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Mais um tango em Brasília


Gabriela Biló/Folha Press

Dia primeiro de Janeiro de 2023, “após ser empossado no Congresso Nacional, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Palácio do Planalto, em Brasília, e recebeu a faixa presidencial de cidadãos que representam a diversidade do povo brasileiro”, como anunciavam os jornais. A frase mencionada já não pode mais ser lida sem que apareça como memória a imagem que foi rapidamente definida como histórica e um marco da diversidade e da democracia no início de um novo governo. Ao lado do recente eleito presidente Lula haviam pessoas que representavam o povo brasileiro e, para alguns, somente o “conteúdo” simbólico desta ação seria capaz de romper o fluxo da história; o efeito catártico da diversidade apareceu ali como “agente eficiente”, responsável por inaugurar uma ruptura temporal, em que não existiria mais passado e o caráter simbólico parecia soar nos ouvidos dos democratas com um único imperativo: agora só importa o futuro.


Rapidamente, o governo que se apresentou como “o governo do povo” não conseguiu sequer “apresentar sua agenda”. Por sua natureza, se mantém por meio de “pactos” e “acordos” com as mesmas elites políticas anteriores. Com isso, as decisões políticas e econômicas trilhadas não sustentam o frágil simbolismo, lembrando a todo momento que todo governo que se autointitula do “povo” é sempre antes de tudo um governo do “povo” para o capital.


Nunca parece ser a hora oportuna para os governos democratas burgueses serem submetidos a uma crítica radical. Em um primeiro momento – apesar de a história demonstrar o caráter de coalizão do novo mandato – a crítica não poderia ser feita durante o período eleitoral. Caso exista alguma ameaça de tom autoritário no pleito torna-se impossível discutir como são as próprias formas supostamente democráticas do capitalismo que permitem a viabilização de candidaturas baseadas em consciências rebaixadas e reacionárias como as que nos acostumamos a ver nos últimos tempos no Brasil. Nesse cenário, a cartilha é sempre impor aos comunistas uma resignação, como se o processo eleitoral fosse autossustentável, algo como democrático em si mesmo[1].


Durante o governo a crítica radical é geralmente acusada de não ser capaz de apreender a realidade que começaria a se impor a partir de um momento e que chega até mesmo a ganhar um nome próprio, muito específico: a chamada governabilidade. Usa-se esse nome para tratar de uma realidade que seria mui específica, um “jogo” político, mas o que se esconde por trás dessa categorização é, em verdade, uma tentativa de tratar como isoladas as relações políticas, como se estas estivessem completamente alheias às demais relações fáticas do capitalismo –de certo modo presas as sua própria especificidade.


À revelia de qualquer mobilização social por questões de emprego, saneamento, educação e condições de vida, o que resta é confiar nas mesmas “práticas” em uma espécie de gratidão eterna por ter sido concedido a nós um regime político supostamente resoluto e onipotente, como é o caso da democracia burguesa. Quem seríamos nós, homens e mulheres comuns a questionar?


A questão é que tal fuga da crítica, em verdade, se apresenta como algo mais profundo e complexo: a constituição prática da política frente à democracia burguesa no âmbito da luta de classes. E, ao contrário do que quase sempre é dito, a debilidade da esquerda hoje, imersa em seu imobilismo social, está muito mais na incapacidade de enfrentar esse caráter anti-popular da não-crítica do que na sua capacidade de autoflagelo. Em outros termos, o que poderia ser o conteúdo fundamental de um horizonte construído pelo tensionamento entre Estado e sociedade civil acaba por se transformar na “reconciliação” entre democracia representativa e Estado, em uma constante manutenção da ordem que gerencia tais problemas que enfrentamos.


O desconforto que seria a “desordem” organizada, exposta as matrizes institucionais, a violência policial, a retirada de direitos sociais e de direitos políticos, num processo contínuo entre avanços e recuos, se tornou hoje o epicentro de nosso impasse: a hegemonia institucional de “manter a ordem” tal como se apresenta. Não é à toa que os “abusos” do STF são “criticados” de modo atabalhoado pela direita. À esquerda, por outro lado, agora é “defensora” da ordem que a oprime (ou tenta gerir). Fato é que o receio de fazer valer o papel crítico de nosso contexto é sempre bloqueado pelo “pragmatismo” do silêncio e do cinismo para que a governabilidade seja viável para Lula e aliados. O resultado parlamentar mostrou como a direita saiu fortalecida “apesar” da derrota presidencial.


A ilusão daquilo que não possa ser combatido pela modificação “conjuntural” descamba para que sempre estejamos tangenciando nossos verdadeiros problemas objetivos: “não há alternativa”. Assistimos a direita se organizar com todo seu aparato violento, hipócrita e oportunista para cooptar as energias sociais de insatisfação, que, de certo modo, denunciavam o esgotamento das atuais condições de vida, e assim vimos o tecido social brasileiro se desgastar. Com isso, o governo Lula conseguiu “nascer” morrendo dentro de si: a esperança daquilo que se passou seria por si só a régua imediata daquilo que não se consegue e nem deve retornar. Com esse rebaixamento, não houve nenhum “recuo” do que já tínhamos antes, embora certos contextos trazidos à tona mostraram a perversidade que foram esses últimos anos, e nisso não repetiria as atrocidades (mesmo no aspecto “moral”) legitimadas.


O que hoje está mais explícito do que nunca é que o risco que se corre com as apostas no novo Governo Lula, é que esse, ao nascer velho e exaurido de qualquer novidade, será sempre um governo defensivo político e socialmente. A completa ausência da exposição das vísceras do que é o Brasil em seu conjunto civil, suas máculas que nos compelem, acaba por restar aberto um campo de disputas (ideológicas, políticas, culturais, etc.) pelo qual já saímos em defensiva: a crítica da realidade sempre é impedida pelo pragmatismo da ação. O petismo, o governo Lula, seus apoiadores e aliados, sabem muito bem e operam exatamente nesse redemoinho confuso de direção, enquanto a sua “base” apenas precisa repetir mantras e capturar retratos parciais de uma impossibilidade “estável” como promessa de vida.


Para tornar claro nosso argumento, assistimos, nos últimos dias, a uma série de acontecimentos do governo Lula que denunciam de maneira explícita sua capacidade de apenas mascarar de uma nova maneira o caráter insuficiente da democracia burguesa: o “novo teto de gastos” e a austeridade fiscal renovada; o esvaziamento da pasta do Meio Ambiente por pressão da bancada ruralista do congresso; o enfraquecimento dos serviços públicos de toda ordem, dentre outras questões. Não importa a circunstância: se por pressão do Congresso Nacional, ou por pressão de setores empresariais, a crítica às tomadas de decisões de um governo progressista na aparência não pode se furtar de ser feita sob pena de um desgaste político, como se vivêssemos em uma eterna coalizão difusa na tentativa de amortecer anseios retrógrados imediatos, seja nas pautas econômico/fiscais, ambientais ou nas questões atinentes aos direitos sociais.


Com isso seguimos a ver nos últimos meses a mesma consciência política parlamentar criminosa, corrupta e com as velhas pautas da bancada “BBB”: boi, bíblia e bala. Os representantes do latifúndio, do fanatismo e do evangelismo, da bancada miliciana e policial já mostraram como a forma representativa além de não poder ser ser considerada como uma saída, sequer consegue dar conta de atenuar nossos problemas imediatos –o que justamente é o que muitos rogam que o regime democrático faria. O que fica, assim, é o sentimento de que todo esforço democrático serve para adiar parcialmente o colapso social em curso. Não há outra saída senão a organização popular de base, muito além do ímpeto conservador de não dizer a que viemos: puxar o freio de emergência da hecatombe burguesa. Semanalmente seguem explodindo notícias de corrupção dentro das Forças Armadas, violações humanitárias, e as já conhecidas pilantragens no sistema jurídico. Tudo isso não pode ser “melhorado”, pois é assim a forma pela qual nossas instituições funcionam em suas condições ordinárias. É por isso que elas funcionam. E segue o tango em Brasília.

[1] A regulamentação, por parte da repartição da Justiça Brasileira conhecida como Justiça Eleitoral (em voga nos jornais nos últimos dias por conta da cassação do mandato do então deputado federal Deltan Dallagnol do Podemos do Paraná), é o remédio oferecido para as mazelas contidas no trâmite burocrático em que se transformam as eleições. É insuficiente a tentativa de tratar essa subdivisão do Estado como autônoma às relações materiais desenvolvidas na sociedade civil burguesa, assim como o é qualquer tentativa de considerar o Poder Judiciário como julgador imparcial.

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