentar a crise do algodão é lançar mão de uma matéria prima alternativa para confeccionar as roupas: o papel. De fato, antes de seu discurso, ele presenteia Turandot com um vestido de papel enfeitado com poemas. E alardeia o grande privilégio de utilizar material tão nobre. Esse produto, nem é preciso dizer, tornou-se ilustre porque é o material de “nossos pensadores e poetas” (BRECHT, 1993, p. 147). Mas uma voz da plateia ironiza: “E que se proíba a chuva!”. O tui fica completamente desmoralizado e é levado. Turandot lamenta ter sido motivo de chacota.

Munka Du, o terceiro tui que ouvimos dentre os muitos que falaram e foram malsucedidos, faz um ardiloso raciocínio em que transforma paulatinamente a pergunta e acaba por exigir a resignação do povo, como forma de ampliar a “liberdade interior”:

Permitam-me que já não fale do algodão, mas sim das virtudes que um povo precisa ter para passar sem algodão. A questão não é “onde está o algodão?”, mas “Onde estão as virtudes?” Onde foi parar o sereno desprendimento, a legendária paciência com que o povo chinês tem sabido suportar seus incontáveis sofrimentos? A eterna fome, o trabalho desgastante, o rigor das leis? Tudo isso era a liberdade interior. (BRECHT, 1993, p. 153)

Durante todo o congresso, além dos tuis serem punidos, muitos agitadores estão sendo detidos e executados. Panfletos proibidos continuam aparecendo. Por isso, Munka Du busca desmoralizar a Kai Ho, a quem se dirige impessoalmente: “o que você fez com a liberdade? A todos você escraviza. Você exige que todos clamem só por algodão, como se não houvesse nada melhor” (BRECHT, 1993, p. 153). Ao que uma voz da audiência retruca: “Isto é, a seda”. E assim Munka Du é desmoralizado e levado.

Os argumentos tuis são velhos conhecidos. O primeiro deles apela ao falseamento da produção, sustentando a escassez de bens. Trata-se do clássico discurso liberal que afirma a necessidade de fazer o bolo crescer antes de ser dividido. A escassez é um pressuposto inescapável do neoliberalismo. Não à toa, a disciplina de economia é definida como a ciência da alocação de recursos escassos. Daí a inexistência, na teoria autodenominada de neoclássica, de explicações sobre a superprodução de capital; daí sua visão das crises econômicas como externalidades: esse fenômeno precisa desaparecer dos modelos econômicos. O segundo tui também apresenta um argumento bastante presente nas atuais esferas de poder. Trata-se da afirmação de que a carência sentida atualmente resulta do progresso cultural do povo. É porque estamos avançando que as pessoas passam a sentir novas necessidades. Aqui no Brasil, por exemplo, ouvimos como resposta do governo às manifestações de 2013 que “o povo quer mais, e está certo, mas é preciso esperar”. Daí ao “precisamos fazer sacrifícios para superar a crise” é um passo que, em nosso caso nacional, foi dado.

Nenhum desses argumentos clássicos, contudo, será aproveitado pelos pensadores franceses que ora examinamos, (embora o silêncio sobre as crises capitalistas também grite na obra de Thomas Piketty), e menos ainda por David Harvey. Eles não buscam justificar este modo de vida, mas fazer uma oposição a ele, e assim falam a partir do ponto de vista da maioria, do coletivo, do comum, dos explorados. Já o caráter idealista e voluntarista presente no terceiro argumento aparecerá no pensamento deles, embora com uma sutileza que a peça teatral não tem.

Além desse contexto em que um tui responde à necessidade de convencer o povo a resignar-se identificando virtude com obediência racional que mortifica o corpo, a peça traz a figuração do traço idealista comum ao conjunto das divergências tuis em outra cena. Trata-se de uma aula de filosofia, que o camponês Sen assiste ao fazer uma visita à escola. Fica claro aqui o fundamento do pensamento tui em geral: o idealismo é necessário para a sustentação da classe intelectual. Vale transcrever o diálogo entre aluno e professor que o velho ouve embasbacado:

Professor – Si Fu, enumere as principais questões da Filosofia.

Si Fu – As coisas existem fora de nós, por elas mesmas e mesmo sem nós, ou as coisas existem dentro de nós, por nós, e nunca sem nós.

Professor – Qual a opinião certa?

Si Fu – Ainda não se chegou a nenhuma conclusão.

Professor – Em que direção se inclina a opinião da maioria dos nossos filósofos?

Si Fu – As coisas existem fora de nós, por si e mesmo sem nós.

Professor – Por que esta questão ficou sem resposta?

Si Fu – O congresso que deveria decidir realizou-se, como acontece há duzentos anos, no mosteiro de Mi Sang, situado às margens do Rio Amarelo. A questão era: “o Rio Amarelo existe realmente, ou ele só existe na nossa cabeça?” Infelizmente, enquanto se realizava o congresso houve um grande degelo nas montanhas e o Rio Amarelo transbordou, carregando com ele o mosteiro de Mi Sang e todos os congressistas. E assim a noção de que as coisas existem fora de nós, por elas mesmas e sem nós, não chegou a ser demonstrada. (BRECHT, 1993, p. 130)

O velho camponês observa: “Mas o rio Amarelo existe de fato”, ao que o guia responde que o difícil é provar. Quando a evidência empírica e o efeito prático das forças que atuam no mundo (o rio possibilita o trabalho de Sen na plantação de algodão) são excluídos do escopo da prova científica, fica tão difícil provar a existência de um rio quanto a existência de Deus. Mas, mais do que isso, opera-se uma separação entre ciência e prática que coaduna com a divisão entre atividade material e atividade intelectual em classe distintas de indivíduos. Por um lado, a superioridade do trabalho intelectual frente ao material seria ela mesma questionada se trabalho prático servisse de prova ao pensamento. Por outro lado, sua independência efetiva em relação à atividade material, o fato de que se desenvolve em uma classe especial, confere uma aparência não apenas de autonomia do pensamento, mas de prioridade: se o intelecto é superior ao corpo, é o pensamento que põe a matéria, e não o contrário. Assim, o próprio pensamento se torna o objeto mais digno, o objeto por excelência da atividade intelectual. A coisa da lógica se impõe sobre a lógica da coisa do mesmo modo que superioridade da classe intelectual impõe a concepção da prioridade ontológica da consciência sobre o ser consciente. Marx e Engels escrevem:

Se, em toda ideologia [citam a moral, a religião, a metafisica - VC], os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida (...). (...) as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. (...) A filosofia autônoma perde, com a exposição da realidade, seu meio de existência. (MARX; ENGELS, 2007, pp. 94-95)

A autonomia real da atividade do pensamento, dada pela divisão social do trabalho ou separação da sociedade em classes, é o que está na base da inversão idealista do pensamento. Essa inversão se sustenta ideologicamente pela cisão entre corpo e espírito, o caráter elevado deste frente ao aviltamento daquele. Assim, o privilégio de classe é o conteúdo último das ideias desenvolvidas por essa classe. Na peça, o retrato da ridícula vaidade dos tuis, seu afeto central, não é apenas um recurso que Brecht utiliza para condená-los moralmente, mas expressa a finalidade que os guia: vencer a concorrência pelas posições privilegiadas.

Essa concepção que não enxerga um horizonte para além da divisão entre trabalho intelectual e trabalho material perpassa a concepção de nossos pensadores franceses. Eles têm de se opor à barbárie do capitalismo contemporâneo sem que uma esfera dessa configuração social seja abordada. Deve restar incompleta aquela exposição da realidade a que se refere Marx, e para isso os autores recusam o caráter de totalidade da vida social. Recusa-se, deste modo, suas leis próprias, e a inversão idealista deve então fazer seu papel para conferir unidade àquilo que antes fora feito em migalhas, sem deixar de preservar a especialidade da classe intelectual. Assim, o conteúdo crítico de nossos autores não se assemelha ao dos discursos tuis, mas sua postura, sim.

2.2. A robinsonada de Thomas Piketty

Piketty declara-se um membro da classe intelectual. Na divisão social do trabalho, cumpre seu papel de produzir e divulgar o conhecimento, um saber que, por seu caráter naturalmente desinteressado e neutro, não tem partido: “Que fique claro: minha proposta aqui não é defender os trabalhadores em qualquer desavença com seus patrões, mas ajudar todos a ter uma visão clara da realidade” (PIKETTY, 2014, p. 49).

A partir dessa visão clara e distinta da realidade, Piketty constrói sua proposta para superar a desigualdade que prejudica a todos, e construir o bem comum. O problema que busca enfrentar é a obscena concentração de riqueza a que chegamos e que constitui a injustiça social. Aponta a causa desta concentração em uma lei econômica, a única que reconhece: a acumulação de capital caminha num ritmo mais acelerado que o crescimento econômico, ou seja, a parte da riqueza que se transforma em capital é sempre maior que o aumento da produção de riqueza em dado intervalo de tempo[1]. Isto posto, torna-se necessário criar mecanismos de distribuição de riqueza que contrariam a natureza da economia, conferindo limites a seu impulso espontâneo. Esses mecanismos só podem ser, portanto, políticos.

Propostas políticas de redistribuição de riqueza que não tocam no sistema produtivo, mas buscam distribuir de modo menos desigual os produtos socialmente criados sem afetar a distribuição dos próprios seres humanos em diferentes classes sociais e atividades, isto é, na divisão do trabalho, são formuladas desde a segunda metade do século XIX. Também desde lá foram criticadas por Marx e Engels. Ideias como a igualdade salarial para todas as funções, como queria Proudhon e Düring, ou a defesa lassaliana do direito ao produto integral do trabalho, ou ainda as cooperativas owenistas foram abordadas por Marx e Engels à luz da imensa diferença que existe entre o planejamento coletivo e consciente da produção cuja medida são as múltiplas necessidades humanas e a produção mercantil descontrolada, que impõe a mediação alienante do valor e sua desmedida em relações sociais determinadas pela concorrência. A finalidade revolucionária em Marx e Engels obedece à perspectiva de superação da divisão do trabalho, tanto porque esta priva os indivíduos da apropriação do mundo social criado e transforma a atividade produtiva em meio de vida, quanto porque a extrema especialização das atividades condena a todos à unilateralidade. Essa unilateralidade não é vista como problema por vários intelectuais críticos que buscam resguardar os privilégios próprios a esta elite da classe trabalhadora: estar liberada do trabalho material, que cabe a outrem. Engels faz precisamente a denúncia dessa defesa da divisão do trabalho, associada à piedosa exortação pela igualdade salarial, que há muito caracteriza a intelectualidade crítica:

É claro que o modo tradicional de pensar das classes cultas, herdado pelo Sr. Dühring, tem que considerar, necessariamente, como uma monstruosidade, que chegue o dia em que não existam mais carregadores e arquitetos de profissão, e no qual o homem, que passou uma meia hora dando instruções, como arquiteto, tem que servir durante algum tempo como carregador, até que seus serviços de arquiteto voltem a ser necessários. Para se eternizar a categoria dos carregadores de profissão não era preciso o socialismo! (ENGELS, 1971, p. 251)

Piketty retorna a esse tipo de proposta em um momento em que o capitalismo, tendo alcançado a quase completa hegemonia no globo terrestre, funciona, em meio à estagnação econômica, com base na violência estatal e na regressividade social. Suas proposições, deste modo, ganham não apenas uma visada ridícula, dado o contraste entre o caráter extremo e violento das contradições sociais e o suave percurso de efetivação das soluções, como precisam negar e ignorar leis objetivas há muito descobertas, de sorte que aquela realidade que ele pretende tornar clara para todos tem de sofrer amputações. Do mesmo modo, a lógica da coisa tem de se perverter, ou ser sumariamente abandonada, para acolher afirmações incongruentes.

Uma vez que é da natureza da produção capitalista a concentração da riqueza, Piketty propõe sua distribuição por meio de impostos sobre lucro, herança e fluxos de capital que poderiam chegar a taxas de 90%[2]. Essa taxação seria efetivada por órgãos políticos supranacionais, em associação com os estados, e então redistribuída. Uma das formas dessa redistribuição poderia ser uma herança estatal para todos os indivíduos que alcançassem certa idade. Deste modo, a igualdade de oportunidades seria real e a concorrência, justa. O cerne de sua proposta é produzir, por meio da política e suas instituições, uma fragmentação do capital. Em entrevista, ele explica:

O objetivo é fazer circular a propriedade, permitir que todo mundo tenha acesso a ela. O imposto sobre a propriedade permitiria financiar uma herança de 120.000 euros para todos aos 25 anos. Hoje, metade da população não tem patrimônio. (...) Quero uma sociedade em que todo mundo possa ter algumas centenas de milhares de euros e na qual alguns que criam empresas e têm sucesso tenham alguns milhões de euros, talvez algumas vezes dezenas de milhões de euros. Mas, francamente, ter várias centenas ou bilhões não me parece que contribua para o interesse geral.[3]

Essa tributação faria com que a propriedade do capital se tornasse temporal: tão logo o capital se centralizasse para além de certos limites, seria parcialmente expropriado pela tributação. Existe, para Piketty, um interesse geral que deve ser atendido antes da satisfação dos interesses singulares, que nesta passagem aparecem exemplificados com a posse individual de centenas de milhões ou de bilhões de euros. Deixemos aqui anotado que a oposição entre o interesse geral e os interesses privados, tão característica do pensamento moderno, liberal, permanece intocada em seu ideário.

A fragmentação do grande capital em pequenos capitais individuais não é o único meio sugerido pelo autor para enfrentar as injustiças econômicas. Também a participação política dos empregados na direção das empresas pode ser um meio para desviar parcialmente as finalidades das companhias. O autor escreve, em Capital e ideologia:

Por uma parte a desconcentração do capital através da fiscalidade progressiva (imposto progressivo), a dotação de capital e a circulação de bens (...) pode facilitar que os empregados adquiram ações de sua empresa e resultam determinantes para conformar uma maioria (acrescentando os votos que o corresponderiam como acionistas à metade que os corresponde como empregados). Por outro lado, as normas que vinculam os aportes de capital e o direito de voto devem ser repensadas. Se alguém investe todos seus fundos em um projeto que o apaixona, não é absurdo que disponha de mais votos que um empregado recém-contratado que, talvez, inclusive se dispõe a poupar dinheiro para colocar em marcha seu próprio projeto (PIKETTY, 2019, p.1153 apud RAUBER, 2020).

Desconcentração de capital e limitação do poder dos grandes acionistas são os meios “de superar o capitalismo através da propriedade social e a divisão de poder” (PIKETTY, 2019, p.1155 apud RAUBER, 2020). Primeiro, há que se situar os termos utilizados: superar o capitalismo e estabelecer o “socialismo participativo” é na verdade, recriar a propriedade privada individual como pequena propriedade e a livre concorrência. O economista francês idealiza uma sociedade mercantil que não se desenvolva em sociedade plenamente capitalista, ou seja, uma preservação do indivíduo privado, mas posta de acordo com seus próprios princípios morais de justiça e equidade, de modo a realizar-se a justa concorrência entre adversários que portam condições equânimes. Fica assim facultado ao indivíduo escolher entre empenhar-se em criar uma empresa e acumular “alguns milhões”, ou trabalhar como assalariado, tendo renda menor, mas usando seu tempo livre para projetos ou prazeres pessoais. Em suma, uma sociedade da livre escolha individual, que distribui sua riqueza conforme o mérito e o esforço, e em que a concentração da propriedade é limitada pelo interesse geral:

A questão é qual capitalismo. A lição da história é que a propriedade privada é útil para o desenvolvimento econômico, mas unicamente se for equilibrada com outros direitos: os dos assalariados, dos consumidores, das diferentes partes. Eu digo sim à propriedade privada, desde que se mantenha no razoável.[4]

Assim, o socialismo participativo se torna o bom capitalismo, em que é possível ao trabalhador comprar ações da empresa onde trabalha e se tornar capitalista. Esse horizonte de justiça e liberdade individual data do século XVII, é hegemônico na filosofia do XVIII, e corresponde aos princípios do liberalismo expostos por John Locke, Adam Smith, Jean-Jacques Rousseau. Condiz também com a concepção liberal mais ampla de ser humano e de indivíduo. Os traços comuns à concepção desses diferentes pensadores modernos podem ser sintetizados na concepção de que a sociedade é posterior ao indivíduo, de sorte que este carrega a natureza do ser humano antes de qualquer associação, assentando a sociedade na relação de contrato, forma absoluta da civilidade. Esta relação contratual caracteriza tanto a esfera econômica como a esfera política, e inclusive a esfera familiar, já que os casamentos, como a troca de bens e a república, são contratos. Define, ademais, a liberdade, identificada à escolha – de fechar ou não um contrato de compra e venda, de prestação de serviço, de colaboração mútua, de compartilhar um corpo político ou uma casa. O interesse privado é assim naturalizado, e a relação social posta como oposição, concorrência.

A relação competitiva é também abordada por Piketty, senão como natural, nos termos da troca justa e do diálogo racional, de sorte que não há incompatibilidade entre concorrência e bem comum. Ao contrário, ela é favorável àqueles indivíduos que perspectivam “colocar em marcha seu próprio projeto” econômico, caso o interesse geral seja posto em primeiro plano e o interesse privado, a ele subordinado.

Para nosso autor, a perspectiva futura da transformação social está no passado: “O objetivo é voltar a um nível de concentração da fortuna que era mais ou menos o dos anos sessenta, setenta ou oitenta nos Estados Unidos e na Europa”[5]. Neste período, “Entre os anos 1950 e 1970, os Estados Unidos passaram pela fase mais igualitária de sua história: o décimo superior da hierarquia de rendas detinha cerca de 30- 35% da renda nacional americana (...)” (PIKETTY, 2014, p. 369). É esse seu horizonte moral de justiça.

A finalidade da produção também não sofreria nenhuma alteração importante. O crescimento da produtividade do trabalho se mantém a meta da produção e, de acordo com Piketty, seria favorecida pela pequena propriedade individual: “Quando se oferece às pessoas a possibilidade de trabalhar a terra para si mesmas, a produtividade melhora. O mesmo se aplica em geral”[6]. É curioso que um economista deixe de considerar a concorrência entre trabalhadores que, por meio de sistemas como o salário por peça, o toytotismo, e todas as formas de precarização que dissolvem os vínculos trabalhistas, fazem deles seus próprios capatazes, ampliando a produtividade mesmo que trabalhe para outrem. Além disso, a produtividade do trabalho aparece como dependente do empenho do produtor individual, e não da tecnologia envolvida na produção, que dita o ritmo da produção.

Ao lado do aumento da produtividade, também faz parte dos fins a que se voltam a proposta de Piketty o caráter individual, e portanto descoordenado, dos projetos econômicos: “A propriedade privada é um bom sistema para coordenar as ações individuais e permitir que cada um realize seus projetos, com uma condição: que haja acesso à propriedade.” Assim, ele oculta a relação necessária entre propriedade privada e privação de propriedade.

O horizonte social do economista, restringindo o ser humano ao indivíduo privado e as relações sociais como concorrenciais, não alcança para além da divisão social do trabalho e da consequente produção intelectual como especialidade de uma classe singular. Visa a uma sociedade que perpetua o “carregador de profissão” e o arquiteto horrorizado diante da atividade material e da ameaça às hierarquias.

Os limites humanos de seu projeto político se manifestam nos problemas de sua análise econômica. Particularmente, de sua compreensão da relação entre mercado e capital. Para que uma sociedade exista como um mercado, é necessário que as pessoas sejam livres para comprar e vender: uma sociedade escravista, por exemplo, não pode transformar a massa de sua população em compradores e vendedores. Para que o conjunto de uma população seja juridicamente livre, é necessária a ruptura dos vínculos com a terra e a com a comunidade, ou seja, os processos de expropriação. Do outro lado da expropriação está, necessariamente, a apropriação privada da riqueza produzida, que a concentra. Tão logo uma sociedade apresente como relação social primordial a troca e a concorrência, trata-se de sociedade capitalista. A extrema concentração de riqueza não é apenas um resultado do capital, mas seu pressuposto: a produção de capital parte, historicamente, da acumulação das fortunas mercantis, que estabelecem a produção capitalista de mercadorias para atender ao mercado internacional. Foi necessário um longo processo de expropriação e concentração de riqueza para que a produção de mercadorias se generalizasse, já na forma da grande indústria capitalista. Assim, uma sociedade estritamente mercantil, em que as famílias produtoras trocam seus produtos no mercado, nunca existiu.

Vale ressaltar ainda que a definição marxiana de capital como valor que se valoriza[7], próprio a uma determinada relação social de produção, é estranha a Piketty. O autor d’O Capital no século XXI assume o conceito de capital dos economistas clássicos, para quem essa categoria econômica é sinônimo de stock. Com a identificação entre capital e recurso material, a forma capitalista, que reproduz esses recursos com a finalidade da acumulação de riqueza abstrata, valor, é contrabandeada para a natureza das coisas. Piketty escreve: “Para simplificar, usaremos as palavras “capital”, “riqueza” e “patrimônio” de forma intercambiável, como se fossem sinônimos perfeitos” (PIKETTY, 2014, p. 56). Naturaliza-se assim uma forma específica e histórica das relações sociais.

Também Adam Smith e David Ricardo utilizam os termos capital e stock como sinônimos, identificando qualquer meio de produção, da lança do “selvagem” ao sistema de máquinas, ao capital. Ricardo escreve: “Mesmo no estágio primitivo ao qual se refere Adam Smith, algum capital, embora possivelmente fabricado e acumulado pelo próprio caçador, seria necessário para capacitá-lo a matar sua presa. Sem uma arma, nem o castor nem o gamo poderia ser morto” (Ricardo, 1996, pp. 30-1). Se esse limite científico foi necessário à economia política moderna, que pensava as relações econômicas da perspectiva da burguesia em ascensão, e não conhecia a dialética e menos ainda o materialismo histórico, posição intelectual que apenas pode se desenvolver a partir da perspectiva da classe trabalhadora, não há como justificá-lo em um autor que pensa o século XXI. A compreensão das categorias marxianas fica difícil para um economista que, como afirma David Harvey, “sempre clamou, diante das acusações da mídia de direita de que é um marxista disfarçado, que não leu O capital de Marx”[8]. A acusação de marxista cultural, seja na França atual ou na China mítica de Brecht, não poupa os antimarxistas.

Como o capital é de fato a relação que põe a produção social a serviço da acumulação privada, seu impulso necessário é a redução dos custos de produção. Por isso, economizar é sua divisa. Uma empresa capitalista pode lançar mão de diferentes meios para reduzir seus custos. A diminuição dos salários, o aumento da duração da jornada de trabalho, a ampliação da intensidade do trabalho por meio de acúmulo de funções, o sistema de salário por peça. Estas são formas de reduzir o custo com o trabalho e tornam-se possíveis quando se acirra a concorrência entre os trabalhadores e quando estes não estão organizados para enfrentar o capital como classe. Neste sentido, um expediente que foi utilizado pelos grandes capitais desde o fim da guerra fria é o transplante de plantas produtivas para países em que a força de trabalho é mais barata.

Outro meio central para a redução de custos é o aumento da produtividade do trabalho, que permite a substituição de parte da força de trabalho por máquinas, isto é, a progresso da automação da produção. Ampliar a produtividade do trabalho implica a expansão da escala da produção que, por sua vez, gera um processo de monopolização. Esse movimento de concentração dos mercados se expressa no aprofundamento da divisão internacional do trabalho. Quando dois ou três países, quatro ou cinco empresas produzem determinada espécie de mercadoria para o consumo planetário, isso significa que se alcançou um nível de produtividade do trabalho que impede a emergência de concorrentes, isto é, uma escala de produção e um patamar de monopolização que se sustenta pelo tamanho do capital investido e torna impraticável a formação paralela de um capital com condições de concorrer. Capitais menores são atraídos muito mais para compor o monopólio na forma de compra de ações, por exemplo, do que para constituir concorrência. Por que não vemos aparecer pequenos produtores de aparelhos celulares em todos os países, mas, ao contrário encontramos em toda parte, da Palestina à China, aos EUA ao Vietnã, as mesmas marcas? Por razões evidentes: a pequena produção envolveria custo de produção da mercadoria unitária muito mais elevado. O que quer dizer: a produtividade do trabalho nesta empresa seria muito mais baixa.

Essa relação necessária entre a extensão da socialização da produção (escala produtiva), por um lado, e o nível de desenvolvimento da produtividade do trabalho e da divisão do trabalho, por outro, é conhecida desde Adam Smith: “(...) a invenção de todas essas máquinas que tanto facilitam e abreviam o trabalho parece dever-se originalmente à divisão do trabalho” (Smith, 2003, p. 13). Que à divisão do trabalho e ao aumento da produtividade que dela decorre corresponde a ampliação da escala da produção, expressa pela extensão do mercado, Smith o demonstra com o seguinte exemplo:

Seria impossível que mesmo a forja de pregos pudesse existir como ofício nas remotas regiões interiores das Terras Altas da Escócia. Um operário com esse ofício, à média de mil pregos por dia, e trezentos dias de trabalho por ano, produzirá trezentos mil pregos por ano. Mas nessa localidade seria impossível vender mil pregos, isto é, a produção de um dia de trabalho”. (Smith, 2003, p. 24)

Essa relação vale não apenas para o setor produtivo, mas também para a esfera mercantil – aos capitais comerciais e financeiros. No caso do comércio, os custos de realização do valor criado por múltiplos capitais produtivos é reduzido tanto pela autonomização do capital comercial, quanto por sua concentração. Sobre esta autonomização, que concentra as atividades comerciais de um conjunto de indústrias em um capital comercial, Marx escreve:

À medida que contribui para encurtar o tempo de circulação, pode ajudar a aumentar indiretamente a mais-valia produzida pelo capital industrial. À medida que ajuda a ampliar o mercado e medeia a divisão do trabalho entre os capitais, portanto capacita o capital a trabalhar em escala mais ampla, sua função promove a produtividade do capital industrial e sua acumulação. À medida que encurta o tempo de circulação, eleva a proporão de mais-valia para o capital adiantado, portanto a taxa de lucro. À medida em que reduz a parte do capital confinada na esfera da circulação, faz aumentar a parte do capital diretamente empregada na produção. (Marx, 1985-1986, C, III, vol. IV, pp. 211-12)

Do mesmo modo que o capital comercial consiste na vantajosa autonomia da figura do capital-mercadoria do conjunto do capital produtivo, é também a autonomização da figura do capital-dinheiro e suas funções técnicas que cria o capital financeiro. Além da economia de custos na efetivação dos pagamentos e dos movimentos necessários do dinheiro, esta autonomização permite concentrar a reserva monetária do conjunto dos capitais (e mais a renda do trabalho). Essa concentração da reserva monetária social permite a ampliação da escala de investimentos possíveis, como, por exemplo, os bélicos, e garante a esta esfera um direito sobre o mais-valor criado pelo trabalho produtivo, que não comanda diretamente, por meio de sua aplicação a juros. É uma particularidade do neoliberalismo a função de juros passar a caracterizar os capitas investidos diretamente na produção e no comércio, quando se tornam acionários, e como afirma Marx, a mera existência do capital a juros confere a todos os capitais a capacidade de render juros.

O desenvolvimento necessário do sistema de crédito e a centralização do capital financeiro confere a este um relativo domínio da produção da circulação globais. É conhecido o estudo de Lenin, escrito em 1916, sobre a centralização dos capitais dos bancos e a formação das oligarquias financeiras, que são a base material do imperialismo, forma plenamente capitalista da dominação internacional, que supera a colonização direta[9]. Lenin reuniu dados que mostram a extrema centralização do capital financeiro na Inglaterra, na França, na Alemanha e nos EUA no ano de 1910: “Os quatro juntos têm 479 bilhões de francos, isto é, cerca de 80% do capital financeiro mundial. Quase todo o resto do mundo exerce, de uma forma ou de outra, função de devedor e tributário desses países” (LENIN, 2008, p. 60).

Mas nem precisaríamos recorrer a Marx, ou Lenin, para estabelecer essa relação entre aumento da produtividade do trabalho e concentração da propriedade. Além da centralização internacional do capital, que cria a incompletude perene do capital nos países subordinados, Piketty mesmo traz à tona o nível de concentração nos países centrais no início do século XX, que para ele é máximo:

Por volta de 1900-1910, tanto na França como no Reino Unido ou na Suécia, assim como em todos os países cujos dados temos disponíveis, os 10% mais ricos detinham a quase totalidade da riqueza nacional: a parcela do décimo superior alcançava 90%. O 1% mais abastado possuía sozinho mais de 50% do total da riqueza. A parcela do centésimo superior ultrapassava 60% em alguns países particularmente desiguais, como o Reino Unido. Em contrapartida, os 40% do meio detinham apenas pouco mais de 5% da riqueza nacional (entre 5% e 10%, dependendo do país) — isto é, situação muito semelhante à dos 50% mais pobres de hoje, que detêm menos de 5%. Em outras palavras, não havia classe média, uma vez que os 40% do meio eram quase tão pobres quanto os 50% mais pobres. A distribuição do capital era caracterizada por uma imensa maioria de destituídos e uma minoria que possuía quase tudo”. (Piketty, 2014, p. 332)

Quer dizer que, apenas meio século após a revolução industrial extrapolar as fronteiras da Inglaterra; quando, pois, o capitalismo se hegemoniza, ele é já capitalismo monopolista, ou imperialismo. Piketty atesta o fato de que, desde que existem dados, o capitalismo é já uma organização econômica que se caracteriza pela expropriação massiva. Além disso, nesse momento histórico, havia ainda dominação política direta de países europeus sobre suas colônias, de modo que as relações mercantis ainda tinham muito espaço a tomar. Esses dados referem-se a países europeus. Piketty não traz os dados da concentração de capital nos países de extração colonial ou que foram incluídos

Assim, quando um país se torna uma sociedade mercantil, tendo generalizado para o conjunto da população a condição de indivíduos vendedores e compradores, ele é já plenamente capitalista. Do mesmo modo, o capitalismo pleno, quando se estende ao conjunto da Europa e suas colônias ou ex-colônias , é já imperialista. Assim, não apenas a sociedade mercantil é essencialmente capitalista, como o capitalismo é por natureza imperialismo. Conceber a fragmentação do capital e uma sociedade de pequenos proprietários/produtores, aliadas ao aumento da produtividade do trabalho – que continua sendo a finalidade – é uma incongruência econômica: à socialização da produção, que amplia sua escala, é imanente a monopolização. Uma sociedade de pequenos capitais em concorrência justa é um construto teórico incompatível com as leis econômicas do capitalismo.

Piketty parece crer que o investimento capitalista tem como impulso a paixão por uma dada atividade concreta de produção, e não a paixão pelo lucro. É curioso pensar que a propriedade da marca Deca, pela família Setubal, esteja alicerçada na paixão por válvulas de privadas. Marx já comentava o completo desconhecimento da química por capitalistas que investiam no setor. Mas tomemos a questão da herança. Imaginemos então que os pequenos netos das famílias Setubal e Vilella tivessem de ceder em impostos 90% do patrimônio do banco Itaú quando o recebessem como herança de seus pais. É evidente que o banco deixaria de existir, ao menos como instituição financeira capaz de concorrer com as demais. Ora, proibir a herança é já dissolver o capital e a propriedade privada. Piketty também foi questionado, pelo jornalista Marc Bassets, no mesmo sentido: “O senhor propõe um imposto de 90% sobre o patrimônio dos mais ricos. Por que 90% e não expropriá-los?”[10] Respondeu que o objetivo é “fazer circular a propriedade”, e não, por conseguinte, romper com essa forma de propriedade. Trata-se de um apego a esta forma social de apropriação, às custas da coerência de seu pensamento econômico.

Ao lado do fato de que a fragmentação produtiva que ele propõe implicaria perda de força produtiva, e não aumento da produtividade, e de que os capitais tal como existem seriam dissolvidos pela taxação da herança; ao lado, em suma, da finalidade de constituir uma sociedade de pequenos proprietários que era a utopia filósofos modernos, salta aos olhos o meio pelo qual o economista pretende pôr em prática essa proposta: trata-se de construir o consenso social.

Do mesmo modo que nos conceitos defendidos pelo economista é ocultada a natureza do capital, desvendada há muito por Marx e pelo campo marxista, também é desconsiderada a oposição de classes. É curioso que alguém que tenha vivido o movimento dos gilets jeunes na França, que sofreram violência estatal por exigir simplesmente redução dos preços dos combustíveis, manutenção dos direitos previdenciários e participação democrática nas decisões econômicas, conceba a possibilidade de taxar em 90% os capitais por meio de um consenso racional da nação. É como se os interesses das classes pudessem ser acomodados[11].

Esse requentar de uma proposta que desconsidera que é a fúria capitalista quem se manifesta pelas ações do braço armado do Estado, mantém a noção moderna de que o Estado é a esfera racional da sociedade, capaz de fazer valer uma racionalidade contrária àquela que vige nas relações da sociedade civil. Assim, o autor não esclarece que a conciliação da classe que teve lugar nos chamados trinta anos gloriosos, em que a desigualdade entre capital e trabalho foi a menor da história capitalista, sustentava-se na classe trabalhadora organizada e ativa, cuja ameaça, no início da guerra fria, parecia bastante real: basta recordar que em 1949 o bloco soviético ganha a Alemanha Oriental. Quer dizer, a racionalidade que os Estados europeus aparentam ter no período áureo do bem-estar social, por priorizarem em certa medida o bem-comum em lugar dos passionais interesses privados, e que dessa forma parecem gerir do alto uma sociedade mercantil organizada e pacificada, na verdade é produto da luta de classes, em que a classe trabalhadora alcança e mantém ativamente um espaço mais amplo na correlação de forças políticas[12]. Tão logo essa força social cede ou é derrotada[13], toda a irracionalidade da predação capitalista ocupa o Estado e escancara sua verdadeira natureza.

Mas, para o economista, “A desigualdade não é econômica ou tecnológica, afirma, é ideológica e política”[14]. Seria necessário atuar, não na esfera prática da luta de classes, mas na esfera ideológica, para que os valores ligados ao interesse geral possam ser reconhecidos e justamente apreciados. Deste modo, poderia ser estabelecido um consenso de ordem moral, regulado por órgãos supranacionais de controle do capital. De órgãos políticos da manutenção da propriedade privada e da luta contra o inimigo interno ou externo, os Estados nacionais e o FMI passariam a órgãos de controle do capital. Para Piketty, a política domina a economia e a ideologia domina a política. “O ponto essencial é que essas diferentes formas de controle democrático do capital dependem, em grande medida, do grau de informação econômica de que as pessoas dispõem” (PIKETTY, 2014, p. 690).

Assim, tudo se resolve com a educação. O autor defende que com educação democrática sobre direitos, justiça e participação será possível a distribuição econômica e o bem-estar social. Ao fim e ao cabo, é esta a solução do economista para a desigualdade social: uma educação voltada ao interesse geral. Se fosse consequente, Piketty proporia um meio para alcançarmos tal sistema educacional. Mas não faz isso: talvez chegue a intuir que, para a conquista de uma educação pública, universal e de excelência, precisaríamos retornar ao terreno das lutas sociais...

Piketty oferece assim sua explicação da realidade, voltada a todos e todas, sem nenhum partidarismo, prestando o serviço para o bem comum que sua especialidade na divisão do trabalho permite: o esclarecimento. Podemos vislumbrar seu alto chapéu tui nas incongruências de sua análise, no profundo voluntarismo de sua proposta política, calcada na autonomia da moral, que permite a todos escolherem a razão e o bem comum contra as paixões privadas desenfreadas. Com sua teoria, ele sustenta o próprio privilégio de classe intelectual, preservada, na divisão do trabalho, de todo fazer prático e da tomada mesma de partido nas lutas sociais. O esclarecimento não é apenas sua função como intelectual, como é o meio pelo qual superaremos a desigualdade social. Piketty parece tão heroico quanto os tuis brechtianos. Os próximos que sobem ao palco, uma dupla de filósofos, não se distinguirão muito de nosso economista.

2.3. O idealismo piedoso de Dardot e Laval

O objeto da crítica de Pierre Dardot e Christian Laval é o chamado neoliberalismo. Eles veem uma diferença importante entre capitalismo e neoliberalismo, que podemos entrever no silêncio sobre o primeiro e no foco sobre o segundo. Em A nova razão do mundo, os autores acompanham o processo de emergência do neoliberalismo não a partir dos processos de expansão capitalista e suas crises, mas a partir das construções teóricas que cujo projeto de sociedade é o neoliberalismo, em oposição ao socialismo e à social democracia. Assim, o neoliberalismo é caracterizado como um “sistema de normas” que estende a “lógica do mercado”, a competitividade, a todas as esferas da vida: “O que está em jogo é a construção de uma nova subjetividade, o que chamamos de ‘subjetivação contábil e financeira’, que nada mais é do que a forma mais bem-acabada da subjetivação capitalista” (DARDOT;LAVAL, 2016, p. 31).

Os autores definem o neoliberalismo como uma “lógica normativa global”:

Antes de ser uma mera ideologia, ou um receituário de política econômica, o neoliberalismo apresenta-se como uma racionalidade que quer estruturar o comportamento tanto dos governantes quanto dos governados (...) “um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal de concorrência”. (PRADO, 2017)

Trata-se de uma forma nova de governar, e portanto um fenômeno essencialmente da esfera do político, visto de modo amplo, que permite que a “lógica do mercado” se estenda para todas as esferas da vida, começando pelo Estado e terminando na subjetividade. Quer dizer, antes, a lógica de mercado estava restrita à esfera econômica, e assim a vida escapava ao mercado, havia algo como uma esfera parcial de liberdade. Há pois uma descontinuidade significativa originada na esfera político-jurídica (governabilidade, sistema de normas) e que é ameaça de uma destruição da subjetividade, porque estende a lógica de mercado a todas as esferas da vida. O neoliberalismo é, assim, uma nova razão. A subjetivação não aparece como oriunda da própria expansão das relações capitalistas, mas de uma normatividade e de um modo de governo (de si e dos outros). Seria pois possível a recusa individual dessa subjetivação porque ela não aparece como resultado de relações materiais, mas de uma norma, um governo, uma razão.

Como pesquisadores que compartilham as teses foucaultianas sobre a biopolítica, não poderiam ver o estado, à moda liberal, como um instrumento de moderação do impulso capitalista. Ao contrário, consideram o Estado um “coprodutor voluntário das normas de competitividade”, atuando pela defesa incondicional do sistema financeiro e do endividamento de massa. Colocam-se contra a ingenuidade de se cobrar do Estado um “controle” do mercado. Ele é tomado como uma das peças da máquina neoliberal.

Assim, o combate à forma vida neoliberal não pode lançar mão das instituições existentes, na medida em que elas mesmas assumiram a forma neoliberal. Então, as duas perguntas que fazemos aos autores são, primeiro, quem é o inimigo que nos impõem esse modo de vida que condena nossa subjetividade a tomar a forma da competitividade mercantil, e, segundo, como combatê-lo?

Em A Nova Razão do Mundo, os autores apontam como meio de oposição ao neoliberalismo a contraconduta: recusa ao empresariamento de si. Essa proposta não seria meramente individual, uma “desobediência passiva”, porque a mudança da relação consigo mesmo envolve a relação aos demais:

Se é verdade que a relação consigo da empresa de si determina imediata e diretamente certo tipo de relação com os outros (a concorrência generalizada), inversamente a recusa de funcionar como uma empresa de si, que é distanciamento de si mesmo e recusa do total autoengajamento na corrida ao bom desempenho, na prática só pode valer se forem estabelecidas, com relação aos outros, relações de cooperação, compartilhamento e comunhão. (DARDOT; LAVAL, 2016, pp. 400-401)[15]

Ainda que a relação a si não possa ser separada da relação aos demais, é a ação individual o foco dessa oposição. Ora, a recusa ao empresariamento de si e à concorrência só é possível para quem tem uma fonte de renda distinta do assalariamento. Fico imaginando a reação de um jovem motorista de uber ao ouvir essa proposta... É como se Marx, ao tratar do trabalho alienado, terminasse exortando os trabalhadores assalariados a recusarem a alienação.

Essa visão, para além da inversão idealista, reduz as relações sociais a relações interpessoais, desconsiderando que as primeiras se dão com a mediação do mundo objetivo, da forma mercantil/capitalista da produção global. Por exemplo, quando consumo um celular made in China, me relaciono com a menina de 16 anos que trabalha na produção, mesmo que não a conheça; do mesmo modo, se sou sueco e meu lixo eletrônico é exportado para o Congo, eu me relaciono com o menino de 10 anos que trabalha procurando pedaços de metal no material descartado. Os indivíduos são parte de uma divisão do trabalho que é mundial, organizada sob a forma da propriedade privada ou do capital. Assim, a concorrência não pertence ao campo das escolhas individuais, e a relação contratual só é liberdade para quem possui seus meios de vida, ou seja, para certa classe social.

Os autores devem ter se dado conta do caráter moral, e por isso inefetivo, de sua proposta de contraconduta. Em Comum- ensaio sobre a revolução no século XXI, escrevem que ela não é suficiente, e retomam a necessidade de uma revolução. Eles discutem esse conceito e o definem como uma autoinstituição de uma nova racionalidade política. Lemos:

(...) romper com o neoliberalismo exige que o arcabouço institucional existente seja desconstruído e substituído por outro. Como Auguste Comte gostava de dizer, imitando Danton, só se destrói bem o que se substitui. Portanto, a esquerda precisa se reinventar, assumindo que é plenamente revolucionária tal como os neoliberais souberam ser a seu modo. E a boa notícia é que, trazendo à tona a exigência do comum, os movimentos de resistência e as insurreições democráticas deram, há mais de 10 anos, o primeiro grande passo na formação de uma racionalidade alternativa: o comum é a nova razão política que deve substituir a razão neoliberal. (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 474)

O algodão foi consumido durante no transporte! Criemos uma nova matéria-prima!

Entendida em sentido próprio, revolução é, pois, “reinstituição explícita da sociedade” pela “atividade coletiva e autônoma” da própria sociedade, ou de grande parte dela. É a partir dessa ideia de revolução que hoje devemos trabalhar para a elaboração de um projeto de transformação radical da sociedade. Apenas a referência às “contracondutas” não é suficiente: com a razão neoliberal, confrontamos uma “estrutura social total” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 478).

O sentido de revolução a se recuperar é “o de ‘novidade’, isto é, de fundação de uma nova ordem pela invenção de instituições políticas destinadas a subverter a estrutura da sociedade”. Citando uma entrevista de C. Castoriadis, explicam o conceito: “Revolução não significa nem guerra civil nem derramamento de sangue. Revolução é uma mudança em certas instituições centrais da sociedade pela atividade da própria sociedade: autotransformação da sociedade em curto espaço de tempo” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 476).

Os autores não problematizam o agente desta revolução instituinte. Escrevem que a revolução

Também não deve ser confundida com “alteração” de instituições como família, língua ou religião, que têm temporalidades próprias, muito mais longas. Castoriadis explica que “revolução é a entrada do essencial da comunidade numa fase de atividade política, isto é, instituinte”. Portanto, revolução é um momento de aceleração, intensificação e coletivização dessa atividade consciente que designamos como “práxis instituinte”. É, mais exatamente, o momento em que a práxis instituinte se torna instituição da sociedade por si mesma ou “autoinstituição”. (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 476)

Quer dizer, trata-se da oposição entre “sociedade” e neoliberalismo, que acaba assim aparecendo um pouco como um ente, e não como uma relação social. O que é esta razão neoliberal, de onde ela vem e porque ela é contrária à “sociedade”? Sem referir às classes sociais e seus interesses antagônicos, fica difícil responder a estas questões. Mas, coerentemente, os autores opõem uma razão a outra, afirmando que esta revolução instituinte colocaria em prática uma nova razão política: o comum. Distinto de bem comum, o comum não é uma coisa pré-estabelecida, mas é o próprio princípio instituinte a partir do qual deve-se decidir o quê, quais coisas, espaços, atividades devem ser comuns.

Nos termos dos autores, “O comum é, acima de tudo, uma questão de instituição e governo”. Enquanto o princípio mesmo não é instituído por ninguém, mas deve apenas ser reconhecido por aqueles que vivem juntos, tudo o mais a ser considerado parte do comum deve ser instituído. “Ao contrário da ‘gestão’, o ‘governo’ cuida dos conflitos e tenta superá-los por meio de uma decisão relativa às regras. Portanto, a práxis instituinte é uma prática de governo dos comuns pelos coletivos que lhes dão vida”.

Assim, o comum é o princípio político destinado a reger e prevalecer sobre as atividades econômicas. Ele não se restringe à esfera pública, mas transpassa a sociedade civil, sem precisar romper com as relações mercantis. Dardot e Laval escrevem:

Como princípio político, o comum tem vocação a prevalecer tanto na esfera social como na esfera política pública. Portanto, está fora de cogitação limitar previamente sua primazia a essa esfera, entregando a esfera da produção e das trocas à guerra de interesses privados ou ao monopólio do Estado. Mas, em razão de seu caráter de princípio político, o comum também não constitui um novo “modo de produção” ou um “terceiro” interposto entre o mercado e o Estado, criando um terceiro setor da economia, ao lado do privado e do público. Como não implica a supressão da propriedade privada, a primazia do comum não exige a fortiori a supressão do mercado. Em contrapartida, exige a subordinação de ambos aos comuns e, nesse sentido, a limitação do direito de propriedade e do mercado, não simplesmente subtraindo certas coisas à troca comercial com a finalidade de reservá-las ao uso comum, mas eliminando o direito de abuso (jus abutendi) pelo qual uma coisa fica inteiramente à mercê do bel-prazer egoísta do proprietário. (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 482)

Quer dizer, o mercado continua aparecendo como um direito do indivíduo, que não pode dele abusar, isto é, deve moderar o seu impulso egoísta por acumular riqueza. O problema da subjetivação da essência do capitalismo, tão caro aos autores, acaba sendo resolvido com a clássica solução moderna de moderar as paixões, submetendo os interesses privados ao princípio político do comum. Não se vislumbra uma efetiva emancipação do egoísmo de proprietário.

Ao se referirem ao atual sistema econômico, Dardot e Laval falam de lógica de mercado, e não lógica da acumulação capitalista, ou do capital. A lógica de mercado pode remeter novamente à ideia presente nas teorias econômicas modernas, que imaginam uma sociedade de pequenos proprietários privados produzindo em família e trocando os produtos de seus trabalhos no mercado. Mas o fato é que não existe sociedade mercantil que não seja capitalista. Ao contrário, a própria produção de mercadorias se origina dos capitais mercantis, como exposto acima.

No fim das contas, submeter o mercado ao comum não se distingue muito de Rousseau, para quem a vontade geral, instituída por contrato, é soberana porque expressa o bem do corpo político. A novidade é apenas institucional: deve-se inventar novas instituições e formas políticas distintas do estado para que esse controle – a submissão ao comum – possa se dar. Isto não é, ao fim e ao cabo, o comum tendo prioridade sobre a acumulação de capital, sem romper com esse sistema? Novamente, para tornar possível esse controle social do capital, é necessária uma mobilização de caráter revolucionário, que certamente enfrentaria resistência armada, uma vez que o mero controle social preventivo já é armado e genocida. E, se fosse vitoriosa, por que não alterar o modo de produção, por que reinventar a propriedade privada como direito?

Começamos ouvindo que o neoliberalismo é a subjetivação máxima do capitalismo, que se trata de uma figura definitiva da “estrutura social total” e que, portanto, é necessária uma revolução. Terminamos, contudo, compreendendo que a revolução em foco tem como agente “a sociedade”, que sua função é instituir um novo princípio político que deve ser realizado por meio de novas instituições, e que a força instituinte dessa revolução é uma nova razão. Ao fim e ao cabo, eles pensam como Piketty: a política domina a economia e razão domina a política. Assim, o caminho dessa revolução da razão só pode ser o caminho racional: o consenso.

Além disso, afirma-se que o neoliberalismo conforma a estrutura social total. Mas a oposição a ele não precisa confrontar o mercado, a propriedade privada, a família e a religião. Seria, pois, possível levar a termo uma revolução da totalidade social sem alterar a forma de propriedade, a forma da família e a moralidade. Assim, embora o neoliberalismo tenha como uma de suas determinações centrais aprofundar o moralismo, fortalecendo o patriarcado e disseminando o fundamentalismo religioso, a oposição revolucionária “não precisa” alvejar essas esferas das relações sociais. É curioso: os próprios autores demonstram que, com a redução da esfera pública e a degradação das associações trabalhistas característica do neoliberalismo, o vínculo social perde suas bases objetivas e a ameaça de dissolução social é contida por meio da moralização. A generosidade da família e dos vizinhos, bem como o apoio da igreja, tornam-se centrais quando a seguridade social e os direitos trabalhistas são dissolvidos: de que vive um entregador uberizado que quebrou a perna? Essa é uma das razões pelas quais assistimos a uma reação patriarcal e um crescimento das igrejas pentecostais no mundo ocidental. O neoliberalismo é uma razão totalizante, mas a revolução que romperá com ele deixa aspectos dessa totalidade preservados: família, língua (gramática?), religião. Essas são, contudo, as esferas da vida pelas quais o empresariamento de si penetra, campos de relações que promovem a chamada subjetivação do capitalismo.

Fica evidente aqui que o capitalismo, sem a sua subjetivação máxima, não é alvo de crítica. O horizonte revolucionário de nossos autores é limitado: deve-se submeter o impulso capitalista ao comum, um princípio político que caracteriza uma outra razão, sem necessidade de romper com as relações mercantis e patriarcais. Mas, mesmo para alcançar esse objetivo tacanho seria necessária uma ampla mobilização popular, que há muito já é alvo de violência de estado, que detém, em conjunto com as milícias a ele associadas, o monopólio das armas. Mas os autores consideram que a “sociedade” pode escolher se autoinstituir novamente por meio de uma práxis pacífica. Como questionava o grande filósofo materialista Mané Garrincha, eles já combinaram isso com os adversários?

A recusa em reconhecer a luta de classes e o capital como “a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina” (MARX, 2011, p. 60) restringe seus desenhos de transformação social a uma requentada proposta moderna de comum versus privado, calcada no domínio da razão. A razão correta. Para isso, tomam de empréstimo o conceito braudeliano de estruturas de longa e curta durações e, com isso, recusam justamente a totalidade social: cada esfera da vida tem uma determinação própria, e podemos alterar umas sem tocar em outras. Trata-se de substituir a razão dominante e evitar abusos. Essa recusa em considerar a oposição entre capital e trabalho como conflito central de nosso modo de vida, implica ausência de dialética – o reconhecimento de uma contradição interna ao modo de vida atual – bem como o apagamento da noção de ideologia – forma de pensamento materialmente determinada pelos interesses de classe. E tudo se passa então em uma batalha épica do mundo das ideias entre a razão neoliberal e a razão do comum.

Assim como Piketty, Dardot e Laval alçam a atividade particularmente intelectual à solução dos problemas: é uma nova razão instituinte que dominará a má razão neoliberal, sem que seja necessário tocar na divisão do trabalho e no caráter privado das profissões. Também eles resolvem o problema humano não apenas salvaguardando a classe intelectual de qualquer responsabilidade prática, como defendendo o poder da razão como instituinte de princípios políticos e instância de controle das relações sociais. Mas, como o princípio ideal do comum ganharia existência real?

Até aqui, nossos autores não puderam demonstrar que dois mais dois é igual a quatro. Também no congresso chinês de Brecht, os tuis não alcançaram sucesso. Apareceu um teólogo argumentando contra a demanda por tanto algodão, uma vez que o sol faz bem à saúde: as roupas não são assim tão necessárias. Novamente, o foco é a “liberdade interior” de recusar as próprias necessidades. O povo que assiste já está calejado contra essa forma de “liberdade”. Assim, conforme o congresso se estende, cabeças e mais cabeças de tuis são cortadas e penduradas, em fileiras, ao ar livre. Grande tristeza toma conta de Turandot, que passa algumas horas chorando frente à ruína daqueles grandes homens, e lamenta: “As cabeças se multiplicam na muralha. Pelo visto, não é um bom negócio defender a política” (BRECHT, 1993, p. 156).

Também por esse caminho passam os tuis que vem de regiões distantes do reino disputar a mão de Turandot. O grande geógrafo Pauder Mil se apressa para chegar a tempo ao Congresso, e passa pelas cabeças em um carrinho puxado por dois jovens tuis. Eles se assustam, mas Pauder Mil os tranquiliza: “Só uns criminosos! Adiante, meus jovens amigos” (BRECHT, 1993, p. 156). Quanto mais o Congresso malogra, mais a polícia age. O Império está ameaçado pela eclosão popular, e Gogher Gogh, nosso miliciano, tui frustrado, já se pôs a serviço do Império. Ao passo que os tuis são conduzidos à morte, manifestantes mais entusiasmados, supostos apoiadores de Kai Ho, vão também sendo levados às dezenas. Alguns tuis pobres escondem textos clandestinos de Kai Ho e começam a maldizer sua profissão e sua classe.

No percurso de realizar uma de suas prisões, Gogher Gogh reencontra Turandot. Ela, que tem uma queda por formulações bem torneadas, se inclina ao “bonitão” e busca conhecer sua inteligência: “E o que está achando do congresso?” A resposta:

Nada. Aqui a senhora está vendo o resultado. Eu tentei em vão evitar tudo isso, mas não me deixaram entrar. Só porque não sou tão instruído como eram esses senhores aí. Agora só resta o mal cheiro. Se o governo responder mesmo cada pergunta que lhe for feita, ele cai. Por quê? Porque cheira mal. Quanto tempo a senhora aguentaria seu cachorro lhe perguntando toda manhã onde está seu osso? Simplesmente ele ia ser um bicho muito antipático. (BRECHT, 1993, pp.157)

Aqui, ao invés de uma resposta que convença o povo, à moda tui, Gogher Gogh começa a construir a solução para o Império e a manifestar o caráter original de seu pensamento. Turandot continua: “Não deixa de ser verdade. E o que acha das mulheres?”, provoca. Sua reposta: “A mulher chinesa é fiel, trabalhadeira e obediente. Mas deve ser tratada como o povo, ou seja, com mão de ferro. Senão ela relaxa. (...) Comigo, quis bancar valente, leva”. Turandot se encanta com a virilidade das respostas e flerta, perguntando o que ele pensa dela própria. Ele a considera enigmática, acha que já a viu antes e ela, que não o esquecera, recupera que eles se conheceram em um “círculo literário” (a Casa de Chás dos tuis). Isso dá ensejo para ele expor sua posição a respeito da literatura e da cultura, que completa a sua visão política:

Um povo sem literatura é um povo sem cultura. Só que ela deve ser sadia. Eu venho de família humilde, porém decente. Na escola eu era bom em ginástica e em religião. Mas desde cedo já revelava certas qualidades de líder. Com sete correligionários, montei um negócio e com disciplina férrea consegui fazer dele o que é hoje. Eu exijo de meus seguidores uma crença fanática em mim. Só assim posso atingir meus objetivos. (BRECHT, 1993, pp.157-58)

E manda prender alguns “elementos”. É pelos braços de Turandot, amante dos intelectuais, que o homem mais inteligente do reino entrará no palácio e poderá oferecer uma efetiva saída para o problema do algodão e do império. Enquanto Dardot e Laval defendem uma revolução pacífica, instituinte de um novo princípio racional para a vida social, a classe dominante conspira, pela via do Estado, a sua “revolução” destituinte, aquela que tem de ser feita para que tudo permaneça o mesmo.

2.4. O fetichismo de David Harvey

Brecht não deixa de figurar a grande perda, para a China e para a humanidade, que a execução de tantos intelectuais significa. Ainda na cena do varal de cabeças tuis – muito bem-humorada, porque elas continuam debatendo, agora com todo o tempo do mundo – o escrevente da escola tui para em frente a uma cabeça desconhecida e comenta: “Este é meu mestre. O maior gênio em gramática chinesa. Só falou besteira no congresso. Mas agora não tem mais ninguém que saiba explicar a poesia de Po Chuyi. Ah, por que eles não se limitaram a suas disciplinas...” (BRECHT, 1993, p. 156).

É com essa mesma pena que critico aqui uma fala de David Harvey. Também ele falou besteira em um episódio de “Anti-Capitalist Chronicles: Global Unrest”[16], conjunto de palestras em vídeo que busca analisar a sociedade pelas lentes de Marx, e que se destina, não a justificar o império do capital, mas para fazer oposição a ele. Os autores que critico neste texto têm, todos, contribuições importantes para o conhecimento e, não à toa, é a eles que recorro para caracterizar positivamente o problema social que ora enfrentamos.

David Harvey, geógrafo marxista, cuja obra volta-se a demonstrar por diversos lados o caráter necessariamente destrutivo da produção capitalista, também sucumbiu tristemente à defesa da ordem e ao estreitamento dos horizontes de transformação da vida ao se manifestar no episódio final das crônicas anticapitalistas, que veio a público em dezembro de 2019. Harvey posiciona-se contra uma revolução anti-capitalista, argumentando que um colapso do capital significaria hoje um colapso humano. Ele compara o momento atual com o período em que Marx viveu:

(...) na época de Marx, se houvesse um colapso repentino do capitalismo, a maioria das pessoas no mundo seria capaz de se alimentar e se manter. Porque a maioria das pessoas era autossuficiente em sua área local, com o tipo de coisas de que precisavam para viver - em outras palavras, as pessoas podiam colocar o café da manhã na mesa, independentemente do que estava acontecendo na economia global. Atualmente, esse não é mais o caso. A maioria das pessoas nos Estados Unidos, mas cada vez mais, é claro, na Europa e no Japão, e agora cada vez mais também na China, na Índia e na Indonésia e em todos os lugares, depende inteiramente da importação de alimentos, de modo que recebem alimentos provenientes da circulação do capital. Bem, na época de Marx, como eu disse, isso não seria verdade, mas agora temos uma situação em que provavelmente cerca de 70 ou talvez 80 por cento da população mundial depende da circulação de capital para garantir o seu abastecimento alimentar, para adquirir os tipos de combustíveis que lhes permitirão mobilidade, para ter acesso a tudo aquilo que é necessário para a reprodução de sua vida diária. (HARVEY apud MARTIN, 2020)

O autor caracteriza nessa passagem o aprofundamento da divisão internacional do trabalho, que amplia a interdependência entre os países. Ele descreve ainda a quase completa hegemonia do capital sobre o conjunto da produção humana: nenhum valor de uso – ou quase nenhum, já que ainda existe a pequena produção para a subsistência em algumas regiões – é produzido sem que seja ao mesmo tempo mercadoria de um determinado empreendimento capitalista, meio de reprodução do capital, isto é, capital-mercadoria. Quando o conjunto dos produtos sociais são veículos de valor, o intercâmbio humano ocorre na forma mercantil e a distribuição de produtos se dá sob a forma da circulação do capital. Uma ruptura com a forma capitalista da produção e do intercâmbio humanos é, contudo, vista por Harvey como um colapso da produção e da circulação de bens. Quer dizer, romper a forma da relação social de produção só poderia acontecer mediante a destruição dos elementos concretos que compõem o capital, ou, no mínimo, a paralização de sua atividade concreta. Ele afirma:

Então, acho que essa é uma situação que eu posso realmente resumir da seguinte forma: o capital agora é grande demais para falir. Não podemos imaginar uma situação em que interromperíamos o fluxo de capital, porque se interrompêssemos o fluxo de capital, 80 por cento da população mundial morreria imediatamente de fome, ficaria imóvel, não seria capaz de se reproduzir de maneiras eficazes. (HARVEY apud MARTIN, 2020)

De fato, há uma diferença no nível de concentração do capital se compararmos o mundo de hoje com o período em que Marx viveu. (Há também uma diferença proporcional na quantidade absoluta de riqueza entre essas duas épocas.) Em Marx, contudo, a maior centralização do capital ou monopolização corresponde ao aumento da socialização da produção. Para ele, é justamente essa ampliação do caráter social da produção, observável, por exemplo, em uma divisão internacional do trabalho tão especializada quanto a presente, que permite a transição para o socialismo. Marx faz essa relação entre a escala da produção, a concentração de capital e aquela transição ao caracterizar o capital acionário:

Formação de sociedades por ações. Com isso:

1) Enorme expansão da escala de produção e das empresas, que era impossível para capitais isolados. Tais empresas, que eram governamentais, tornam-se ao mesmo tempo sociais.

2) O capital, que em si repousa sobre um modo social de produção e pressupõe uma concentração social de meios de produção e forças de trabalho, recebe aqui diretamente a forma de capital social (capital de indivíduos diretamente associados) em antítese ao capital privado, e suas empresas aparecem como empresas sociais em antítese às empresas privadas. É a abolição [superação] (Aufhebung) do capital como propriedade privada, dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista.

3) Transformação do capitalista realmente funcionante em mero dirigente, administrador de capital alheio, e dos proprietários de capital em meros proprietários, simples capitalistas monetários. (MARX, 1985-86, C, III, 5, p. 332)

Primeiro, Marx observa que o aumento da escala da produção, no contexto da revolução industrial, deveu-se em parte à formação de sociedades por ações a partir dos empreendimentos estatais (em ferrovias, por exemplo) que requerem grandes montantes de capitais. E inversamente, o capital acionário, ao concentrar o capital da sociedade, permite uma ampliação produtiva sem precedentes, de tudo aquilo que não pode ser levado a cabo por pequenos capitalistas isolados.

Segundo, que isso cria uma associação de capitais que, dialeticamente, nega o caráter privado – individual, familiar – do capital e o torna social, em uma sociedade de ações. Mas no âmbito do capitalismo, porque essa associação se dá no interior de uma classe.

Terceiro, que no capital acionário a função de administração e direção se separa da propriedade do capital. Isso torna o título de propriedade meramente parasitário: o proprietário do capital não tem mais função alguma na produção e na circulação de bens, nem mesmo a direção do negócio.

O fato de a propriedade estar completamente descolada das funções da reprodução social significa que a classe trabalhadora é responsável pelo conjunto dessas funções, o que torna mais favorável sua apropriação coletiva. Marx escreve:

Nas sociedades por ações, a função é separada da propriedade de capital, portanto também o trabalho está separado por completo da propriedade dos meios de produção e do mais-trabalho. Esse resultado do máximo desenvolvimento da produção capitalista é um ponto de passagem necessário para a retransformação do capital em propriedade dos produtores, porém não mais como propriedade privada de produtores individuais, mas como propriedade dos produtores associados, como propriedade diretamente social. É, por outro lado, ponto de passagem para a transformação de todas as funções do processo de reprodução até agora ainda vinculadas à propriedade do capital em meras funções dos produtores associados, em funções sociais. (MARX, 1985-86, C, III, 5, p. 332)

Quanto mais concentrado é o capital, quanto mais se amplia a divisão social e internacional do trabalho, mais complexo e imbricado é o nexo social. Quer dizer que o capital já criou um conjunto de conexões produtivas – como, por exemplo, estruturas materiais de transporte e comunicação – que favorecem, ao invés de desfavorecer, a ruptura com a forma capitalista da produção social: basta desautorizar seu título de propriedade. Para isso, é necessário o processo destrutivo da revolução, isto é, a expropriação do capital e sua transformação imediata em propriedade pública. O que tem uma série de implicações, violentas inclusive. Mas a destruição material das forças produtivas não é uma delas. Ao contrário, é a partir delas que se construirá um modo de produzir em sociedade superior à alienação capitalista.

Assim, Marx vê na ampliação das conexões sociais, que se expressa na interdependência global, na extrema concentração do capital, e na separação completa entre o proprietário e o gestor, fatores que favorecem a ruptura com a forma capitalista. Harvey parece fazer uma inversão ao considerar o capital como algo “grande demais para falir”: confunde a finalidade capitalista – que se sustenta em uma relação social de produção, ou em uma forma jurídica de propriedade, mantida pela força armada do estado – com a produção e circulação concreta de valores de uso. Ele afirma mesmo que, se interrompermos os fluxos de capital, interrompemos a circulação de produtos. Jorge Martin, que criticou essa posição de Harvey, escreve que:

Este é um exemplo flagrante da incapacidade dos acadêmicos de compreender o poder criativo da classe trabalhadora. Uma análise superficial das revoluções nos últimos 100 anos mostra o oposto do que Harvey prevê. Qualquer grande desenvolvimento revolucionário mostra como a classe trabalhadora se move no sentido de assumir o controle das fábricas, da produção de alimentos etc. por conta própria (...). (MARTIN, 2020)

O autor dá diversos exemplos históricos de experiências revolucionárias que foram bem-sucedidas em garantir o abastecimento[17] e, aqui, até poderíamos concordar com Piketty: quem produz para si, se empenha mais. As experiências de ocupação de fábricas falidas e até das escolas paulistas entre 2015 e 2016 explicitam a pouca fé de Harvey na classe trabalhadora.

Ao contrário de ser o sujeito necessário da produção humana, é o capital que, sem mencionar o desastre ambiental e as catástrofes humanas que vem causando, interrompe e destrói a produção material em períodos de crise para reduzir os efeitos da superprodução sobre os preços. Poderíamos mencionar aqui a queima de café pelo governo de Getúlio Vargas, em uma fogueira armada na festa junina de 1931 e que durou meses e meses; diferentes paralisações de plantas produtivas em vários momentos históricos; as casas vazias frente às pessoas acampadas em 2008, no centro do capital. Mas voltemos ao algodão do mítico império chinês, com o qual Brecht figura essa contradição.

Encontramos o pai de Turandot desesperado para sustentar os lucros provenientes de seu império do algodão e seu poder no império chinês, diante do fracasso do Congresso dos tuis. O Imperador já conhecia o único meio de preservar os preços do algodão: queimar metade da safra. Para isso havia, no entanto, um conjunto de dificuldades. O algodão estava nos armazéns do Império, e não seria possível transportá-lo sem ser visto. Era também impossível queimá-lo ali mesmo, porque a fumaça não passaria despercebida. Parecem iminentes ao Imperador a invasão dos armazéns reais pelo povo, bem como sua queda.

Mas Turandot está prestes a entrar no palácio, de braços dados com a solução para a crise imperial, tanto a econômica, quanto a política: “Papai, deixa eu te apresentar um dos homens mais inteligentes que eu já encontrei...”. O Imperador, contudo, pretende fugir, por medo do povo, e justifica-se afirmando que “O povo deve poder escolher seu próprio regime” (BRECHT, 1993, p. 161-62). E então a inteligência de Gogher Gogh começa por formular uma solução para o problema político: “Que história é essa de ‘o povo deve poder escolher seu próprio regime’? E por acaso o regime pode escolher o seu povo? Não pode. Por acaso o senhor teria escolhido este povo se tivesse tido o poder de escolher?” “Claro que não. O povo pensa exclusivamente no seu bem estar e vive escandalosamente das nossas rendas”, responde o Imperador. “O povo é um perigo público. Conspira contra o Estado”, sintetiza o miliciano. “Brilhante”, considera o Imperador, que pede então a opinião de Gogher Gogh sobre o que o estado deve fazer. “Muito simples. (...) Só para encurtar, pois não temos tempo, vocês não devem responder à pergunta sobre o algodão, devem proibi-la”. É assim que aquele que não passou na prova da escola tui e ganha a vida chefiando um bando de assaltantes milicianos supera em inteligência o conjunto dos intelectuais, começando a solucionar o problema do algodão: “Tem alguma verdade nas suas palavras, jovem. (...) É a primeira coisa razoável que estou ouvindo e você não usa chapéu de tui” (BRECHT, 1993, p. 162), diz o Imperador.

O império, contudo, não tem mais força para proibir as perguntas, uma vez que guarda imperial abandona o palácio, por medo do povo, ou para se juntar a ele. Com isso, Gogh pôde exigir o posto do Ministro da Guerra, e tomar para si e seu bando as armas do arsenal do Império. Investido do poder das armas, Gogher Gogh apressa-se a criminalizar os tuis, propondo a substituição do debate democrático pelos princípios morais:

Como todos sabem, são perigosos traficantes de opiniões. Ou melhor, traficantes de opiniões perigosas. (...) Além do mais, acho nojenta toda essa masturbação mental, essa mania de pensar sobre tudo. Basta haver moral e respeito por quem sabe fazer as coisas como elas devem ser feitas. (BRECHT, 1993, p. 166)

Turandot, que se deliciava com frases bem feitas, agora se desfaz em languidez pelo autoritarismo viril do assaltante alçado ao poder do império, aplaudindo a proibição das perguntas como a saída mais inteligente para o reino e declarando sua admiração: “Gogô!” Ela não percebe qualquer contradição entre a inteligência, que deve convencer, e a força, que se impõe: “Papai, eu lhe conheço muito bem: quero deixar bem claro aqui que essas ideias são patrimônio do Gogher Gogh. Portanto, o senhor Gogh entra no concurso da Associação dos Tuis com todos os direitos” (BRECHT, 1993, p. 163).

O Sr. Gogh parece ter trazido a solução para o problema do poder imperial, ameaçado pelos questionamentos populares. Mas ainda falta resolver o problema econômico. Para que o preço do algodão não caia, ameaçando a lucratividade do império do algodão, ainda não se elaborou nenhuma saída distinta da queima do produto que, reduzindo a oferta, recomporia os preços. Ao mesmo tempo, após ter solucionado a questão da ameaça política do povo, o antigo ministério da guerra começa a questionar o Imperador a respeito do poder concedido ao miliciano, e sugerir que ele seja agora dispensado. Mais uma vez, Gogh lançará mão da agudeza de espírito para, a um tempo, garantir o lucro do imperador e seu próprio lugar no estado. Ele faz então um discurso para os membros do seu bando:

(...) Uma corja safada de militares tenta agora convencer o Imperador de que os serviços de vocês já não são mais necessários. Por isso eu me vejo obrigado, naturalmente com a aprovação do Imperador, a dar, como já tinha sido feito nos primeiros anos do nosso movimento, um exemplo bem visível para que até o maior boçal reconheça que sem uma proteção enérgica nenhuma propriedade está segura. Com esse objetivo, ainda esta noite vocês irão atear fogo numa parte dos armazéns. Incendiar a metade dos armazéns, para ser mais exato. Cumpram com seu dever! (BRECHT, 1993, p. 167)

A proposta genial de Gogher Gogh é incendiar os armazéns e colocar a culpa no povo revoltoso. Com isso, reduz a oferta de algodão, resolvendo o problema econômico do Imperador, e atesta a necessidade de seus serviços para Estado, sem os quais nenhuma propriedade privada está segura. Ele compara essa ideia com aquela que foi levada a cabo no início da constituição do bando assaltante-miliciano: também lá, eles mesmos assaltavam os comerciantes para convencer da necessidade de pagarem a segurança das lojas, que eles então garantiriam. Agora, direciona sua estratégia para o próprio estado chinês.

O povo nota a queima do algodão, e Gogher Gogh acusa, conforme já fora planejado: “O incêndio deve ter sido provocado pelos camiseiros e os sem-roupa, mancomunados com os tuis. Deve ser um sinal para o revolucionário Kai Ho. Agora vou ter que apelar par medidas mais drásticas. Antes de mais nada serão exterminados os intelectuais incendiários” (BRECHT, 1993, pp. 172-73). A própria “Associação dos Tuis é acusada de ter ofendido o Imperador, porque na Grande Conferência teria revelado um segredo de Estado” (BRECHT, 1993, p. 175). Os tuis no mercado começam a esconder seus chapéus, e a polícia – o bando de Gogh – passa a destruir os livros. A Casa de Chás é fechada e mulheres de povo, com alguns tuis, tentam esconder e preservar o patrimônio cultural da China: obras de arte, partituras musicais, livros e textos... Mo Si, o Rei das Desculpas, pede para uma lavadeira: “Será que a senhora não podia guardar este globo terrestre aqui embaixo? Que a Terra seja redonda é uma coisa que pode ter importância algum dia” (BRECHT, 1993, p. 183). Profético.

A classe intelectual é perseguida e os tuis identificados, em conjunto, com aquele agitador, do qual fizeram tudo para se distinguir. Os revolucionários organizados nas montanhas e os vaidosos tuis tornam-se todos igualmente inimigos internos da China. Nesse meio tempo, o império do algodão começa a recuperar sua lucratividade, porque já se ouvem os vendedores: “A metade de uma colheita anual destruída pelo fogo! Os preços estão subindo! Comprem logo antes que eles fiquem proibitivos!” (BRECHT, 1993, p. 181)

Com esse desfecho, Brecht sustenta o oposto do quer David Harvey: a forma capital, ao contrário de ser necessária para a produção e circulação dos valores de uso, impede que elas se deem, caso não proporcionem lucratividade. É o que Marx há muito insiste, quando afirma que o capital “põe como condição do trabalho necessário, o trabalho excedente” (2011, p. 589). Quer dizer, aquela atividade produtiva que não é capaz de valorizar o valor, não se dá; ou, se acontece de se dar, é mais vantajoso para o proprietário que seu produto seja destruído, do que distribuído.

2. Turandot, a razão e a divisão social do trabalho

O cerne da peça de Brecht é a figuração do caráter que o estado assume quando os conflitos de classe são explicitados, e que Marx chamaria de estado bonapartista: na defesa dos interesses de classe, o poder das armas sufoca a rebeldia popular e, com ela, o conjunto das liberdades civis e do debate democrático, ou seja, a classe intelectual que até ontem ajudava a conciliar as contradições no sentido da manutenção da ordem e de seus próprios privilégios. Essa forma de estado acaba por afogar também a vontade particular de membros da própria classe dominante, em nome do principal interesse da classe: subjugar o povo.

Brecht também dissolve a diferença entre razão e direito, por um lado, e força, de outro. A lei diz que o estado pode usar a força para manter a ordem social, isto é, a segurança da propriedade privada. O direito é então o direito da força, concedida a certa esfera social, e a força é o modo como a lei, elaborada por esta mesma esfera, se impõe. Assim, a peça desmistifica a crença de que a esfera da racionalidade determina o estado, e que este regula a vida econômica civil, de modo a possibilitar que uma solução social fosse elaborada em uma conferência de intelectuais. Ao contrário, sua verdadeira natureza, aquela que emerge do aprofundamento das contradições, é a violência. O estado que nossos tuis defendiam em seu congresso é essencialmente Gogher Gogh.

Nesse ínterim, Turandot não vê mais graça no seu “bonitão” e não quer mais se casar com ele que, ademais, tem outras prioridades para as quais a princesa é apenas um meio:

Papai, acabei de conhecer um homem muito simpático e quero me casar com ele. Não estou falando do tui de ontem à noite, aquele da Casa de Chá. Esse também era inteligente e fiquei muito chateada com o que você fez a ele, Gogher. Você faz questão de ser grosseiro. Mas não é dele que estou falando, e sim de um oficial que me explicou como o palácio pode ser defendido, pois considero a situação muito grave e não há mais tempo a perder. Posso me casar com ele? (BRECHT, 1993, p. 188)

O Imperador chega a perguntar timidamente ao senhor Gogh se ele não quer desistir do casamento. Os membros do governo todos começam a se incomodar com a dimensão do poder do miliciano. Turandot insiste: “Mas você tem que aceitar, Gogher. Dói um pouquinho no começo, mas a vida continua, e os seus ferimentos de guerra estarão logo curados. Só peço um único favor – não seja tão duro na queda. Posso, papai?” (BRECHT, 1993, p. 188)

Ora, aquele que se casa com a princesa, herda o governo do reino ao receber a capa do primeiro Imperador Mandchu, fundador da China. No momento do casamento, a capa desaparece. É reconhecido que houve uma traição. Turandot tenta culpar o guardião do templo onde a capa é admirada: “Ele deve ter tido frio, papai”. O Imperador minimiza a relevância dessa traição: “Mas era uma capa ordinária, toda remendada” (BRECHT, 1993, p. 190).

Gogher Gogh não hesita e mostra que o Imperador não tem saída: “Mesmo o ordinário é raro hoje em dia. Se o senhor não tivesse escondido o algodão. Ao casamento, senhores!” (BRECHT, 1993, p. 190)

Ouvem-se tambores e o grito estridente de Turandot. Ela se dá conta que nem a vontade dela ou de seu pai, e nem mesmo a razão têm poder contra aquele que provou ser o homem mais inteligente da China. Ele deu à força o que lhe pertence por direito, e assim logrou preservar o império de algodão e o poder imperial.

O povo, batido, reorganiza-se nas montanhas. É para lá que Sen, o velho camponês que vai a Pequim com seu netinho para estudar o tuísmo, resolve se dirigir. O pequeno Eh Feh tenta compreender o que se passa, e pergunta ao avô: “Quer dizer que os tuis vão continuar a existir mesmo quando Kai Ho distribuir as terras?” Sen acha graça: “Não por tanto tempo assim. Vamos todos ter grandes campos e então todos vamos poder fazer grandes estudos” (BRECHT, 1993, p. 185).

Bibliografia:

BRECHT, Bertold. Turandot e o congresso das lavadeiras. In Teatro completo, vol. 10. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1993.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.

__________ Comum – ensaio sobre a revolução no século XXI. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2017. Versão digital.

ENGELS, F. Anti-Dühring, ou a subversão da ciência pelo Sr. Eugênio Dühring (Parte II – Economia Política, Capítulo VI: Trabalho simples e trabalho complexo). Tradução de Isabel Hub e Teresa Adão. Lisboa: Edições Afrodite, 1971.

HARVEY, David. Neoliberalismo: história e implicações. Tradução de Adail Sobral e maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

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MARX, K. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política, tradução de Mário Duayer e Nélio Schneider, São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.

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_________ O Capital – Crítica da economia política – Livro terceiro. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. Coordenação e revisão de Paul Singer. Coleção Os economistas Vols. IV e V. São Paulo: Nova Cultural, 1986.

MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã - Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.

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_____________ Entrevista a Marc Bassets, 24/11/2019. Disponível em:

_____________ Entrevista a Marc Bassets, 23/09/2019. Disponível em:

PRADO, Eleutério. Comum: uma alternativa política ao neoliberalismo. 06/11/2017. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/11/06/comum-uma-alternativa-politica-ao-neoliberalismo/

RAUBER, Isabel. Resenha de Capital e ideologia. 07/02/2020. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596131-o-cometa-piketty-sobre-o-livro-capital-e-ideologia

RICARDO, David. Princípios de economia política e tributação. Tradução de Paulo Henrique Ribeiro Sandroni. Coleção Os Economistas. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

SMITH, Adam. A riqueza das nações. Vol I. Tradução de Alexandre Amaral Rodrigues e Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2003.




[1] Piketty formula três leis fundamentais do capitalismo, mas que redundam nisso: a ampliação do capital é mais veloz que o crescimento econômico. São elas: a primeira, α = r x β, em que α é a participação do capital na renda nacional, r é o retorno do capital e ß é a relação estoque de capital/renda e configura uma tautologia; a segunda, β = s/g, em que a razão estoque de capital/renda (ß) é uma relação entre taxa de poupança (s) e taxa de crescimento (g); a terceira, r > g, relação entre o retorno do capital (r) e a taxa de crescimento (g), em que o primeiro é superior à segunda.

[2] Ver entrevista sobre Capital e Ideologia, disponível em:

Ao ser perguntado “Por que os bilionários devem pagar 90%? Por que esse número e não outro?”, ele responde: “90% para que tem um bilhão de euros significa que ficaria com 100 milhões de euros. Com 100 milhões você ainda pode ter um certo número de projetos na vida.”

[3] Entrevista disponível em:

[7] “O valor torna-se, portanto, valor em processo, dinheiro em processo e, como tal, capital. Ele provém da circulação, entra novamente nela, sustenta-se e se multiplica nela, retorna aumentado dela e recomeça o mesmo ciclo sempre de novo. D – D’, dinheiro que gera dinheiro – money which begets money – diz a descrição do capital na boca de seus primeiros tradutores, os mercantilistas” (MARX, C, I, 1, 1985, p. 131).

[9] Embora hoje, na conjuntura de estagnação estrutural, as colônias diretas e a espoliação violenta voltem a aparecer como centrais para a reprodução dos capitais centrais e de seu domínio, como atestam o caso da Palestina e a destruição da Síria.

[11] “(...) impressiona ler uma proposta supostamente superadora do capitalismo que desconheça as previsíveis reações de classe dos capitalistas e proponha, ou espere, que esses renunciam a seus interesses e a seu poder ancorado nas sociedades proprietárias-desigualitárias por eles construídas, interessados em dar participação aos trabalhadores para repartir – mediante votos – seus bens e lucros em prol de um bem-estar social, alheio ao mundo desenhado por eles.”(RAUBER, Isabel. Resenha de Capital e ideologia, Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596131-o-cometa-piketty-sobre-o-livro-capital-e-ideologia)

[12] Resulta ainda da exploração da periferia do capitalismo, da ação “de sugar mais-valia de outros lugares” (HARVEY, 2008, p. 84).

[13] O neoliberalismo significa um ataque à classe trabalhadora, voltado a quebrar sua organização. Só a título de exemplo, Harvey escreve a respeito do setor da mineração de carvão na Inglaterra: “Thatcher provocou uma greve dos mineiros em 1984 ao anunciar uma onda de reorganizações na estrutura do trabalho e o fechamento de minas (o carvão era importado era mais barato). A greve durou quase um ano, e apesar de muita simpatia e apoio públicos, os mineiros perderam. A espinha dorsal de um elemento nuclear do movimento trabalhista britânico fora quebrada” (HARVEY, 2008, p. 47).

[14] PIKETTY, apud RAUBER, I. Resenha de Capital e ideologia. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596131-o-cometa-piketty-sobre-o-livro-capital-e-ideologia

[15] Não posso deixar de me lembrar aqui de um poema satírico de Heinrich Heine, que parece ter sido escrito para eles: "Índole pacífica. Desejos: cabana modesta, telhado de palha, porém uma boa cama, comida gostosa, leite e manteiga bem frescos, flores em frente à janela, belas árvores defronte à porta, e se o bom Deus quiser me fazer totalmente feliz, que me conceda a alegria de ver, nessas árvores, cerca de seis ou sete de meus inimigos enforcados. - De coração comovido hei de perdoar, antes de suas mortes, todas as infâmias que me infligiram em vida - sim, temos que perdoar nossos inimigos, mas não antes de serem enforcados. - Perdão, amor e compaixão."

[16] A palestra de David Harvey está disponível em

Cito as passagens já transcritas de sua fala por Jorge Martin, em “David Harvey against revolution: the bankruptcy of academic “Marxism”, publicado em 25 de junho de 2020, no site “Defense of Marxism”, disponível em https://www.marxist.com/david-harvey-against-revolution-the-bankruptcy-of-academic-marxism.htm?fbclid=IwAR1RHYVeiLT_DN5Vq9Lvpi6TiU19ry_L0nW9r4igVsTuXjgq4SykcPQ6ZU8

[17] “Durante a revolução chilena de 1971-73, diante de uma paralisação reacionária dos caminhoneiros, os bairros operários estabeleceram as Juntas de Abastecimento Popular para garantir a distribuição de alimentos. Durante a Revolução Espanhola, as organizações operárias assumiram a gestão das fábricas, dividiram as propriedades rurais e organizaram a distribuição de alimentos, quando os capitalistas fugiram para o campo fascista. Na greve geral francesa de maio de 1968, quando 10 milhões de trabalhadores entraram em greve e ocuparam as fábricas, os produtores camponeses organizaram o abastecimento das cidades sob o controle dos comitês de trabalhadores. Na Venezuela, o lockout patronal de 2002-03 foi superado pela ação dos próprios trabalhadores, que assumiram as instalações da petroleira e a dirigiram sob seu próprio controle, além de desencadear um amplo movimento de tomadas de fábricas e controle operário” (MARTIN, 2020).



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