Por Nicolas Tertulian
Texto publicado pela revista Le Nouvel Observateur (out./nov. 2003) em edição dedicada a Marx (Karl Marx, Le penseur du troisième millénaire? comment échapper à/a marchandísation du monde) com o título "Devenons ce que nous sommes". Por ocasião do pedido de autorização para a sua publicação na Outubro, Nicolas Tertulian nos informou que o título originalmente por ele sugerido à revista francesa foi "Une philosophie dela subjectivité" que resolvemos manter com a inclusão da alusão a Marx consentida pelo autor. Tradução Juarez Duayer. [publicado no Brasil pela revista Outubro, n. 10, 2004]
Se a essência do homem se identifica com a totalidade das relações sociais, então a realização e a libertação do gênero humano está indissociavelmente ligada à transformação do mundo.
Exagerando um pouco as coisas, poderíamos dizer que Marx jamais expôs sistematicamente seu pensamento filosófico. Seu projeto de elaborar uma lógica dialética materialista em réplica a Hegel acabou não se concretizando. Existe, é verdade, textos filosóficos - célebres - de Marx, os Manuscritos Filosóficos de 1844 ou A ideologia alemã (redigido em colaboração com Engels), sem esquecer também o prefácio de 1859 à Contribuição à crítica da economia política, mas é difícil afirmar que os conceitos filosóficos que os sustentam (o de trabalho, por exemplo) estejam elaborados de maneira acabada e sistemática. Não encontramos, portanto, em Marx nada de comparável à Enciclopédia das ciências filosóficas ou à Ciência da lógica de Hegel. Benedettto Croce, entre outros, por exemplo, sempre contestou em Marx a existência de uma filosofia no sentido clássico do termo, cuja estatura se reduziria, para ele, a de um agitador social e de um profeta revolucionário.
Posteriormente, no entanto, alguns de seus representantes mais conhecidos (entre os quais Georg Lukács e Ernest Bloch), defenderam a tese de que existe em Marx um pensamento filosófico com vocação universal e capaz de abarcar os domínios do saber filosófico. O conceito marxiano de práxis, tal corno ele aparece, por exemplo, nas Teses sobre Feuerbach, seria capaz, se desenvolvido em suas numerosas potencialidades, de estabelecer tanto uma antropologia filosófica quanto urna estética ou uma ética, sem falar do pensamento político ou do direito.
Não faltaram também tentativas de reconstruir as perspectivas filosóficas de Marx em um conjunto sistemático, desde as décadas que se seguiram a sua morte e pouco tempo depois do desaparecimento de Engels. Na Itália, Antonio Labriola, um espírito brilhante que havia tido contatos com Engels (de quem admirava o Anti-Dühring), publicou antes do final do século Ensaios sobre a concepção materialista da história. Govanni Gentile, mais jovem que Labriola e formado na escola de Vico e do idealismo alemão, publicou na mesma época uma obra notável, A filosofia de Marx em que se empenhava em mostrar, falando justamente do conceito de práxis, a enorme coerência especulativa do pensamento do autor das "Teses de Feuerbach".
No período seguinte, as iniciativas teóricas de Kautsky e de Plekhanov (este último autor de uma grande súmula intitulada A concepção materialista da história) alimentavam-se da mesma ambição, mas aparecem marcadas por sérios limites. O determinismo às vezes estreito de Plekhanov não permite fazer justiça à densidade e à complexidade do pensamento de Marx sobre a história (Sartre ironizou, não sem razão, em Questões de método, o simplismo de certas teses de Plekhanov). E Kautsky, em sua tendência a assimilar o ser social ao ser biológico, corre o risco de ocultar a especificidade das atividades teleológicas na vida social.
A recepção de Marx
O pensamento filosófico de Marx conheceu também numerosas distorções que à época da Segunda Internacional, se caracterizavam especialmente pela incapacidade em reconhecer a herança hegeliana, cuja importância para o autor de O Capital foi enormemente subestimada até os anos vinte. Somente com a publicação em 1923 de Marxismo e filosofia, de Karl Korsch, e de Historia e consciência de classe, de Lukács, é que a profundidade das conexões entre o pensamento de Marx e de Hegel aparece em primeiro plano. Na Itália, Antonio Gramsci reagiu com a mesma intensidade à deformação mecanicista e positivista do pensamento de Marx. É neste sentido que ele desaprovou o manual Teoria do materialismo histórico de Bukharin.
Grandes figuras do século XX, filósofos munidos de instrumentos necessários a uma conceitualização rigorosa, chegaram à conclusão que, longe de se reduzir a urna simples teoria econômica, ou mesmo a uma crítica da economia política, o pensamento de Marx está fundado sobre urna ontologia (na medida em que ele havia definido as categorias como "formas do ser-lá, de determinações da existência") e sobre uma antropologia (com o conceito de trabalho, a grande herança de Hegel, como sua pedra angular) contendo in nuce uma teoria de conjunto da subjetividade com os conceitos de objetivação, reificação, alienação e emancipação como limiares de uma fenomenologia do sujeito. Com isso se pode mostrar também que os conceitos de consciência de classe e de consciência do gênero humano (a idéia de gênero - Gattung - ocupa um lugar importante nos Manuscritos de 1844) permitem estabelecer uma síntese entre as exigências históricas e as exigências universais da condição humana. A profunda historicidade do pensamento de Marx que definia a essência do homem como a totalidade das relações sociais (portanto como uma substancia dinâmica), marcou de forma decisiva os pensadores da escola de Frankfurt, de Max Horkheimer e Teodor W. Adorno à Herbert Marcuse e Leo Lowenthal. A teoria marxiana da subjetividade, em particular a tese segundo a qual os indivíduos fazem a História, mas não em condições escolhidas por eles, foi urna revelação para Sartre e o levou a se afastar de Husserl e de Heidegger, sem entretanto renegar suas contribuições, e se aproximar de Marx na grande síntese da Crítica da razão dialética.
A força de atração do pensamento de Marx não raro se exerceu também sobre pensadores que inicialmente pertenciam a horizontes filosóficos distantes do marxismo. Nestes casos, a integração de seu pensamento, enquanto conjunto homogêneo de conceitos, em particular a sua teoria da subjetividade, se deu através do confronto com correntes de pensamento heterogêneas que deram lugar influências recíprocas e alianças imprevistas. Sartre é, dentre muitos, um destes exemplos. Antonio Labriola foi herbatien antes de ser marxista. Gramsci assimilou o materialismo histórico dialogando sem cessar com o pensamento de Croce que dominava a Itália na época e o marcou bastante. Max Horkheimer, que nos anos vinte se transformou num adepto convicto do pensamento de Marx e em nome do qual fundou a teoria crítica da escola de Frankfurt, era ao mesmo tempo um fervoroso admirador da metafísica de Schopenhauer; e tentou ainda conciliar a doutrina marxiana da emancipação social com a ética da "culpabilidade" e da "salvação" professada pelo filósofo da Vontade.
Herbert Marcuse foi um dos primeiros a compreender a importância dos Manuscritos de 1844 para a elaboração de uma teoria marxista da subjetividade (cf. seu estudo de 1933 sobre o conceito de trabalho), mas apreendia o pensamento de Marx tendo como pano de fundo influências de Dilthey e de Heidegger. Ernest Bloch construiu ao final de sua vida uma ontologia (cf. seu livro Experimentuin mundi) destinada a mostrar que o pensamento de
Marx, e em particular sua filosofia cia subjetividade (Bloch fez do não ser - das Noch-Nicht-Sein - sua categoria central), está enraizada em uma teoria de conjunto das categorias do ser (a atenção principal é para as categorias de tendência, latência e de possibilidade objetiva). Não se pode, portanto, deixar de assinalar que o materialismo dialético de Bloch (autor de um grande livro, Problema do materialismo) se ressente de influencias do último Schelling e de Eduard von Hartmann, pensadores que seduziram o autor de Experimentum inundi, e não somente em sua juventude.
O engendramento de si
A influência de Marx na filosofia do século XX abrange, como se vê, um amplo espectro, e não faltam obras teóricas que a reivindicam teoricamente para construir uma filosofia autônoma (desde a Crítica da razão dialética de Sartre à Dialética negativa de Adorno e Experimentum inundi de Bloch), a tal ponto que o núcleo filosófico originário de seu pensamento muitas vezes pode aparecer um pouco obscurecido pelos inúmeros desdobramentos e interpretações que sofreu. Lukács se propôs como tarefa desenvolver os lineamentos gerais de uma filosofia da subjetividade a partir das premissas marxianas em sua última grande obra de síntese, Contribuições à ontologia do ser social (escrita durante os anos 1964-1970), que se seguia a sua Estética e preparava a Ética (da qual existem apenas as notas preparatórias). Na França, Henri Lefebvre já havia construído sua obra com uma ambição semelhante, desenvolvendo de modo original as análises marxianas da práxis e da alienação e aplicando-as a territórios inexplorados (em particular à vida cotidiana).
Marx retomou a tese de Hegel sobre o trabalho como momento decisivo na constituição da subjetividade, mostrando como a totalidade das atividades humanas se desenvolvem a partir deste núcleo arborescente (o que nos permite definir o trabalho como o "fenômeno originário" ou a célula geradora da vida social). No ato do trabalho, a intencionalidade da consciência (a "posição teleológica") se apóia nas cadeias causais objetivas, utilizando-as para modificar a natureza e adaptá-la às necessidades humanas. Trata-se, portanto, de uma relação de tensão dialética entre o sujeito e o objeto que induz a transformações tanto no objeto quanto no sujeito. Lukács também propôs, no ato do trabalho, a distinção entre o momento de objetivação (a Vergegenstãndichung da qual Marx falava em seus Manuscritos de 1844, associando Vergegenstündichung a Entgegenstindlichung, objetivação e desobjetivação) e o momento de exteriorização (Entiusserung); o primeiro traduziria as transformações estabelecidas no mundo dos objetos para torna-los conforme ao objetivo pretendido; o segundo, as reverberações destas atividades na constituição da subjetividade, as qualidades especificamente subjetivas que se exprimem no objeto criado.
A concrescência dos dois momentos, objetivação e exteriorização, não exclui, portanto, a possibilidade de conflitos entre os dois momentos, pois o homem pode ser obrigado a atos de objetivação que não correspondem a um verdadeiro desenvolvimento da subjetividade. Aí estaria, de acordo com Lukács, a raiz do fenômeno da alienação (conceito capital dos escritos de juventude, mas também da maturidade de Marx), onde a multiplicação das atitudes e capacidades humanas induzidas pelo desenvolvimento das forças produtivas não é acompanhada de uma autoafirmação da personalidade: a multiplicação das qualidades do sujeito funciona, neste caso, para a reprodução de um sistema cuja lógica escapa a de uma verdadeira exteriorização do sujeito cujas energias estão confiscadas por objetivações estranhas as suas necessidades profundas.
A vida social aparece assim, segundo Marx, como um tecido de objetivações, cuja finalidade não pode ser senão a realização da personalidade dos indivíduos, responsáveis por ela. Uma verdadeira dialética da heteronomia e da autonomia da personalidade emerge, portanto, cio autor de O Capital. Os que duvidam que se possa falar de uma filosofia da subjetividade e de um conceito elaborado de humanitas do homo humanos em Marx devem se recordar que também em suas Teorias sobre a mais-valia, quando ele toma a defesa de Ricardo contra o anticapitalista romântico Sismondi em uma passagem célebre do fim do terceiro capítulo de O Capital e fala da transição do reino da necessidade ao reino da liberdade, Marx evoca explicitamente "o desenvolvimento riqueza da natureza humana como um fim em si" e "o desenvolvimento das forças humanas, que é fim em si-mesmo" ("die menschliche Kraftenwicklung, die sich ais Seistzweck gilt.."). Tomando a defesa de Ricardo, Marx mostra que o "desenvolvimento das faculdades da espécie homem" aconteceu na história às custas da maioria dos indivíduos e que "o desenvolvimento superior da individualidade não se com pra senão ao preço de um processo histórico ao longo do qual os indivíduos são sacrificados". Na página final de O Capital, ele faz um rápido esboço da complexidade do processo de emancipação da espécie humana indicando as etapas da passagem do reino da necessidade ao da liberdade.
No último período de sua atividade, Lukács construiu sua interpretação da obra de Marx escolhendo como fio condutor justamente o conceito de gênero humano (enquanto que sua obra de juventude História e consciência de classe se apoiava exclusivamente sobre a consciência de classe): a objetivação, a exteriorização, a alienação, a reificação (que não é senão um caso particular de alienação) e a emancipação seriam formas da subjetividade que marcam a evolução do sujeito.
Uma grande distância separa a interioridade mutilada e mortificada da existência alienada, a que se submete às exigências impostas do exterior, da interioridade que se desenvolve livremente até à realização de suas qualidades mais autênticas.
No centro das considerações marxianas se encontra a apropriação pelo homem de sua própria essência. Jacques D'Hondt assinalou (por ocasião de uma conferência na EHESS) a forte presença nos textos de Marx do Sebst e da Seibstheit (individuação) evocando sucessivamente a presença significativa dos conceitos de afirmação de si (Sebsreltauptung ou Selbsbetãtigung), de produção de si (selbsterzeugung), de diferenciação de si (Selbstunterscheindung), até os conceitos que exprimem o distanciamento do eu de suas exigências mais autênticas: a alienação de si (Selbstenfremdung), o desconhecimento de si (Selbstverkennung), ou o eu vazio de sua substancia, (Selbstaushõlung, expressão polêmica utilizada por Marx a propósito da alienação religiosa).
Ao reino da liberdade
A distinção formulada por Marx ao final de O Capital entre o "reino da necessidade" e o "reino da liberdade" levou Lukács a propor na parte final de sua Ontologia do ser social uma distinção entre o gênero humano em si (Gattungsmiissigkeit) e o gênero humano para si (Gattungniissigkeit für-sich). Marx havia precisado na passagem acima mencionada que o reino da liberdade não começa senão quando o trabalho imposto pela necessidade e pela finalidade exterior cessa e quando ele se situa por sua própria natureza "para além da esfera da produção material propriamente dita". E, precisão importante: uma organização social onde os indivíduos associados controlam de forma racional a economia e a mantêm sob seu controle comum (ao contrário de serem dominados por sua "potência cega"), desenvolvendo suas atividades "em condições as mais dignas e mais condizentes a sua natureza humana", permanece sendo, entretanto, "um reino da necessidade". O verdadeiro reino da liberdade não começa senão para além desta esfera da pura produção material, lá onde "o desenvolvimento das forças humanas, que é fim em si mesmo", se transforma na força motriz da História (mas Marx insistia em sublinhar, como antípoda das construções utópicas sobre a futura sociedade, que o reino da liberdade não pode florescer senão sobre o fundamento do reino da necessidade, assinalando que "a redução da jornada de trabalho" se constitui em sua "condição fundamental"). (Pode-se assinalar que nada autoriza a confundir a instauração marxiana do "reino da liberdade" com o "fim da história"; é verdade que Alexandre Kojõve tentou em seu livro sobre Hegel identificar os dois, mas nesse caso trata-se de uma fantasia extravagante, pois nada no famoso texto de Marx cauciona a idéia de uma abolição dos conflitos e de uma cessação da dialética em uma sociedade emancipada da hegemonia de classe).
Para Lukács, o gênero humano em si exprime as fases da sociedade onde os indivíduos desenvolvem suas capacidades a fim de responderem aos imperativos da reprodução social sob o signo da coerção e das normas impostas pela organização social reinante (agindo quase sempre "sob pena de naufrágio", "bei der Strafe des Untergangs", segundo a expressão de Marx). Os indivíduos ficariam restritos neste nível a sua pura particularidade enquanto agentes da reprodução social, sem chegar a transgredi-la em direção à verdadeira autonomia de sua personalidade e à autoafirmação de suas qualidades mais humanas. O gênero humano para si exprimiria justamente esta transgressão em direção ao verdadeiro crescimento da personalidade, onde o "desenvolvimento das forças humanas" se transforma, segundo a expressão de Marx, em um "fim em si mesmo" e onde a ação individual adquire uma dimensão universal se inscrevendo no processo de emancipação humana. Lukács utiliza o exemplo das grandes obras de arte ou de grandes ações éticas (ele evoca os nomes de Sócrates, Jesus ou Hamlet, mas ele também cita os conflitos entre Antígona e Ismênia ou entre Electra e Crisótemis nas tragédias de Sófocles) para ilustrar a presença da consciência do gênero humano para si nas objetivações forjadas pela humanidade ao longo de sua história. Na tragédia de Sófocles, Ismênia, por sua submissão às injunções de Creonte, exprimiria os imperativos do gênero humano em si, enquanto que Antígona, pela inflexibilidade de suas exigências morais, exprimiria a aspiração pelo gênero humano para si. Uma nítida clivagem separa a subjetividade que funciona para assegurar o status quo social da subjetividade que abala a ordem estabelecida afirmando sua autonomia afetiva e intelectual.
A arte se revela efetivamente um terreno privilegiado para validar a concepção rnarxiana da subjetividade. A tese do jovem Marx segundo a qual é necessário imaginar como possível uma sociedade na qual os sentidos serão "teóricos", se emancipando da tutela do "ter" para impor a do "ser", foi utilizada por estudiosos da estética que se inspiraram em seu pensamento para afirmar "a missão desfetichizante da arte", sua vocação para desconstruir as alienações que imobilizam a condição humana e liberar suas energias emancipatórias. Adorno insistiu sobre a importância de uma passagem das Teorias da mais-valia, onde Marx polemiza com a concepção unilateral da produtividade professada por aqueles que fazem do reino do valor de troca e da mercadoria um absoluto, e onde ele relembra a existência do "trabalhador improdutivo", citando o exemplo de Milton e de seu Paraíso perdido. O elogio marxiano do "trabalhador improdutivo" (em especial dos escritores e artistas) é para Adorno o símbolo de uma concepção superior da produtividade, que reserva um lugar decisivo às atividades não utilitárias e abre caminho a um ethos bem diferente da "metafísica do trabalho" e da "glorificação do trabalho".
O gênero humano
O pensamento de Marx deixou um traço facilmente identificável na filosofia do século XX. Ernest Bloch se apoiou no materialismo anti-mecanicista de Marx e em seu conceito de práxis para desenvolver sua ontologia do não ser (ontologia des Noch-NichtSein). Lukács elaborou em sua Estética e na Ontologia do ser social um método ontológico-genético de análise dos fenômenos da consciência que se apóia no conceito marxiano de trabalho como paradigma da relação sujeito-objeto. Sartre construiu sua teoria dos conjuntos práticos e sua fenomenologia da vida social (a partir do "homem da necessidade" ou do "homem da escassez", através do prático-inerte, a existência serial, o coletivo, até à formação do "grupo em fusão") escolhendo os teorernas de Marx como chaves para a inteligibilidade da História. Adorno partiu da inversão materialista da dialética hegeliana operada por Marx para forjar a sua "dialética negativa", que opõe à preeminência da identidade na dialética positiva e à identidade idealista entre sujeito e objeto uma lógica do "sistema" (para Adorno, numa tese evidentemente discutível, Marx é o pensador do "anti-sistema").
No terreno da filosofia da subjetividade, o método ontológico-genético desenvolvido por Lukács permite fazer justiça à diversidade e heterogeneidade das atividades do sujeito, mostrando como se pode reconstruir a partir de Marx a especificidade dos diferentes complexos sociais (da economia ao direito e à política, até à atividade estética ou ética), indicando, por exemplo, as transições dialéticas entre a atividade utilitária (das Nützliche, da qual falava Hegel em sua Fenomenologia do espírito), a atividade hedonista (um capítulo da Estética de Lukács é consagrado ao agraciável) e a atividade estática propriamente dita. É o conceito marxiano de gênero humano, onde se realiza a fusão entre a particularidade dos indivíduos e a universalidade do gênero, que permitiu ao filósofo húngaro estabelecer, por exemplo, a diferença de nível entre o beletrismo (Belletristik) e a verdadeira literatura: as primeiras não ultrapassam a expressão da particularidade (aí compreendidas as de um grupo social determinado), ao passo que a segunda faz ressoar uma voz humana de alcance universal (é a diferença que distinguiria, por exemplo, o teatro de Shakespeare de uma boa parte das produções do teatro elisabetiano de sua época).
As formas da subjetividade descritas por Sartre na Crítica da razão dialética são analisadas segundo o princípio marxiano da relação indissociável entre interioridade e exterioridade: "O homem é 'mediado' pelas coisas na mesma medida em que as coisas são 'mediadas' pelo homem". Sartre estabelece uma fenomenologia da subjetividade partindo do homem condicionado pela escassez (ele chega a falar de sua força esmagadora) e do "homem da necessidade" que produz perpetuamente seu próprio instrumento no ambiente da exterioridade, e descreve sucessivamente os estados da existência "prático-inerte" onde a transiucidez da práxis se dissolve na opacidade do Ser, da existência "serial" onde os indivíduos, reduzidos a um "estatuto molecular", não são senão uma "pluralidade de solidões" (ele denomina este estado como aquele do "coletivo"), até o estado do "grupo em fusão" que se constrói pela "desintegração da serialidade" e onde se instauram verdadeiras relações de interioridade e de reciprocidade. Raymond Aron duvidava do marxismo de Sartre: sobre certos aspectos é possível que tenha tido razão (cf. seu livro História e dialética da violência), mas a inspiração marxiana desta fenomenologia da subjetividade não nos parece ser contestável.
A sensibilidade de Marx no que diz respeito à condição humana em sua universalidade, para além mesmo de sua luta pela emancipação do proletariado, pode ser exemplificada pelo texto que em 21 de junho de 1856 ele endereçou a sua esposa Jenny von Westphalen. Trata-se de uma carta de amor que pode surpreender os que vêm Marx exclusivamente como o combatente pela abolição do capital e o dirigente da Internacional (o que ele efetivamente foi em primeiro lugar): "Meu amor por ti, já que estás longe, aparece como ele é, gigantesco, no qual se concentra toda a energia de meu espírito e todo o caráter de meu coração. Eu me sinto de novo como um homem, porque eu experimento uma grande paixão... Mas não o amor pelo homem feuerbachiano, nem o da troca de substância moleschottiana [Marx faz alusão ao fisiologista italiano de origem holandesa Jacob Moleschott (1822- 1895), cujo materialismo 'vulgar' foi objeto de críticas de Marx e Engelsi, nem aquele pelo proletariado, mas o amor pela bem-amada, por ti, o que faz do homem novamente um homem". Se poderia considerar esta carta como um testemunho de fidelidade à idéia de "homem integral", idéia que já estava presente desde os primeiros escritos filosóficos de Marx.
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