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Notas sobre a estrutura dialética do Livro Primeiro d' O Capital

Por: Jadir Antunes

Texto(PDF) publicado originalmente em: https://jadirantunes.files.wordpress.com/

Hats and Beards é uma pintura de Martel Chapman Introdução


O Livro Primeiro de O Capital está dedicado à análise das contradições do processo de produção da mais-valia e possui 25 capítulos distribuídos em 7 seções. A primeira seção compreende os capítulos I a III e estuda as determinações contraditórias do dinheiro e da mercadoria na esfera da circulação simples. As seções II a VI compreendem os capítulos IV a XX e estudam as contradições contidas no processo de produção da mais-valia. A seção VII estuda a repetição do processo de produção e a conversão da mais-valia em capital, isto é, estuda as contradições contidas na esfera da reprodução do capital. Vejamos então as linhas gerais desta divisão.


Significado geral da exposição de O Capital – Livro I


1)Seção Primeira: M-D-M (Mercadoria – Dinheiro – Mercadoria). Representa o começo puramente formal, abstrato e expositivo da exposição. Os operários aparecem como indivíduos livres e dispersos pelo mercado. M (uma mercadoria qualquer) se converte em D (dinheiro) que será reconvertido noutra mercadoria (M) qualquer. O dinheiro não aparece ainda como dinheiro, mas como moeda e meio de circulação. O dinheiro, por isso, não aparece ainda como o fim do processo de troca. O fim da troca aparece, ilusoriamente, como M, como a satisfação de uma necessidade humana qualquer.

2) Seção II: Contradições da fórmula geral do capital D- M-D’ (Dinheiro – Mercadoria – mais-Dinheiro) . Primeiro momento negativo e crítico da exposição. Nesta seção surgem as primeiras contradições da fórmula geral do capital na esfera da circulação e a crítica à noção dos economistas de que a mais- valia surge desta esfera. O dinheiro nesta seção surge como dinheiro exatamente, não mais como moeda e meio de circulação como aparecia na seção anterior. O dinheiro surge agora como valor que deve se valorizar na circulação e como o fim do processo de troca. O problema aqui é explicar como o dinheiro, seguindo a lei do valor e da equivalência entre as mercadorias, segundo a lei de comprar e vender pelo valor, pode se valorizar no processo. O problema é explicar como o dinheiro (D), ao se converter em M (uma massa de valor igual a D), sai ao fim do processo maior do que entrou no começo sem violar as leis da troca de mercadorias.

Ainda no interior desta segunda seção surge a resposta ao problema da valorização do valor com o surgimento de uma mercadoria determinada, a força de trabalho, e um vendedor, também determinado, o trabalhador, que ainda não apareciam na seção anterior, ou que apareciam misturados sem se diferenciar com uma miríade de outros vendedores. A fórmula FT-D-M (Força de Trabalho – Dinheiro – Mercadoria) surge como a mediação dialética entre o começo abstrato e indeterminado e a esfera da produção que virá logo mais. O mercado, por isso, está agora mais determinado que no começo, pois agora estamos no mercado de força de trabalho. Aqui é o momento da venda da força de trabalho (FT) pelo operário ao capitalista. Momento da conversão da força de trabalho em D (dinheiro) e, mais tarde, em meios de subsistência (M) do trabalhador. D só pode se converter em D’ caso entrar em relação com um vendedor de uma mercadoria determinada, a força de trabalho (FT) do trabalhador, com uma mercadoria que possui a peculiaridade de gerar uma soma de valor acima de seu próprio valor.

3)Seção III a VI: D-M (D - FT + MP) ...P... M’-D’ (Dinheiro – Mercadoria força de trabalho e Mercadoria meios de produção...Processo de Produção ... mais-Mercadoria – mais-Dinheiro, onde ... significam as pausas do processo de troca). Segundo momento crítico e negativo da exposição e a primeira negação determinada do começo. A valorização do valor é exposta na esfera da produção capitalista. Os operários surgem como uma categoria determinada da sociedade reunidos pelo capital em torno de uma grande fábrica e lutando por reivindicações positivas e de caráter sindical.

Dinheiro (D) se converte em certas mercadorias determinadas (força de trabalho e meios de produção). ...P... indica a paralisia transitória do processo de valorização do valor na esfera da produção. O valor ressurge valorizado ao final do processo de produção com M’. O valor, porém, ressurge valorizado numa forma determinada e rígida da produção social, ressurge sob a forma de M’ com valor superior ao valor adiantado inicialmente.

D’ representa a transmutação do valor de sua forma rígida e determinada para a forma líquida, fluente, indeterminada e universal da riqueza. Com D’ o dinheiro retorna ao seu ponto de partida mais elevado quantitativamente. O fim do processo, valorizar o valor, foi atingido. D se converteu em capital e em D’, isto é, o dinheiro se converteu em mais-dinheiro mediante extração de mais-trabalho do operário.

4)Seção VII: D-M (FT + MP) ... P ... M’-D’-D-M (FT + MP) ... P ... M’-D’-D-M (FT + MP) ... P ... M’-D’. Repetição sem fim de todo o processo anterior e unidade sintética de todos os momentos da circulação com o da produção e reprodução do capital. A exposição cai numa repetição circular e sem fim, por isso, surge a necessidade de marchar além dela e de transpor a esfera insossa da reprodução social buscando a gênese e princípio do capital.

O dinheiro se reproduz incessantemente retornando sempre ao seu ponto de partida elevado quantitativamente. D se converte em D’ mediante extração de mais-valia do operário, D’, por sua vez, retorna à circulação e se converte novamente em D que se converte, por sua vez, numa massa acrescida de M (FT + MP) que ao ser posta em atividade no interior da fábrica (... P ...) se converte numa massa maior de mercadorias (M’), que, posta para circular no mercado, se converte novamente em D’, que reinicia novamente todo o processo numa escala mais elevada que no começo e assim sempre de novo como num círculo vicioso.

5)Seção VII: a acumulação originária. Exposição do princípio fundador do capital e das tendências gerais da sociedade capitalista. É o momento da negação da negação. Os operários se elevam à condição de classe social, estão internacionalmente ligados pela grande indústria e lutam pela revolução internacional. Para fugir da exposição circular é necessário sair fora dela e recuar às origens históricas do capitalismo, mostrando que todo o processo de valorização do valor se apoia na mais bárbara violência do homem sobre o próprio homem.

Ao desvelar a gênese histórica e o princípio fundante do capital, a violência aberta da luta de classes, Marx pode entender as tendências futuras do capital. Ao compreender a gênese do passado pode desvendar o sentido das tendências futuras. A tendência histórica da acumulação capitalista pode, assim, ser compreendida em seus três momentos fundamentais:

1)Momento positivo e afirmativo do capital: é o momento da expropriação dos produtores diretos (servos de gleba, camponeses, colonos livres, mestres e artesãos corporativos de fins da Idade Média europeia) e sua conversão em trabalhadores assalariados. Expropriação da propriedade privada baseada no trabalho e sua conversão em propriedade capitalista pelos capitalistas ingleses dos séculos XIV-XVII. Transformação do trabalho individual e disperso pelo campo e em pequenas oficinas urbanas em trabalho social nas grandes manufaturas urbanas. Fim do isolamento dos trabalhadores e sua reunião em grandes centros industriais urbanos.

2)Momento negativo do capital: expropriação da pequena propriedade capitalista pelo grande capital, ruína do pequeno capital pela concorrência no interior da própria sociedade capitalista já desenvolvida. Formação dos grandes monopólios internacionais, controle consciente das forças da natureza e sua aplicação na produção. Formação de uma economia verdadeiramente mundial baseada na interdependência entre as nações e superação do isolamento entre os homens em todas as nações. Formação de uma única nação capitalista mundial. Formação de uma vasta classe operária mundial reunida em torno das grandes fábricas multinacionais e grandes centros urbanos industriais. Superação da propriedade privada por meio do sistema de ações, superação da necessidade histórica do capitalista individual frente ao processo de produção e sua substituição por gerentes executivos assalariados.Negação da propriedade privada à maioria da humanidade. Sobrevivência da propriedade privada sob forma antitética, como Sociedade Anônima. O capital gesta, no interior de si mesmo, uma forma de produção social que contradiz seu princípio privado. Gesta, ainda, seus futuros coveiros reunidos em torno da grande indústria e responsáveis pela negação deste segundo momento.

3) Momento da negação da negação: é o momento da expropriação dos expropriadores pela massa dos trabalhadores, é o momento da expropriação da minoria reduzidíssima da população que ainda permanece proprietária, como sócia acionista, pela maioria da população. É o momento da revolução operária e a formação de um novo modo de produção, é o momento da economia planificada, da ditadura revolucionária do proletariado e o começo da verdadeira história humana. A violência usada pelo capital se volta contra ele para fundar uma nova história, sem capital, sem propriedade privada, sem classes e sem exploração de classes. Com a revolução operária as contradições da sociedade capitalista são finalmente abolidas e resolvidas. Surgem novas contradições, mas não de caráter capitalista. Com a negação da negação se dissolve e se encerra não apenas o processo de exposição das contradições do capital, mas se encerra, ao mesmo tempo, a história da própria sociedade capitalista. A partir daí um novo princípio é posto e com ele se desenvolve uma nova história.

A exposição (pôr para fora o que está apenas pressuposto e escondido) avança, assim, negativa e gradualmente, do começo abstrato e indeterminado do mercado a níveis cada vez mais profundos, complexos e determinados da realidade. A exposição avança cada vez mais dialeticamente do começo para o fim, mas para um fim que é na verdade princípio determinado, que é arché, fundamento e gênese de todo o processo e marcha na direção do futuro socialista. Chega-se, assim, finalmente, à negação da negação em escala mundial e verdadeiramente universal. Assim, no método de exposição dialético, avançar é um retroceder ao princípio que funda e rege todo o processo, avançar a exposição é expor, por meio de uma série complexa de mediações, o princípio que está pressuposto e ainda velado, avançar é conduzir o leitor pedagogicamente do começo indeterminado e abstrato aos níveis mais profundos e verdadeiros da realidade, avançar a exposição é avançar o leitor de O Capital da passividade e alienação do mercado em direção à atividade prática revolucionária.

O princípio, ponto de chegada da análise, contudo, é ponto de chegada apenas na aparência. Na verdade ele está posto, desde o começo da exposição, como pressuposto velado que rege todo o processo. O princípio é ponto de chegada na exposição apenas para aqueles que realizam pela primeira vez a leitura de O Capital. Para Marx, seu autor, e para a vanguarda conhecedora do processo, ele está desde o começo posto como pressuposto, como aquilo que ainda deve ser exposto, isto é, como aquilo que ainda deve ser posto explicitamente, como a meta a ser desvelada lenta e gradualmente ao longo do processo de exposição. Assim, o recém iniciado na leitura de O Capital começa sua leitura sem pressuposto, isto é, sem conhecer o princípio e o fim almejado pela exposição, e o fim almejado pela exposição é converter o leitor comum, passivo e alienado na esfera do mercado, em um ativista revolucionário. Para Marx e para a vanguarda, o princípio e o fim, contudo, são conhecidos desde o começo da exposição, o princípio e o fim estão postos desde o começo como meta a ser alcançada.

Uma vez conhecido o princípio, torna-se possível a superação dialética e revolucionária do capital desde o começo da exposição, desde a dispersão dos operários na instância imediata do mercado até a revolução socialista. Conhecido o princípio e posto ele como pressuposto desde o começo da exposição torna-se possível à vanguarda revolucionária conduzir o proletariado em luta, dialeticamente, como faz Marx com seus leitores, desde a instância fetichizante do mercado até a revolução socialista e à negação da negação.

Ao longo da exposição Marx vai lentamente expondo não apenas a natureza contraditória da realidade capitalista, mas vai expondo, ainda, como as contradições do sistema são insolúveis no interior das relações capitalistas de produção. Ao longo da exposição Marx demonstra, científica e dialeticamente, que a solução definitiva e total para as crises do sistema capitalista só pode ser alcançada com a revolução operária e socialista.


Significado geral da Seção I do Livro I


A Seção I de O Capital representa a instância mais imediata, abstrata, aparente e ilusória da realidade capitalista. Há aqui um aparente intercâmbio de equivalentes e a relação entre capital e trabalho não aparece como tal, mas como uma relação entre dois vendedores individuais de mercadorias. O trabalhador não aparece ainda como tal, mas, sim, como vendedor de uma mercadoria indeterminada. O patrão, do mesmo modo, não aparece como tal, mas sim, como certo comprador de mercadorias em geral. A única relação econômica que surge neste momento é uma relação de comércio, onde, de um lado, se apresenta certo vendedor indeterminado e de outro, certo comprador, do mesmo modo indeterminado. Um surge como proprietário de produtos e o outro como proprietário de dinheiro.

Esta instância é a mais abstrata, e por isso a mais pobre de conteúdo, porque toda a transação entre comprador e vendedor é analisada num grau puramente formal, num grau bastante purificado de conteúdo. Isto é: toda a transação econômica desta instância é analisada abstraindo-se de qualquer conteúdo e num nível puramente formal e indeterminado. Por isso, Marx expressa esta relação comercial com a fórmula da circulação simples de mercadorias: M-D-M. Nesta fórmula o dinheiro não circula como capital, mas, sim, como moeda, isto é, como meio de circulação. O fim do processo é a satisfação de uma necessidade ainda não satisfeita e não a valorização sem fim do valor.

Como todo conteúdo da transação foi abstraído da exposição, mercadoria e dinheiro não aparecem como capitais, mas aparecem sim, como mercadoria e dinheiro mesmo. Do mesmo modo, vendedor e comprador não aparecem frente a frente como trabalhador e patrão, mas aparecem sim, como vendedor e comprador mesmo, sem determinação alguma. A dificuldade para se compreender esta Seção I, reside exatamente no caráter abstrato da exposição que recém inicia. As contradições que surgem neste nível surgem como resultados do caráter contraditório de certas categorias inteiramente abstratas. É o caso, por exemplo, da contradição que surge quando a mercadoria, a forma determinada, particular e rígida da riqueza social, deseja ser trocada pelo dinheiro, a forma universal, indeterminada e fluída da riqueza social. Surge assim uma contradição entre a forma particular, rígida e determinada da riqueza social com sua forma universal, fluída e indeterminada.

A leitura positivista e historicista de O Capital acredita que existe entre a primeira seção e as seções restantes um corte paradigmático e incomensurável. Para essa leitura, a primeira seção de O Capital estaria analisando as condições históricas pré-capitalistas sobre as quais partiu e se desenvolveu a acumulação capitalista. Para essa leitura, na primeira seção Marx estaria analisando um suposto modo de circulação das mercadorias – a circulação mercantil simples (M-D-M) – que teria precedido no tempo a circulação capitalista de mercadorias (D-M-D’). Para essa visão, a circulação capitalista de mercadorias e o processo de valorização do valor que a caracteriza começariam a ser expostos por Marx apenas a partir da segunda seção, com a exposição do processo de compra e venda da força de trabalho. Desse modo, a transição da primeira seção para as seções seguintes de O Capital seguiria o mesmo curso histórico da sociedade capitalista em seu período de gênese. A transição, portanto, não seria conceitual, mas, sim, histórica e temporal.

A leitura dialética de O Capital, por seu lado, leitura da qual partilhamos, acredita que a esfera da circulação simples e a esfera da circulação capitalista de mercadorias são momentos de um mesmo processo de pensamento baseado na contraposição entre momentos mais imediatos, abstratos e aparentes de uma determinada realidade, com seus momentos imanentes e ocultos aos sentidos naturais do homem. Para essa leitura dialética de O Capital, a esfera da circulação simples de mercadorias e a troca de equivalentes expostas nessa primeira seção são os momentos conceitualmente mais imediatos de todas as trocas realizadas no interior da própria sociedade capitalista, e não momentos de processos que antecedem no tempo a história dessa sociedade.

Para essa visão dialética da questão, a circulação simples de mercadorias é a esfera nas quais todos os diferentes agentes da sociedade capitalista aparecem diariamente na figura de compradores e vendedores de mercadorias, que têm como meta satisfazerem-se no consumo. Essa esfera da circulação não é uma esfera inexistente, nem mesmo uma esfera atrasada no tempo, quando comparada com a esfera capitalista das trocas que visa a valorização do valor. Essa esfera é a esfera na qual trabalhadores e capitalistas se defrontam cotidianamente com a mercadoria e o dinheiro na figura de homens comuns, que vendem e compram mercadorias para satisfazer suas necessidades de consumo. O dinheiro, por isso, aparece para esses agentes como coisa e mero meio de circulação, e nunca como representação de algo que se esconde para além de si próprios e como meta das trocas.

A exposição crítica e dialética de Marx toma essas relações ordinárias com a mercadoria e o dinheiro como relações abstratas e, por isso, como relações conceitualmente carentes de determinações mais precisas e imanentes. A transição do começo da exposição para as seções seguintes segue, por isso, um curso conceitual e não temporal e histórico. A diferença entre a primeira seção, que inaugura a exposição crítica de Marx, e as seções seguintes é uma diferença entre níveis de abstração e concretização de um mesmo e único pensamento e de uma mesma e única realidade, e não uma diferença entre dois tempos historicamente separados.

As dificuldades de uma compreensão dialética da primeira seção de O Capital começaram a aparecer ainda na época da publicação da Contribuição à Crítica da Economia Política, em 1857, obrigando Marx a aperfeiçoar a exposição e a deixar sua obra magna mais didática e acessível ao leitor comum. Marx comentava no Prefácio da Primeira Edição (1867) que O Capital era uma continuidade de sua obra Contribuição à Crítica da Economia Política. Dizia ele que o primeiro capítulo de O Capital era um resumo da Contribuição e que sua exposição estava agora mais aperfeiçoada e acessível, especialmente a exposição sobre a substância e a grandeza do valor. Essas dificuldades foram também observadas por Marx no Posfácio da Segunda Edição Alemã.

Marx comentava nesse Posfácio que, por sugestão de seu amigo Dr. Kugelmann, aperfeiçoará a ordenação do livro, deixando-a mais clara. Comenta ainda que apresentará com maior rigor científico a relação entre o valor e o valor-de-troca, e a conexão da grandeza do valor com o tempo de trabalho socialmente necessário. Marx lamentava-se nesse Posfácio sobre a pouca compreensão mostrada pelos leitores na questão do seu método de exposição. Marx ainda comentara ter usado certos modos de expressão peculiares a Hegel e confessar-se abertamente discípulo, ainda que crítico, desse grande pensador, tratado injustamente como cachorro morto pelo movimento neo-kantiano de finais do século XIX.

Engels, o velho e inseparável amigo, teria sido o primeiro grande intérprete de Marx a não entender o caráter dialético da exposição de O Capital e dessa primeira seção do Livro Primeiro, convertendo essa seção em pressuposto histórico do capitalismo. Em seu Prefácio ao Livro Terceiro de O Capital, Engels procurou corrigir as polêmicas surgidas com os economistas, a partir da publicação do Livro Segundo. Segundo os economistas, como Conrad Schmidt, Fireman, Wolf e Loria, haveria uma incompatibilidade entre a teoria marxista do valor e da mais-valia e a formação do lucro capitalista. Engels respondera a esses economistas dizendo que a esfera da circulação simples de mercadorias e a teoria do valor equivalente formavam o ponto de partida histórico do capitalismo, e que esses economistas, por serem incapazes de compreender este caráter histórico do capitalismo, também seriam incapazes de compreender a teoria do valor trabalho de Marx.

A polêmica sobre a vigência da lei do valor trabalho na sociedade capitalista permaneceu mesmo após a publicação do Livro Terceiro, juntando-se agora a acusação de incompatibilidade entre os Livros Primeiro e Terceiro, obrigando Engels a publicar um Suplemento explicativo na Revista Neue Zeit, em 1895/96. Nesse suplemento, Engels explicava que para Conrad Schmidt e Loria, a lei do valor trabalho teria uma validade meramente hipotética ou imaginária na sociedade capitalista, pois nela predominava a lei dos preços de produção. Engels esclareceu, então, reafirmando sua compreensão historicista da primeira seção, que a lei do valor e a circulação simples de mercadorias formavam a base de um processo não apenas lógico, mas ainda histórico para a produção capitalista.

Rosa Luxemburgo também teria sido uma das grandes personagens da história do marxismo a não compreender o caráter dialético da exposição e da primeira seção do Livro Primeiro, e a reclamar da complexidade dialética de Marx nesta seção, adotando o ponto de vista historicista de Engels. O marxista belga Ernest Mandel também foi um dos mais importantes difusores da tese engelsiana do caráter histórico da primeira seção do Livro Primeiro de O Capital, e de sua não relação com as categorias imanentes da circulação capitalista de mercadorias. Nesta mesma linha de interpretação inaugurada por Engels seguiram economistas como Paul Sweezy, Oskar Lange e Ronald Meek.

Louis Althusser, ainda que não partilhasse da popular concepção engelsiana, foi ainda mais longe nessa questão, ao recomendar aos iniciantes de O Capital – em seu Prefácio ao Livro Primeiro de 1969, em francês – que pulassem essa seção, devido ao caráter abstrato e incompreensível dela para um leitor não familiarizado com a cientificidade do marxismo. Althusser recomendava ainda a esses jovens leitores que começassem a leitura pela segunda seção, retornando à primeira seção somente após várias leituras completas do Livro Primeiro. Evidentemente, a leitura dialética de O Capital deve começar pelo começo e sem recorrer a quaisquer atalhos que quebrem arbitrariamente a arquitetura dialética da exposição e o caráter político e revolucionário da obra de Marx, avançando sempre mais e mais na direção dos níveis mais imanentes, negativos, contraditórios e revolucionários da totalidade da realidade capitalista.

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