top of page

Lukács contra Adorno: a crítica do formalismo na música

por Arthur D'elia

Juan Gris - Guitar and Newspaper


UM BREVE E NECESSÁRIO AGRADECIMENTO: Preciso aqui dizer que o presente texto não seria possível sem as contribuições e pontos levantados pelo meu querido amigo Eduardo Galeno. Sobretudo no que tange a canção Disparada que foi aqui analisada e acima de tudo acerca dos limites do pensamento de Adorno.


INTRODUÇÃO


A partir do pensamento de Lukács no que tange a estética musical, é possível contrapor o modo como opera Adorno. Demonstrando assim a necessidade de se afirmar o realismo estético e o caráter desfetichizador da obra de arte. No pensamento de Adorno há uma regressão a uma concepção que, ao invés de criticar a tendência ao fetiche na música no interior do modo de produção capitalista, enaltece (de modo consciente ou não) tal tendência que é marcada pelo formalismo e completo desligamento perante os conteúdos da realidade social. Que este texto, caso consiga ser efetivo do ponto de vista ontológico, possa contribuir para futuras análises envolvendo a música.


A ESTÉTICA MUSICAL DE ADORNO


Em Adorno, a música constitui a manifestação imediata do instinto humano (ADORNO, 1996). Seria um modo privilegiado de formalização do que não se deixa expressar diretamente, ou seja, a música possui uma distância para com o horizonte conceitual do mundo dos objetos (SAFATLE, 2007). Porém, uma grande problemática surge no momento em que a música adentra na sociedade impetrada pelo modo de produção capitalista. Nela, em dado momento do século XX, o indivíduo passa a ser mero espectador passivo e desinteressado com relação àquelas obras que se condicionam ao padrão costumeiro (ADORNO, 1996). Com relação a esse fator, ligado a alguns tipos artísticos, de modo complicado à ideologia burguesa, como observa Horkheimer e Adorno:


Formas fixas como o sketch, a história curta, o filme de tese, o êxito de bilheteria são a média, orientada normativamente e imposta ameaçadoramente, do gosto característico do liberalismo avançado. (HORKHEIMER e ADORNO, 1985, p. 63)


Com isso, dentre outras coisas, o indivíduo consome o que é “sucesso”, conhecido por todos (por conseguinte, o que é posto pelos trustes do mercado da arte) e, assim, existe um desprezo pelo valor inerente da música. Diante disso, tem-se o predomínio daquilo que é mero entretenimento, atrativo e que recusa as reflexões trazidas pela arte como forma autônoma (ou não). Assim sendo, há, nesse fenômeno, uma regressão auditiva, fruto da degeneração oriunda da massificação da música enquanto resultado da Indústria Cultural. Sobre os ouvintes, tem-se que:


(...) os ouvintes aprenderam a não dar atenção ao que ouvem, mesmo o próprio ato da audição. Tal observação é contestável quanto ao valor publicitário da música. Mas é essencialmente verdadeira quando se trata da compreensão da própria música (ADORNO, 1996, p. 67).


Configura-se, nesse caso, uma distração por parte do ouvinte e, mais especificamente, sua liberdade subjetiva é abalada pela coação coletiva, que molda o seu gosto particular enquanto indivíduo. É o que Adorno chama de ouvinte de entretenimento. O comportamento valorativo musical torna-se, assim, mera ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas (ADORNO, 1996). Acerca da canção de sucesso, importante notar que:


O mais conhecido é o mais famoso, e tem mais sucesso. Consequentemente, é gravado e ouvido sempre mais, e com isto se torna cada vez mais conhecido. A própria escolha das produções-padrão orienta-se pela “eficácia” em termos de critério de valor e sucesso que regem a música ligeira ou permitem ao maestro de orquestra famoso exercer fascínio sobre os ouvintes de acordo com o programa (ADORNO, 1996, p. 75).


Tem-se com isso que a cultura de massas, subordinada às leis do consumo que as mass media imbuem à sociedade de classes, acarreta na regressão da capacidade auditiva dos ouvintes de se atentarem à musicidade, à prosódia e à poética de dada canção. Trata-se da forma musical, então, como mera mercadoria, como valor de troca. É essa “inutilidade” estética que caracteriza o produto de massas ao ser destinado tão somente ao consumo e entretenimento. Sendo assim, o agradável não passa de uma imagem de um imperativo que se esconde sob o manto da dominação classista, que vai além, chegando até ao cume da cognição, da relação que determinado indivíduo tem para uma música. Além da produção de massas (que Adorno, erroneamente, fala com o conceito de música ligeira. O mais correto, e o utilizado neste artigo, é produção de massas), existe, por outro lado, o que Adorno denomina de música “séria”:


[...] Assim como a música séria, desde Mozart, tem a sua história na fuga da banalidade e como aspecto negativo reflete os traços da música ligeira, da mesma forma presta ela hoje em dia testemunho, nos seus representantes mais credenciados, de sombrias experiências, que se prefiguram, carregadas de pressentimentos, na despreocupada simplicidade da música ligeira (ADORNO, 1996, p. 72).


Adorno demonstra como originalmente a música séria se caracterizava pela fuga da banalidade. Tal coisa diz respeito ao que comumente se chama de música erudita. No entanto, ainda que consiga romper com todo o aspecto banal, ela acaba levando consigo elementos da música ligeira por estar submetida à lógica do consumo, do mercado e padronização (ADORNO, 1996). Assim como a forma-canção, a música de erudição, que trabalha com aspectos diferentes de criatividade, também se viu como herdeira da mistificação da arte, na qual se pode falar, sem pestanejar, mercadológica.

Diante do que foi exposto até aqui, considerando o processo de liquidação do indivíduo mediante o consumo da música submetida à lógica do mercado, no qual se tem um comodismo com o que é barato e de fácil absorção, pode-se falar rapidamente sobre o que seria a solução adorniana para essa comunicabilidade mutilada pela Indústria Cultural. A música subversiva, conhecida como arte autônoma na teoria adorniana, se opõe ao conformismo e não foi criada para ser mero objeto de prazer ou entretenimento (ADORNO, 1996). Um exemplo desse tipo de música que se volta a esse estado de coisas é a de vanguarda, cabendo ressaltar Arnold Schönberg. Duarte nos diz acerca dele que “[...] simboliza a recusa da música erudita em compactuar com o nascente sistema de industrialização e comercialização em massa dos bens culturais [...]” (DUARTE, 2007, p. 106).

Segundo Adorno, Arnold Schönberg se coloca na contramão da banalidade advinda do culto pela canção da moda ou até mesmo pela música erudita, que iria virar, no século passado, expressão do mais profundo preconceito provindo das classes sociais dominantes. Na década de 20, em Viena, é criado o dodecafonismo, resultado das mais diversas relações e contradições ideológicas da sociedade burguesa na arte contemporânea. Não à toa, a música dodecafônica vai, junto com a poesia aleatória de Stéphane Mallarmé e a filosofia de Ludwig Wittgenstein, de encontro às inovações ideológico-societárias trazidas pelo pós-1848, o ano do primeiro combate armado entre burguesia e proletariado. O dodecafonismo de Schönberg preza a substituição da hierarquia de notas (sistema tonal) pela ordenação dodecafônica, numa escala em que uma nota não pode ser utilizada até que todas as outras tenham sido também. Isso significa, pela mediação do “gosto” comum, que, ao contrário da canção de sucesso marcada pela repetitividade, sua obra não pode ser degustada ou consumida como valor de uso dentro do universo coercivo do império do mercado da cultura. Sendo assim, a chamada arte autônoma, configurada em termos que desatam a sociedade do seio da criação artística, fazendo com que o feitor de dada obra se recalque do contexto do prosaísmo social, se desloca como condição primeira para a emancipação dessa comunicação extremamente defasada cuja identidade encontra-se no cancioneiro de massas, como nos gêneros brasileiros funk, sertanejo universitário e axé music (para falar de modo sucinto, há um problema gigantesco em chamar esses tipos de gêneros que, um dia, não sofreram a degeneração mercantil de hoje. Mas esse assunto não é o deste artigo). Importante frisar que esse fenômeno não significa necessariamente uma busca pela art pour l'art, mas apenas a demarcação da arte como causa sui, isto é, autolegislada, como teoriza o uspiano:


[...] em prol da noção de autonomia como advento de uma forma capaz de reconfigurar os modos naturalizados de determinação da sensibilidade, abre-se espaço para a redefinição do que devemos entender por agência livre e emancipada. (SAFATLE, 2020, p. 190)


O que a citação está lutando contra, em muitos casos, é em relação ao fetiche outorgado e imanente no bojo da industrialização dos bens culturais. O que caracteriza o fetichismo é justamente a relação fragmentária/orgásmica que o ouvinte tem em sua própria experiência de ouvir música. Significa uma incapacidade de captar a totalidade da obra artística, submetendo toda uma sociedade ao jugo do místico, do isolado, da incapacidade de reter uma significação para si enquanto humano.


Tal como o fetichista, que destrói de maneira metonímica a mulher para poder gozar dos traços isolados de seu corpo, o ouvinte moderno se encontraria na posição de gozo fascinado por momentos parciais, o que o desobrigaria de reconstruir a totalidade. (SAFATLE, 2007, p. 378)


Tem-se que o total perde seu caráter de importância, gerando um dilaceramento da feitura, por exemplo, de uma canção que perde sua tonalidade formal em prol de sua veia letrista (ou vice-versa). Esse fator se dá de tal modo que, se isolar uma parte da obra, sua integralidade fica descaracterizada. Por consequência, entre os ouvintes da cultura de massas, impulsionados a consumirem canções marcadas pelo repetitivo e maçante, por certo imediatismo de escuta de elementos que desintegram tanto a subjetividade do ouvinte como a objetividade da obra, implicando no distanciamento que aliena a audição. O ouvinte vítima da regressão auditiva se acostumou com entretenimento barato; sendo aterrorizante para ele qualquer esforço mais elaborado que exija maior reflexão e concentração no que tange a obra artística (ADORNO, 1996).


MÚSICA E FETICHE DA MERCADORIA


Mediante o que foi dito até o momento, o que caracteriza o fetichismo é a desfiguração, tornando a relação com o objeto artístico alienante e fazendo com que se abra um leque de possibilidades que separam valor de troca e obra de arte autêntica. Não somente como entretenimento, mas como ouvinte de consumo cultural é que se dá essa problemática, como nos casos das pessoas que ouvem música erudita por determinação de prestígio social, resultando no preconceito e afastamento de tudo aquilo que cheire popular (não especificamente massificante). Acerca desse fator, tem-se que:


Este é o verdadeiro segredo do sucesso. É o mero reflexo daquilo que se paga no mercado pelo produto: a rigor, o consumidor idolatra o dinheiro que ele mesmo gastou pela entrada num concerto de Toscanini. O consumidor “fabricou” o sucesso (...) não porque o concerto lhe agradou, mas por ter comprado a entrada (ADORNO, 1996, p. 78).


Portanto, o caráter fetichista da mercadoria reside na veneração do que é autofabricado na qualidade de valor de troca, no qual se aliena tanto do produtor quanto do consumidor. Nesse âmbito, o valor de uso é retirado dos homens na medida em que o valor de troca veste a fantasia de um objeto de prazer. Pode-se afirmar que os consumidores se tornam escravos dóceis das mercadorias. Ainda sobre o caráter fetichista, Adorno coloca que:


O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios puramente psicológicos. O fato de que “valores” sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria (ADORNO, 1996, p. 77).


Importante notar que Adorno relaciona o fetiche a uma espécie de veneração pelo valor de troca que impossibilita a captação das qualidades da obra como mercadoria e de reconhecer o seu valor de uso. No entanto, essa compreensão do fetiche da mercadoria não corresponde ao que foi elaborado por Karl Marx em sua obra O capital. As categorias de valor de uso e de troca serão expostas a seguir, bem como o fetiche da mercadoria no texto marxiano.

A utilidade de uma coisa torna-a um valor de uso. No interior da mercadoria, essa utilidade se efetiva no uso ou consumo, condicionada por suas propriedades (MARX, 2017). Já o valor de troca aparece inicialmente como uma proporção em que valores de uso de um tipo são trocados por valores de uso de outro tipo (MARX, 2017). Para que um objeto vire valor de uso é necessário que, por meio da troca, ele seja transferido a outrem, para quem vai servir como valor de uso (MARX, 2017). Importante notar que as propriedades físicas das mercadorias são frutos do trabalho humano. O trabalho é responsável por conferir valor às mercadorias. Na mercadoria enquanto valor de troca, os valores de uso são abstraídos, restando apenas o fato de serem produtos do trabalho humano (MARX, 2017). Tem-se, por fim, um trabalho abstrato como aquele que confere valor (MARX, 2017). É preciso ressaltar também que na relação entre valor e valor de uso, necessariamente nenhum objeto pode ser valor sem ser valor de uso. Já o contrário acontece. Se uma coisa fruto do trabalho humano é inútil, também o é o trabalho nela contido, não possuindo assim valor (MARX, 2017). Sobre o outro aspecto, note-se que propriedades naturais como o ar não possuem valor, mas ainda assim constitui valor de uso por sua utilidade (MARX, 2017).

Não é o objetivo do presente texto explicitar profundamente o que está na obra O capital, mas apenas explicar o que comparece na reflexão sobre o modo como a música aparece na sociedade capitalista. Com relação ao fetichismo da mercadoria, Marx aponta que:


O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores (MARX, 2017, p. 147).

Dá-se com o fetiche da mercadoria que as relações entre homens aparecem a eles como mera relação entre coisas. Ao passo que os produtos do trabalho aparecem dotados de vida própria. Não se deve entender o fetiche apenas como uma “veneração” no sentido religioso com que Charles de Brosses, escritor francês que utilizou o termo para exemplificar as religiões feiticistas da costa africana, mas como um fato real que comparece na sociedade capitalista concretamente. Para entender como se dá o processo descrito por Marx, Lukács explica que:


(...) no ser social, antes de tudo na esfera da economia, cada objeto é, por essência, um complexo processual; este se apresenta, contudo, no mundo fenomênico, com frequência como objeto estático, claramente definido; com isto o fenômeno torna-se aqui fenômeno justamente ao permitir desaparecer para a imediaticidade o processo ao qual deve sua existência como fenômeno (LUKÁCS, 2018, p. 317).


Importante notar que esse “aparecer” inerente ao fetiche da mercadoria se caracteriza justamente pelo plano mais imediato fazer desaparecer a essência que seria a relação social entre seres humanos no interior da esfera produtiva (LUKÁCS, 2018). Ainda que o fenômeno só venha a ser devido à já citada essência (LUKÁCS, 2018). Tem-se com isso que o “aparecer” corresponde aos momentos reais no interior da sociedade capitalista, que são os da coisificação dos homens e da naturalização de aspectos sociais frutos do trabalho nos objetos produzidos. A essência refere-se aos momentos de continuidade (LUKÁCS, 2018). Dessa maneira, o fenômeno corresponde aos momentos efêmeros, de ruptura com o processo (LUKÁCS, 2018).

A partir do que foi exposto, percebe-se que tal “aparência” nada tem a ver com “veneração” ou alguma ilusão subjetiva, mas se caracteriza como um momento da realidade, como aquilo que é efêmero no interior do movimento do real. No caso do fetichismo, o fenômeno vem à tona de modo imediato. Após explicitar o caráter do fetiche da mercadoria, pode-se agora demonstrar, em oposição a Adorno, o papel desfetichizador da música mesmo fazendo parte do jogo mercadológico capitalista.

Primeiramente, é preciso externar o posicionamento de Theodor Adorno em linhas rápidas. Em um vídeo do YouTube de uma entrevista sua na década de 1960, Adorno polemiza ao enunciar que a canção de protesto, aquela que remete diretamente a um problema social (normalmente vindo de um governo autocrático), seja inócua em essência:


Na verdade, eu acredito que as tentativas de reunir protesto político e música popular – ou seja, música de entretenimento – estão arruinadas desde o início pelas seguintes razões: toda a esfera da música popular, mesmo onde se reveste de roupagem modernista, é de tal modo inseparável do caráter de mercadoria, da míope fixação com o divertimento, do consumo, que as tentativas de atribuir-lhe uma nova função permanecem inteiramente superficiais. E tenho de dizer que quando alguém se envolve e, por qualquer razão, acompanha os choramingos musicais cantando uma coisa ou outra sobre a Guerra do Vietnã ser insustentável... Eu acho que, na realidade, é essa canção que é insustentável. Porque, ao pegar o horrendo e torná-lo de alguma forma consumível, ela acaba arrancando dele algo como qualidades consumíveis. (1)

Obviamente que, no século XX – o século da canção –, houve uma gama de fundamentos que possibilitou as ideias concebidas na fala de Adorno, como nos casos em que a barbárie foi comercializada em formas artisticamente concebidas como agressivas e socialmente vistas como protestos (os casos de bandas de punk, metal e etc., por exemplo, detidamente transformadas em consumo rentável para a indústria fonográfica em larga escala na história). Mas o conceito adorniano é generalizante e um tanto funcionalista. Sabe-se que a canção propriamente não subsiste apenas pelos mesmos elementos que a engendraram: ela, apesar de ser fruto explícito e condição necessária, no Brasil e em outros lugares, de autenticação do Estado-nação, superou e continua superando as particularidades burguesas através da crítica dos costumes, da política, da economia, enfim, da sociedade humana como tal. Pode-se dizer que, apesar de acertada a noção de Adorno de que a canção (a arte, no geral. Ou, para ir mais fundo, tudo, já que não é necessário nem mencionar que até ícones revolucionários, Mao Tsé-Tung e Che Guevara, foram postos, juntos com sopas enlatadas e estrelas no cinema estadunidense, como propostas de quadros da pop art de Andy Warhol e vendidos com preços na casa dos milhões) pode ser comercializada e comercializar a luta humana contra a barbárie do capital, deve-se perceber que nem sempre (ou quase nunca, a depender) ela usufrui do aparato qualitativo comercial capitalista.

Podem-se vislumbrar exemplos claros no período da ditadura militar-empresarial, como na canção Disparada, escrita por Gerado Vandré e Théo de Barros e interpretada por Jair Rodrigues, acompanhado pelo Trio Marayá e o Trio Novo, no Festival de Música Popular Brasileira de 1966. Nela, por meio de sons da viola e do barulho ensurdecedor da plateia, Jair ganhou o prêmio de 15 milhões de cruzeiros. Segue a letra integral da canção:


Prepare o seu coração

Pras coisas que eu vou contar

Eu venho lá do sertão

Eu venho lá do sertão

Eu venho lá do sertão

E posso não lhe agradar

Aprendi a dizer não

Ver a morte sem chorar

E a morte, o destino, tudo

E a morte, o destino, tudo

Estava fora do lugar

E eu vivo pra consertar

Na boiada já fui boi, mas um dia me montei

Não por um motivo meu

Ou de quem comigo houvesse

Que qualquer querer tivesse

Porém por necessidade

Do dono de uma boiada

Cujo vaqueiro morreu

Boiadeiro muito tempo

Laço firme, braço forte

Muito gado e muita gente

Pela vida segurei

Seguia como num sonho

Que boiadeiro era um rei

Mas o mundo foi rodando

Nas patas do meu cavalo

E nos sonhos que fui sonhando

As visões se clareando

As visões se clareando

Até que um dia acordei

Então não pude seguir

Valente lugar-tenente

De dono de gado e gente

Porque gado a gente marca

Tange, ferra, engorda e mata

Mas com gente é diferente

Se você não concordar

Não posso me desculpar

Não canto pra enganar

Vou pegar minha viola

Vou deixar você de lado

Vou cantar noutro lugar

Na boiada já fui boi

Boiadeiro já fui rei

Não por mim nem por ninguém

Que junto comigo houvesse

Que quisesse o que pudesse

Por qualquer coisa de seu

Por qualquer coisa de seu

Querer mais longe que eu

Mas o mundo foi rodando

Nas patas do meu cavalo

E já que um dia montei

Agora sou cavaleiro

Laço firme, braço forte

De um reino que não tem rei


De início, sua temática aponta para a interpretação de uma pessoa, homem do sertão, que vê a morte (o destino) sem chorar, cuja forma era costumeira naquele lugar onde habitava. E que, com a apresentação do eu-lírico, quando tudo estava fora do lugar, ele estava ali para consertar.


Prepare o seu coração

Pras coisas que eu vou contar

Eu venho lá do sertão

Eu venho lá do sertão

Eu venho lá do sertão

E posso não lhe agradar

Aprendi a dizer não

Ver a morte sem chorar

E a morte, o destino, tudo

E a morte, o destino, tudo

Estava fora do lugar

E eu vivo pra consertar


No próximo momento, depois da explícita introdução, o eu-lírico, que provavelmente vive em um lugar e espaço diferentes daquele onde a narrativa se passa, diz ter feito parte de um grupo cuja qualidade era a mesma de uma boiada. Por pura necessidade, assim, ele monta a si mesmo e parte para o mesmo lugar de onde o antigo vaqueiro estava, dando a entender que se transformava em “cuidador” dos bois.


Na boiada já fui boi, mas um dia me montei

Não por um motivo meu

Ou de quem comigo houvesse

Que qualquer querer tivesse

Porém por necessidade

Do dono de uma boiada

Cujo vaqueiro morreu


No terceiro caso, já posto como boiadeiro há muito tempo, se sentia como um rei. Mas a particularidade dessa estrofe é distinta das outras: o eu-lírico agora não fala sobre boiada, posição que homogeneizava um grupo e que ele já fez parte, mas sobre "gado" (animal) e "muita gente" (humano), dando a entender que sua consciência já estivesse distinta mesmo com a posição atual.


Boiadeiro muito tempo

Laço firme, braço forte

Muito gado e muita gente

Pela vida segurei

Seguia como num sonho

Que boiadeiro era um rei


Na estrofe seguinte, com um tempo da música mais rápido (como um galope de cavalo) e agressivo e com o canto marcado pela expressão de gritos de ordem, o personagem, depois do mundo girar bastante, se vê com as visões clareando, até que, por fim, um dia ele acorda do sono em que estava sonhando.


Mas o mundo foi rodando

Nas patas do meu cavalo

E nos sonhos que fui sonhando

As visões se clareando

As visões se clareando

Até que um dia acordei


Por conseguinte, em total contraposição ao seu estado como substituto no processo de líder da boiada (de gado e gente), se vê desistindo de tudo o que fez porque não podia mais seguir adiante vendo aquela situação de tratamento dos humanos como gados.


Então não pude seguir

Valente lugar-tenente

De dono de gado e gente

Porque gado a gente marca

Tange, ferra, engorda e mata

Mas com gente é diferente


No diálogo que o eu-lírico tem com quem escuta sua canção, diz ele que não pode cantar mentiras e, se caso não acreditasse no que tanto falava de modo dramático, ele iria contar sua história vivida em outro lugar.


Se você não concordar

Não posso me desculpar

Não canto pra enganar

Vou pegar minha viola

Vou deixar você de lado

Vou cantar noutro lugar


Na penúltima estrofe, o homem que já foi boi e boiadeiro, cita que sua transformação não foi porque quisesse nem por causa de outrem, mas por necessidade e algo maior que todos.


Na boiada já fui boi

Boiadeiro já fui rei

Não por mim nem por ninguém

Que junto comigo houvesse

Que quisesse o que pudesse

Por qualquer coisa de seu

Por qualquer coisa de seu

Querer mais longe que eu


Na última parte, talvez o ponto mais crucial da narração, o narrador-personagem, não mais boi nem boiadeiro, mas agora cavaleiro, dá seu veredito sobre os problemas supracitados da narração.


Mas o mundo foi rodando

Nas patas do meu cavalo

E já que um dia montei

Agora sou cavaleiro

Laço firme, braço forte

De um reino que não tem rei


Por razões óbvias, sabe-se que a significação semiótica de uma canção perpassa pela heterogeneidade de interpretação do ouvinte, do crítico, do músico etc. Variando o grau, por exemplo, de consciência de determinada pessoa acerca de um texto, de seu intertexto e contexto, se dá a razão sígnica subordinada àquele aparato formal (letra, canto, harmonia, melodia etc.). Assim, para fornecer os devidos apontamentos sobre a Disparada, cujo sucesso foi estrondoso nos anos 60 e ainda hoje é um marco histórico para a Música Popular Brasileira, precisa-se, em primeiro momento, falar sobre o conteúdo do sentimento cultural e artístico daquela época. Importante mencionar, para isso, o conceito de Raymond Williams de estrutura de sentimento.

Segundo Ridenti, comentando a forma com que o autor marxista britânico analisa a cultura, diz que “uma estrutura de sentimentos daria conta de significados e valores tais como são sentidos e vividos ativamente” (RIDENTI, 2006, p. 230). Isto é, na década de 1960, mais especificamente a partir da década que a precede (1950), artistas e intelectuais sabidamente de esquerda seguiram o rumo de uma visão romântica para com os problemas advindos do capitalismo, do valor de troca, da cega expansão do mercado mundial em países periféricos, como o Brasil, onde estavam inseridos. Nessa estrutura de agir e pensar o Brasil, com a busca por uma brasilidade do povo, atitude agressivamente nacionalista e antiimperialista, a esquerda se viu, muito antes até do golpe dos militares e empresários em 1964, com uma forte hegemonia na cultura e na arte, levando o romance, a poesia, o teatro, a música popular, a pintura, a arquitetura, o cinema etc., já formados com muitos toques do modernismo de 1922, a patamares superiores e jamais vistos em termos de agitação no país tupiniquim.

Os orixás e os mitos brasileiros, os caboclos, as pessoas escravizadas pelos colonos europeus, enfim, todos os grupos étnicos que participaram da formação brasileira no período pré-capitalista, junto com seus costumes, sentimentos e pensamentos, entram na linha de combate à aberração imperialista que assolava o mundo inteiro, em específico à América Latina. Geraldo Vandré, um dos compositores mais importantes desse período, admirador dos guerrilheiros que acabaram com a ditadura de Fulgêncio Batista em Cuba, não estaria longe desse sentimento-pensamento que emerge nas fileiras do Partido Comunista, dos centros de cultura populares e do movimento estudantil. Não à toa, como o leitor já deve ter percebido toda a relação entre a letra e o período histórico em que ela foi feita, a canção Disparada segue um modelo de composição de problemas da esquerda nacional-popular e romântica. Muito provavelmente, nela, o que está sendo narrado, apesar das muitas interpretações, é a evolução de consciência (e, consequentemente, do agir) de um sertanejo pobre, que, como boi de uma boiada (alegoria que compara a vida de um boi e uma pessoa como igual, dado o tratamento que ambos têm no sertão marcado pelo latifúndio e o atraso dos tempos coloniais), segue como boiadeiro (explorador tanto do boi em si como da boiada alegorizada [muita gente]), chegando a ser cavaleiro (dono de si mesmo) num reino que não tem rei (aqui se pode verificar uma imagem que pode significar o resultado de um ato revolucionário, possivelmente em comunhão com o conceito de extinção do poder, isto é, da destruição da força que o boiadeiro tem contra a boiada).

Para uma crítica a Adorno, conforme situada a explicação da obra de Vandré e Barros, interpretada por Jair, pode-se objetivar que, se a música popular de protesto ganha qualidades mercantis ao entrar no mundo do mercado da cultura e da arte, fazendo dela um fenômeno inútil, então, em consequência a isso, nada do que a sociedade produz contra, hoje, à barbárie capitalista, pode ser positiva. Até mesmo revoluções como a de Cuba, que, por infelicidade causal, acabou sendo capitaneada ao jogo da comercialização da luta e de ícone revolucionário, encontrando tal exemplo no perfil de Ernesto Guevara estampado nas camisetas, fruto da exploração laboral que cada vez mais amplia o trabalho abstrato para o horizonte humano. É mais do que certo que a proporção da crítica adorniana encontra seu respaldo na realidade, coisa já indicada neste artigo. Porém, o que se discute aqui são sua generalização e seu funcionalismo que nada dizem de exato a essas questões de cultura resistente, acabando, querendo ou não, para a defesa de fetiches ainda mais problemáticos. Tem-se, então, que a canção reflete seu tempo e seu espaço, obtendo êxito em refletir os problemas humanos ou não a partir de sua formalização.

O reflexo estético da realidade se caracteriza pela tendência a dissolver fetiches ou complexos fetichizantes que comparecem no curso da evolução humana, os quais se tornam operantes nas práxis cotidianas (LUKÁCS, 1970). O modo como a música vai realizar o processo de desfetichização será descrito de forma mais acurado posteriormente. Importa aqui agora uma explicação sobre a dupla mimese musical.


A ESTÉTICA MUSICAL DE LUKÁCS

A música se caracteriza por uma objetividade indeterminada em relação ao mundo externo. Isso significa que sua distância à vida, o fato de seu meio criativo não ter nada a ver com a realidade objetiva dada, pode aparecer imediatamente como mimese, isto é, como mímica não diretamente refletida pelo aparato objetivo (mundo). No entanto, ao mesmo tempo, existe proximidade com a vida na medida em que aparentemente expressa sem mediação a essência mais íntima e subjetiva do ser humano (LUKÁCS, 1970).

Diante disso, o meio criativo da música pode fazer vigorar os afetos e sentimentos humanos sem qualquer impedimento, exprimindo-lhes com uma pureza única. Esse processo é viabilizado pelo caráter da música como modo humano autônomo, que se separa de outras artes logo no momento em que essa mimese dos sentimentos provocados pela vida cotidiana, ou seja, essa reprodução de uma reprodução, é ativada para representar o objeto específico de sua própria natureza, cuja transformação é intimamente própria, destacada do vínculo direto que a une à ocasião real que a suscita.

Como já explicado, a música busca a vida interior humana, o mundo afetivo, sentimentos, pensamentos e emoções. Porém, tais coisas sintetizadas na música não são aquelas encontradas na vida cotidiana, e sim uma reprodução artística desses sentimentos que supera os encontrados na cotidianidade (XAVIER, 2018). Ainda com relação a esse fator:


No reflexo de caráter afetivo importa menos a própria realidade objetiva do que as reações do sujeito frente a ela: importa mais as impressões do indivíduo sobre o mundo do que o mundo em si; a vida interior mais do que a exterior. Portanto, já que voltado para o sujeito, o mundo afetivo atua mais como reflexo do próprio reflexo que o sujeito faz da realidade do que como reflexo da realidade em si. (XAVIER, 2018, p. 73)


Há de se notar que os sentimentos e emoções são mimeses espontâneas da realidade objetiva, enquanto o reflexo estético é mimese consciente (XAVIER, 2018). Desse jeito, a música se configura como uma mimese da mimese, uma imitação da imitação da vida cotidiana. Ainda acerca da problemática:


Uma vez que os sentimentos e emoções têm prioritariamente a dimensão subjetiva do indivíduo como centro organizador, a vida interior como objeto, o consequente “afrouxamento” de suas ligações com o mundo externo faz com que a realidade objetiva refletida no mundo afetivo não seja uma objetividade determinada. (XAVIER, 2018, p. 73)


Dessa maneira, está posto o caráter de objetividade indeterminada. A negação de uma reprodução direta e imediata da realidade objetiva por parte do reflexo artístico visa trazer à tona uma dimensão da realidade que mostra uma particularidade especificamente humana (XAVIER, 2018). Portanto, a mimese musical não trabalha com objetos imediatos ou diretamente com a realidade objetiva, fazendo surgir uma objetividade indeterminada. Para tanto:


Na música não é possível encontrar um paralelo direto entre determinado conjunto de notas ou outros elementos da forma musical (os princípios de organização das notas, as melodias e harmonias, o ritmo, os timbres, as dinâmicas etc.) e determinado objeto ou situação da realidade objetiva (XAVIER, 2018, p. 78).


De acordo com o que foi exposto até aqui, pode-se considerar o seguinte: é essa distância da música com relação à realidade o fator que mais irá aproximá-la do real. Como já foi mencionado anteriormente, a mimese musical parte dos sentimentos e emoções humanos perante a realidade concreta. Trata-se de, pela via sensível, de modo imediato como as demais obras de arte, expressar aquilo que melhor representa a essência humana. Aqui, a essência humana surge de modo imediato. É o comparecimento do aspecto fenomênico da essência (XAVIER, 2018).

De modo a aprofundar o caráter desfetichizador da obra de arte, especificamente o caso da música, torna-se fundamental explicar as categorias de espaço e tempo. Na música, existe o predomínio completo do aspecto temporal. Nisso se põe uma impossibilidade de encontrar, objetivamente, sua presença no espaço. Tem-se assim uma distinção, por exemplo, com relação às esculturas. Nestas há um predomínio do aspecto espacial (LUKÁCS, 1970). Porém, é importante notar que, na música, segundo a perspectiva lukácsiana, apesar de não se circunscrever propriamente em um “espaço”, há uma categoria que é unicamente subjetiva, ainda que preserve sua origem objetiva: o quase-espaço (HENRIQUE, 2015).


(...) a experiência musical, com o transcorrer do tempo, resguarda características de movimento, em que o momento exato da audição, não simultâneo, traz em seu interior as determinações do passado, assim como constrói o chão daquilo que é futuro, sendo também simultâneo e possibilitando uma série de sínteses que estabelecem na estrutura uma noção quase-espacial. Funda-se aí uma referencialidade recíproca entre momentos temporalmente separados, que evocam no receptor, uma dialética contraditória entre o sucessivo e o simultâneo. Devido a essa unidade contraditória ser baseada na reverberação da estrutura da música na subjetividade, não se configura uma espacialidade real, mas um quase-espaço subjetivo, inerente ao meio homogêneo temporal e relacionado à experiência sensível de recepção da música (HENRIQUE, 2015, p. 11-12).


No interior da experiência musical, então, a relação entre sucessivo e simultâneo pode ser descrita do seguinte modo: dada a passagem temporal que sinaliza a presença das características do movimento, no momento exato, imediato e não simultâneo da audição, entram em cena os aspectos que pertencem ao passado e, também, a construção do que está para vir-a-ser (ou futuro). Nesse caso, considerando a passagem temporal presente na experiência musical, tem-se a vigência do que é simultâneo, trazendo à tona através de sínteses uma noção quase-espacial em sua estrutura.

A partir do que foi exposto até aqui, importante notar que há uma “referencialidade recíproca entre momentos temporalmente separados”. Isso significa que, na experiência musical, no decorrer da sucessão temporal, opera a simultaneidade, constituindo uma evolução que se liga a um fator da vida, que é o da irreversibilidade do tempo (HENRIQUE, 2015). É devido a esse aspecto evolutivo que confronta o presente com o passado e leva à baila um momento futuro que a música pode cumprir com seu potencial desfetichizador, não se tratando assim de um puro e simples movimento.

Na sucessão temporal presente na recepção da música, ocorre uma tendência à realização de cada aspecto particular, de cada momento do tempo, de modo simultâneo. Presente, passado e futuro, representados na música, são justapostos como experiência vivida sem que sua essência originária seja destruída, tornando-se uma totalidade temporal que representa a superação do subjetivismo sobre o tempo (LUKÁCS, 1970). É essa “superação” que marca o processo de evolução já mencionado. Acerca dessa utilização da música na homogeneização temporal, importante notar que:


(...) dado o caráter autoconsciente da arte, as bases desse movimento irreversível se fazem nela representados, sensíveis, de modo que a simultaneidade criada pelo quase espaço e vivenciada como momento torna possível a realização plena da dialética que permite comparar o simultâneo e o não simultâneo latente, a passagem do tempo, a mobilidade que se impõe de modo absoluto e ilimitado. (HENRIQUE, 2015, p. 12-13)


Trata-se de um processo de iluminação das relações entre o antes, o agora e porvir, potencializando seus significados. O processo de desfetichização, portanto, ganha corpo a partir da categoria de quase-espaço. Ela contribui para a ação que ressalta que a possibilidade da audição imediata e a experiência temporal bastem como reflexo desfetichizador da realidade. Isso porque ocorre a restituição da inteireza do mundo em sua própria estrutura, tendo assim a possibilidade de uma reconfiguração estética dos sentimentos humanos do mundo que nos rodeia e dos efeitos deste sobre nosso interior (HENRIQUE, 2015). O que permite considerar, assim, a música como uma arte mimética (HENRIQUE, 2015). A música como arte mimética é possível na medida em que se tem o reconhecimento de um conteúdo alcançado pela percepção do que é e não é simultâneo por meio do quase-espaço. Isso não implica afirmar que se trata de uma reflexão direta dos objetos concretos existentes no mundo que rodeia o ser humano, mas sim na conformação da realidade já refletida em sua vida interior; construída pela estrutura musical, que é agora forma e conteúdo, reflexão mimética do humano e das relações dinâmicas da existência (HENRIQUE, 2015).

Após a exposição de como se dá o processo desfetichizador na música segundo Lukács, pode-se agora retomar a perspectiva adorniana e demonstrar seus equívocos com relação ao papel da música enquanto arte no interior do capitalismo. A começar pela rejeição, por parte de Adorno, da teoria do reflexo, significante a não se voltar às exigências empíricas do mundo exterior (TERTULIAN, 2010).


OS PROBLEMAS DA TEORIA ADORNIANA AO REJEITAR A TEORIA DO REFLEXO

A mimese, segundo Adorno, está ligada à realidade social mutilada (SAFATLE, 2007). Com isso, a crítica imanente no interior da obra deve buscar a não-identidade através da confrontação com os materiais fetichizados (SAFATLE, 2007). Tem-se, dessa maneira, uma concepção totalmente distinta de Lukács. A música na estética adorniana não possui a função de trazer aspectos essenciais humanos presentes no devir humano, mas sim de não reproduzir artisticamente o real. Trata-se de uma postura radicalmente negativa perante a possibilidade de reprodução e superação estética dos momentos fenomênicos a partir da evidenciação do que é mais essencial ao devir humano. Considerando as distintas abordagens dos já mencionados autores, pode-se agora analisar de que modo a música no interior do sistema capitalista se encontra.


(...) o que Lukács está destacando como o caráter alienador da música no capitalismo não é outra coisa senão essa tendência a não superação da singularidade dos sentimentos e emoções na experiência estética da música. É nesse sentido que o filósofo se refere a – irromper a particularidade (Partikularität). Para ele, a produção musical nas condições capitalistas possui uma tendência em considerar a subjetividade imediata e circunscrita ao âmbito da vida privada de um indivíduo o centro da organização da obra artística e do efeito dessa obra, promovendo, assim, uma falsa elevação desse mundo afetivo meramente singular à condição de particularidade estética (Besonderheit). Isso faz com que a experiência estética não seja uma aproximação do indivíduo à riqueza afetiva do gênero humano, mas sim um reencontro, no interior da obra, da vida afetiva meramente singular com ela mesma. (...) (XAVIER, 2018, p. 108).


Desse modo, no capitalismo, ao invés da fruição da riqueza do gênero humano, há uma experiência que ressalta os afetos de um indivíduo singular no interior de sua vida cotidiana, que é marcada pelo fetiche. Ainda com relação a essa tendência:


(...) a produção musical do período capitalista possui como uma de suas tendências e inclinação a uma elaboração artística relativamente despreocupada com os problemas concretos da vida interior humana (conteúdo), gerando assim uma obra que não eleva esse conteúdo às máximas possibilidades, mas sim o estagna, na medida em que se atenta somente às problemáticas da forma (XAVIER, 2018, p. 109).


Além de trazer aspectos referentes à vida cotidiana de um indivíduo singular, a música no capitalismo assume uma postura de hipervalorização da forma, desprezando as grandes questões que fazem parte da interioridade humana, tornando-se vazia de conteúdo. São necessárias mais algumas considerações para posteriormente se discorrer sobre como é possível haver dentro do capitalismo um processo de desfetichização por meio da música. Mais adiante, será retomada também uma questão levantada por Adorno, a saber, sobre a “regressão” da audição. Para respondê-la, será utilizada a investigação de Marx acerca da sensibilidade humana nos seus Manuscritos econômico-filosóficos.

No que tange ao problema do fetichismo musical, Lukács assinala para a tendência ao formalismo. Há de se notar que tal fato diz respeito à desvinculação da música da vida real humana, que é a base na qual emerge a música (XAVIER, 2018). Para melhor evidenciar isso:


Uma das principais maneiras que podemos encontrar o fetichismo na música é através do formalismo, isto é, por meio da perspectiva de que o conteúdo da música não tenha relação com qualquer outra coisa senão com os próprios elementos da forma musical; de que a música possa ser uma forma ― pura, ou de que seu conteúdo emane exclusivamente do trabalho formal com os componentes da música. Um dos motivos para que isso ocorra deriva da própria natureza da mimese musical, especialmente sensível às problemáticas da forma. Sua peculiaridade estética, a de erigir seu conteúdo a partir da negação do reflexo de qualquer elemento imediatamente encontrado na vida exterior humana, faz com que sua forma pareça completamente desligada da realidade objetiva (XAVIER, 2018, p. 111).


Desse modo, o formalismo se caracteriza pela perspectiva dos elementos formais da música, dos seus componentes como ritmo, harmonia etc. trazerem por si mesmos o conteúdo da própria obra musical. Sua peculiaridade estética residiria justamente naquilo que Adorno defende, a saber, a negação do reflexo de qualquer elemento que se possa encontrar na sociedade do valor de troca. Trata-se da já mencionada rejeição da teoria do reflexo. Essa tomada de posição é intitulada por Lukács como um fetichismo na música.

A posição de Adorno tem por base o entendimento de que na modernidade, com a Indústria Cultural, se enfrente uma dominação ideológica por meio do consumo de bens culturais massivamente distribuídos, pseudodemocraticamente diluídos na sociedade, inclusive entre as massas (FIANCO, 2017). Sendo assim, a obra de arte, para ser efetiva, deve buscar uma não-identidade com essa realidade social marcada pela submissão dos bens artísticos à Indústria, reduzindo estes a mero entretenimento.

A crítica adorniana à sociedade moderna se constitui como um movimento de total rejeição. Bem como a negação da ideia de progresso que é tão ligada ao iluminismo. Trata-se, nesse âmbito, de uma posição em comum com Nietzsche. Tanto Adorno quanto Nietzsche, segundo Fianco, não conseguem perceber alguma “positividade” presente na modernidade (FIANCO, 2017). De acordo com o que foi exposto, tem-se que a arte deve opor-se a tudo que indique figuração e representação. Mas, no entanto, sua autonomia reside na fuga à mera imitação (CAIRES CORREIA; PERIUS, 2017), não exatamente à adoção de um ponto de vista que seja exterior à sociedade. Adorno, quanto a isso, é bem claro:


A arte é obrigada a confrontar-se com o fetiche devido à realidade social. Ao mesmo tempo em que ela se opõe à sociedade, ela não é, no entanto, capaz de adotar um ponto de vista que seja exterior à sociedade (ADORNO, 1973, p. 201).


Não tão longe dessa investigação acerca do modo de produção capitalista está a análise da sensibilidade humana. Já foi exposta a preocupação de Adorno com relação ao que ele denomina de regressão da audição. Essa regressão, se liga ao processo de massificação da música em que a liberdade subjetiva do indivíduo é perdida por uma falsa democracia cultural. Tem-se também o fato de que a música submetida à lógica do mercado converte-se em mero entretenimento, tendo em si o comodismo, repetitividade, imediatismo e a fácil absorção.

Não é errada a preocupação envolvendo a sensibilidade humana, principalmente em se tratando do modo de produção capitalista na qual a reificação assume um patamar mais generalizado. Marx realizou alguns apontamentos de tal modo que percebeu o seguinte: um indivíduo destroçado pelo seu trabalho ou com excessivas preocupações não conseguirá fruir do mais belo espetáculo (MARX, 2010). Sua sensibilidade estética encontra-se atrofiada devido ao cotidiano social coisificador, como é o caso na sociedade burguesa. Do mesmo modo, poder-se-ia dizer que um comerciante de minerais não consegue perceber a beleza natural do mineral ou sua particular natureza, mas sim vê apenas nele um bem de valor mercantil (MARX, 2010). Considerando os apontamentos de Marx, pode-se afirmar que, para a fruição estética (como de uma música), é necessário certo desenvolvimento da sensibilidade humana. Após a exposição dos argumentos marxianos, é possível agora analisar o processo de regressão da audição adorniano.

Inicialmente, se destaca o processo de massificação da música, na qual Adorno vê com maus olhos. No entanto, tal desenrolar é fruto da universalização criada pelo mercado. As músicas no interior do sistema capitalista tornam-se também mercadoria e, por isso, para que chegue aos “ouvintes”, é necessária a mediação via mercado. Basta recordar como o advento do mercado mundial também, de certo modo, unificou a humanidade (LUKÁCS, 2018).

Conectada à inserção da música na lógica de mercado, está o processo de maior demanda para com determinadas músicas, abafando outras. Isso significa também que a música de “sucesso” ou o álbum de “sucesso” tornam-se requisitadas por certa “coletividade” que a admira. Nisso, está a posição que Adorno traça em que a coletividade sufoca a liberdade subjetiva devido a seus imperativos. Uma errônea posição, visto que o desenvolvimento da sensibilidade de determinado indivíduo pode ser dificultado pelas relações promovidas pela lógica capitalista. Basta recordar a anterior menção a Marx com relação à sensibilidade e como esta é prejudicada pela incessante jornada de trabalho ou pela lógica do lucro. Considerando a já explicada perspectiva adorniana em que a música submetida à lógica do mercado tem como características o imediatismo, comodismo, repetitividade e fácil absorção, tais coisas, já demonstradas na análise sobre Disparada e sobre a demonstração de como uma feitura cancioneira (ou música) pode quebrar o fetichismo da forma-mercadoria, não podem ser vistas como necessariamente corretas. Ainda segundo Adorno, a tendência da individualidade no interior do capitalismo dominado pela Indústria Cultural é a de uma fuga para com músicas mais complexas e demonstração de certa impaciência para absorção de algo que exija maior reflexão.

Mediante estas considerações, Adorno conecta o que seria uma “obra de arte” com a necessidade de possuir certo nível de complexidade e requisitar de quem a “acessa” maior nível de reflexão. Essa postura condiz com sua recusa à teoria do reflexo que acaba por lhe jogar ao já citado formalismo. Isso porque, nas músicas em que o conteúdo é inexistente, resta apenas tentar captar o que está em jogo pelo entendimento das estruturas formais, o que requisita do indivíduo maior capacidade conceitual e reflexiva.

Adorno nega o papel da categoria de quase-espaço que é o de criar a possibilidade da audição imediata mais à experiência temporal como forma de reflexo desfetichizador da realidade. Pelo contrário. Adorno recorre a uma posição contrária àquela que se poderia chamar realista na estética em decorrência que, para ele, a aquisição do conceito estético requer a posse de conceito não-estético (ZANGWILL, 2017).


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Para aqui agora contrapor à visão adorniana, é preciso ressaltar que o desenvolvimento histórico-social é desigual e contraditório. Isso é evidente na medida em se atenta para o seguinte: tendencialmente, a música que pode ser considerada uma obra de arte na sociedade marcada pelo modo de produção capitalista aparece como mercadoria. Porém, tal como já foi explicado, a função da música enquanto obra de arte é realizar o processo de desfetichização, promovendo assim um salto qualitativo na sensibilidade humana, fazendo o indivíduo ir em direção a uma dimensão afetiva autenticamente humana. Em segundo lugar, partindo do que acaba de ser dito, é possível perceber a relação entre aparência e essência que marca a música enquanto obra de arte. Se, por um lado, ela aparece como mercadoria; por outro, a sua essência corresponde ao que se tem de mais autenticamente humano. Ainda com relação a isso, importante destacar que tal obra de arte que inicialmente aparece como mercadoria consegue ir de encontro aos próprios fetichismos da vida cotidiana e da lógica reificadora da sociedade capitalista que a transforma em mercadoria por meio de sua essencial função enquanto obra de arte. Além disso, é válida também a contradição envolvendo o desenvolvimento da sensibilidade humana para fruição estética na sociedade capitalista, de modo que, com a difusão em larga escala das obras de arte pela universalidade do mercado, e nisso se inclui a música, tem-se uma maior possibilidade de acesso a tais obras à totalidade do gênero humano.

No entanto, como já foi dito, os imperativos do capital que começam a fazer parte da totalidade da reprodução social na sociedade capitalista, coisificando tudo que for possível por meio da transformação em mercadoria, acaba por dificultar o desenvolvimento da sensibilidade humana (sensibilidade alienada). Basta citar novamente o cansaço promovido pelas longas jornadas de trabalho, as preocupações oriundas de uma péssima condição de existência e a sobreposição da necessidade de reprodução do capital acima dos interesses de toda a humanidade.

Dessa maneira, se, de um lado, o surgimento e a unificação promovida pelo mercado mundial culminaram numa maior possibilidade de acesso às obras de arte mesmo que aparentemente como mercadorias e, por conseguinte, de um desenvolvimento sensível dos indivíduos. Por outro lado, há os imperativos do capital que dificultam o desenvolvimento da sensibilidade humana. Pode-se dizer, diante disso, que, por mais que a tendência seja a de obstrução da sensibilidade, existe ainda assim a possibilidade de um desenvolvimento sensível.

Outra contradição presente é a que envolve a superação do capitalismo por meio de uma revolução de caráter comunista, com o ser humano não ficando mais alienado de si mesmo e sua generidade for colocada como ampla. Contraditoriamente a isso, está o cotidiano alienado da sociedade burguesa que impede o gênero humano de se tornar para si ou consciente de si (LUKÁCS, 2018). Alienação essa que pode ser definida como um obstáculo ao devir humano (LUKÁCS, 2018). Sendo assim, a arte seria um meio em que os indivíduos poderiam fruir de tal universalidade (XAVIER, 2018). Esse processo de encontro com a generidade humana através da arte, Lukács denomina catarse. A catarse pode ser caracterizada como uma experiência de verdadeira realidade da vida humana. Quando confrontada com a experiência da vida cotidiana, ocorre a purificação das paixões ou uma reconfiguração estética dos sentimentos humanos


REFERÊNCIAS

ABREU, Thiago Xavier de. Música e educação escolar: contribuições da estética marxista e da pedagogia histórico-crítica para a educação musical. Doutorado, educação escolar, Universidade Estadual Paulista, 2018.


ADORNO, Theodor. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.


ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.


CAIRES CORREIA, Fábio & PERIUS, Oneide. “Considerações acerca de uma estética negativa em Theodor Adorno”. In: Perspectiva filosófica, vol. 44, n. 1, 2017, pág 73-86.


DUARTE, Rogério. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2007.


FIANCO, Francisco. “Aproximações entre Nietzsche e Adorno acerca da massificação da cultura e da vida administrada”. In: Trans/Form/Ação, v. 40, n. 3, 2017, pág. 29-44.


HENRIQUE, Paulo. “Reflexões sobre música, canção e mímesis em “La missión desfetichizadora Del arte”. In: Niep-Marx. Rio de Janeiro, 2015, pág. 1-19.


LUKÁCS, Georg. Para a ontologia do ser social. Maceió: Coletivo Veredas, 2018.

_____________. Estetica. Torino: Einaudi, 1970.


MARX, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo, 2017.


MARX, KARL. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.


RIDENTI, Marcelo. “Artistas e política no Brasil pós-1960: itinerários da brasilidade”. In: RIDENTI, Marcelo; BASTOS, Elide Rugai; ROLLAND, Denis (Org.). Intelectuais e Estado. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 229-261.


SAFATLE, Vladimir. “Fetichismo e mimesis na filosofia da música adorniana”. In: Discurso, n. 37, 2007, pág. 365-406.


SAFATLE, Vladimir. “Força e abstração: processo revolucionário e matriz estética da autonomia”. In: Arte e filosofia, v. 15, n. 29, 2020, pág. 165-193.


TERTULIAN, Nicolas. “Lukács/Adorno: a reconciliação impossível”. In: Verinotio, n. 11, 2010, pág. 104-115.


ZANGWILL, Nick. “Música, metáfora e conceitos estéticos”. In: Revista música, v. 17, n. 1, 2017, pág. 63-88.



bottom of page