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Sincretismo entre Economia Vulgar e a Crítica Utópica ao Capitalismo:

Contribuição Marxista Para a Crítica da Teoria de J. S. Mill

por Warlen Nunes dos Santos


INTRODUÇÃO

Neste artigo, busco demonstrar que a doutrina de John Stuart Mill se assenta na tentativa sincrética de conciliar os dogmas da economia vulgar com as propostas do socialismo utópico. Esse sincretismo, de certa maneira, expressa as contradições insuperáveis que estão envoltas em seu sistema pois, esse, foi se constituindo de forma eclética, recolhendo categorias e princípios de várias doutrinas teóricas de sua época como: a economia política clássica, a economia vulgar e o socialismo utópico.

Em um primeiro momento, apresento a compreensão de que a crítica da teoria social de Mill se detém sobre as consequências do regime de propriedade privada e essas são tomadas como problemas que se originam nas formas de distribuição. A solução apontada por Mill se dá com a universalização do acesso à educação das massas e pela redução da população. Assim, para o autor, tanto o socialismo como o regime de propriedade privada possibilitam a construção de uma sociedade justa, desde que ambos se inclinem para princípios mais justos de distribuição.

Na segunda parte do artigo, recupero a crítica operada por Marx às posições sincréticas de Mill. Ademais, para Marx, a obra de Mill se insere dentro de um processo mais amplo de decadência ideológica em que está envolta a sociedade burguesa – esse processo é ocasionado pela explicitação das lutas de classe entre a burguesia e o proletariado.

Tal processo produz uma modificação no que tange à teoria social – os intelectuais terão que tomar partido diante dos conflitos sociais. Nesse sentido, duas posições do ponto de vista burguês se tornaram determinantes, a primeira toma a defesa e justificação da ordem. Marx as designou como de cunho apologético. Já a segunda, acompanha a obra de Mill na tentativa de conciliar a economia do capital com as demandas dos trabalhadores. Por último, apresento a concepção de socialismo de Marx e como essa se constitui pela crítica radical da sociedade burguesa, pois a alternativa socialista se coloca pelas próprias contradições engendradas pelo sistema capitalista.


1. O AMÁLGAMA DE VÁRIAS DOUTRINAS


A obra de John Stuart Mill é reconhecida por acadêmicos e estudiosos das ciências humanas em geral e da filosofia ou da economia em particular como um clássico da tradição liberal. Além disso, Mill também fez fama sendo reconhecido como membro da corrente filosófica do utilitarismo da qual junto com Jeremy Bentham é um dos mais destacados e conhecidos autores. Outro aspecto que deixará marcas na obra de Mill é sua atuação junto ao grupo que ficou conhecido como “filósofos radicais”, grupo conhecido por sua proposta de auxiliar na introdução de reformas legais na rígida legislação inglesa. Assim, o próprio Mill definia o perfil ideológico do grupo: “[…] uma combinação do ponto de vista de Bentham com o da economia política moderna e com o metafísica hartleiana” (MILL, 1981, p. 107-8). Ademais, o próprio Mill também se reivindicava um socialista. Como afirma o filósofo: “em suma, eu era um democrata, mas, não menos importante, também um socialista” (MILL, 1981, p.238).

Sem exagero, podemos dizer que a obra de Mill se constitui de um mosaico forjado pelo amálgama do liberalismo, do utilitarismo, da economia política e da nascente tradição socialista de sua época (socialismo utópico). É esse sincretismo que torna o espólio teórico do autor um objeto de reivindicação de vários grupos sociais.

Como foge ao escopo deste capítulo uma análise de conjunto da obra de Mill, irei me deter aos aspectos da economia política e da crítica social do autor, com relação à sociedade capitalista. É por influência de seu pai James Mill que nosso autor em questão entra em contato com a economia política, passando a se considerar um dos continuadores do caminho aberto pelo famoso economista inglês David Ricardo.

Ao lado de Adam Smith, autor do clássico A Riqueza das Nações Ricardo, com seu não menos famoso Princípios de Economia Política e Tributação, aparece como um dos maiores nomes da chamada economia política clássica. Ambos são os mais destacados pensadores da teoria do valor-trabalho. Nesta teoria, se demonstra que o valor das mercadorias é determinado pelo tempo de trabalho gasto na sua fabricação. No caso específico de Smith, se acrescenta a capacidade que o trabalho tem de comandar outros trabalhos. Todavia, a economia política pós Smith e Ricardo se envereda por um caminho de negação da teoria do valor-trabalho, advogando em favor ou da teoria do valor utilidade, ou mesmo, a teoria da utilidade marginal em que o valor é determinado pela relação entre a satisfação subjetiva gerada pelo bem e a escassez deste mesmo ou da teoria dos custos de produção (valor determinado pela soma dos fatores de produção). Mill, como defendo neste artigo, ficará no meio do caminho entre a economia política clássica e a chamada economia vulgar.

Mill ganha fama internacional com seu livro Princípios de Economia Política (1848). É nesta obra que temos a caracterização de Mill sobre a sociedade capitalista e, por conseguinte, sua avaliação a respeito do socialismo. Na primeira versão da referida obra, Mill se mostrou bastante crítico ao socialismo, caracterizando esse regime como uma “tirania da sociedade sobre o indivíduo”. Essa posição de Mill será reavaliada nas edições subsequentes do livro. Vejamos como o próprio autor nos relata sobre essa mudança de posição.

Na primeira edição, as dificuldades do socialismo foram enunciadas com tanta firmeza, que o tom era, em geral, de oposição a ele. Nos dois anos que se seguiram, muito tempo foi dedicado ao estudo dos melhores escritores socialistas do continente, articulado com uma meditação e discussão sobre toda a gama de tópicos envolvidos na controvérsia que gravitava no interior desse debate. O resultado foi que a maior parte do que havia sido escrito sobre o assunto na primeira edição foi cancelado e substituído por argumentos e reflexões que representam uma opinião mais avançada (Mill, 1981, p.241).

Observamos que essa formulação parte do diagnóstico que o regime atual de propriedade privada traz consigo graves problemas sociais – entre eles, a injustiça na distribuição dos frutos do trabalho, a péssima educação das massas, o direito de herança sobre a propriedade como forma de perpetuar a desigualdade de riquezas e o desmedido aumento populacional que ocasiona um agravamento das injustiças em função da escassez de alimentos. Nesse sentido, a avaliação em relação à possibilidade de uma sociedade pautada na justiça social e na liberdade dos indivíduos passa pela análise das “vantagens comparativas” entre o regime da propriedade privada (não como ele se encontra em seu estado atual, mas como este deveria ser), com o regime da propriedade coletiva (socialista ou comunista).

Mill rejeitou as teorias que advogam pela impossibilidade da economia socialista embora ele acreditasse que tanto a propriedade privada quanto o socialismo deveriam, para se tornarem regimes justos, realizar duas das condições que são o pressuposto sobre o qual repousa a possibilidade de extirpar as mazelas sociais. Como argumenta o filósofo:

Precisamos também supor realizadas duas condições, sem as quais tanto o comunismo como quaisquer outras leis ou instituições só poderiam tornar a condição da massa da humanidade pior e miserável. Uma delas é a educação universal e a outra é uma devida limitação da população da comunidade (MILL, 1996, p. 268).

Nesse sentido, “se cumpridas essas duas condições (sejam elas: a universalização da educação e a limitação da população), não poderia haver pobreza, mesmo no regime das atuais instituições sociais” (Mill, 1996, p.268, acréscimos do autor). Assim, para Mill, o processo de educação das massas, que fariam com que essas, ao se apropriarem da educação, compreenderam que a importância do princípio da distribuição justa – combinado com a limitação da lei Malthusiana da população – poderia criar as condições para superar o estado de miséria da sociedade.

O estranho é que um dos argumentos de Malthus contra as políticas sociais em favor dos pobres é justamente que se o estado destinar políticas sociais a esse segmento, isso favoreceria o seu crescimento populacional. O que Malthus propõe para a diminuição do aumento populacional é a abstinência consciente por parte dos pobres em relação a ter filhos e, essa só seria possível, se fosse cultivado nas massas o temor da pobreza. Por isso, qualquer reformador social acaba contribuindo para o aumento da população ao colocar para as massas a esperança de superação de sua miséria via reforma social.

Mill tem posições tão contraditórias que é capaz de defender a necessidade de reformas sociais tendo como pressuposto uma teoria que defende justamente a impossibilidade de reformas sociais.

Assim como os primeiros socialistas, Mill pensa o socialismo como uma questão de natureza moral, como uma correção de princípios pois, se corrigido, o princípio injusto da forma em que é distribuída a proporção entre a remuneração e o trabalho, a sociedade não permitirá que os ociosos se apropriem da abstinência alheia.

Dessa maneira, Mill recolhe da economia vulgar várias categorias, por exemplo, as categorias de abstinência (Sênior) e teoria da população do reacionário Malthus. Da escola ricardiana ele toma a crítica ao regime de propriedade privada pela distribuição injusta. No que diz respeito ao socialismo utópico, a corrente que mais lhe agrada é o Fourierismo, como verificado na obra do autor:

Esse sistema não contempla a abolição da propriedade privada e nem mesmo a da herança; pelo contrário, leva em conta, declaradamente, como um elemento na distribuição da produção, tanto o capital como o trabalho. [...]. Na distribuição, um determinado mínimo é primeiro dado para a subsistência de cada membro da comunidade, capaz de trabalhar ou não. O resto da produção é repartido em porções a serem determinadas de antemão, entre os três elementos: trabalho, capital e talento (MILL, 1996, p.272).

Portanto, em Mill, tenta-se conciliar os pressupostos que justificam a economia capitalista com as propostas de reforma social que tenham como meta melhorar as condições de vida dos trabalhadores. De acordo com Hobhouse, “Mill é a pessoa mais fácil do mundo para condenar em termos de inconsistência, incompletude e falta de sistema bem arrematado [rounded system] (HOBHOUSE, 1945, p. 46). Não obstante, o próprio Hobhouse considera que o pensamento de Mill sobreviveria a muitos sistemas mais bem elaborados do que o dele. Passaremos agora para a crítica operada pela economia política marxista e como essa tradição realiza uma crítica diametralmente antagônica ao pensamento de Mill.


2. A CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA MARXISTA A JOHN STUART MILL


Nesta seção, apresento o pensamento de John Stuart Mill, tal como este se delineia em alguns momentos da Crítica da Economia Política marxista. Para Marx, o filósofo em questão não pode ser considerado um economista vulgar, como nos adverte: “ […] se cabe censurar homens como J. S. Mill pela contradição entre seus velhos dogmas econômicos e suas tendências modernas, seria absolutamente injusto confundi-los com a tropa dos apologistas da economia vulgar” (MARX, 2013, p. 686).

Paradoxalmente, considero que a posição teórica de Mill se constituiu da mescla sincrética entre elementos da economia vulgar e da crítica utópica ao modo de produção capitalista, pois como também afirmou Marx: “a história da economia política moderna termina, com Ricardo e Sismondi. A literatura político-econômica posterior se perde, seja em compêndios ecléticos, sincréticos, como a obra de J. St. Mill” […] (MARX, 2011, p. 672).

Para Marx, toda formação ideal tem determinações materiais e sociais, isto é, o pensamento é condicionado pelo modo de produção e distribuição da riqueza em um período histórico determinado. Assim, apresentaremos a crítica de Marx a Mill no interior do processo histórico em que a burguesia como classe economicamente dominante se torna também politicamente dominante, processo este marcado pela decadência ideológica da burguesia. Tal fase, como argumenta Lukács, "tem início quando a burguesia já domina o poder político e a luta de classe entre ela e o proletariado se coloca no centro do cenário histórico” (LUKÁCS, 1992, p. 51). A partir de então, “a luta de classes assumiu, na teoria e na prática, formas cada vez mais explícitas e ameaçadoras” (MARX, 2013, p.85).

Neste período em que a luta de classes se explicita, a burguesia abandona qualquer perspectiva universalista, como fizera anteriormente, defendendo, desde então, seus mesquinhos interesses particulares. É nesta quadra histórica que temos o fim do ciclo “progressista” iniciado pelas revoluções burguesas. Marx constata que este processo produz mudanças ideológicas significativas, principalmente com o aparecimento de ideólogos que se dedicam a justificar a ordem social existente. Estes são, para Marx, verdadeiros apologetas do atual estado de coisas, pois “o lugar da investigação desinteressada foi ocupado pelos espadachins a soldo e a má consciência e as más intenções da apologética substituíram a investigação científica imparcial” (MARX, 2013, p. 86). Vejamos como Marx apreendeu esse processo:

Nessas circunstâncias, seus porta-vozes se dividiram em duas colunas. Uns, sagazes, ávidos de lucro e práticos, congregaram-se sob a bandeira de Bastiat, o representante mais superficial e, por isso mesmo, mais bem-sucedido da apologética economia vulgar; os outros, orgulhosos da dignidade professoral de sua ciência, seguiram J. S. Mill na tentativa de conciliar o inconciliável. (MARX, 2013, p. 87).

Esses são os dois grupos em que se dividiram os ideólogos da burguesia: uns eram pragmáticos e ambiciosos que colocavam suas “teorias” a serviço da legitimação e naturalização do estado de coisas, enquanto outros se juntaram a Mill no trabalho de “reconciliar o inconciliável” (ibidem). Nesse sentido, Mill aparece como aquele pensador honesto, sensível às questões sociais de sua época, embora o resultado que se obtém com seu esforço teórico, seguindo a crítica de Marx, não passa da tentativa de conciliar a economia política do capital com as reivindicações dos trabalhadores.

J. S. Mill inicia suas elaborações sobre economia política em um período em que a economia política clássica estava em franco processo de dissolução, como nos adverte Isaac Rubin (2014), um dos proeminentes intérpretes da teoria marxista do valor: “Depois de Ricardo, o pensamento econômico burguês voltou-se cada vez mais para a defesa da propriedade burguesa (e fundiária) contra os ataques dos socialistas” (RUBIN,2014, p. 425). Estamos diante do advento da tradição teórica que se tornaria dominante em economia política, aquela que Marx designou como economia vulgar, ou seja, a economia pós- Smith e Ricardo.

Vejamos a distinção que Marx faz entre economia política clássica e economia vulgar.


Para deixar esclarecido de uma vez por todas, entendo por economia política clássica toda teoria econômica desde W. Petty, que investiga a estrutura interna das relações burguesas de produção em contraposição à economia vulgar, que se move apenas no interior do contexto aparente e rumina constantemente o material há muito fornecido pela economia científica a fim de fornecer uma justificativa plausível dos fenômenos mais brutais e servir às necessidades domésticas da burguesia mas que, de resto, limita-se a sistematizar as representações banais e egoístas dos agentes de produção burgueses como o melhor dos mundos, dando-lhes uma forma pedante e proclamando-as como verdades eternas (MARX, 2013, p.155).

Enquanto na economia clássica havia uma pretensão científica de seus pensadores – pois estes estavam movidos pela necessidade de oferecer à burguesia ascendente aportes teóricos na sua luta contra a aristocracia fundiária – os apologetas da economia vulgar abandonaram qualquer pretensão científica se limitando a sistematizar as representações egoístas e banais dos agentes da produção, transformando essas representações em “verdades eternas”.

Dois pontos são aqui característicos do método da apologética econômica. Em primeiro lugar, a identificação da circulação de mercadorias com a troca imediata de produtos, mediante a simples abstração de suas diferenças. Em segundo lugar, a tentativa de negar as contradições do processo capitalista de produção, dissolvendo as relações de seus agentes de produção nas relações simples que surgem da circulação de mercadorias (MARX, 2013, p. 187).

É neste contexto de dissolução da escola clássica que o pensamento burguês passa a negar as contradições do sistema capitalista e seus efeitos nefastos para os trabalhadores. Mill tem uma postura distinta: se mostra extremamente receptivo às ideias socialistas que circulavam em sua época (socialismo utópico) e se torna um crítico dos efeitos do sistema capitalista. Por exemplo: Mill reconhece os efeitos deletérios para os trabalhadores do desenvolvimento técnico da produção capitalista, como assevera Marx, para John Stuart Mill: “É questionável que todas as invenções mecânicas já feitas tenham servido para aliviar a faina diária de algum ser humano” (MARX, 2013, p.445). Na esteira de Marx, Isaac Rubin argumenta que:

Ao mesmo tempo, no entanto, Mill teme a radicalidade da luta de classes e aconselha os trabalhadores a se “comportar como seres racionais”. Assim, vemos que mesmo em sua filosofia social, área em que mais se destacou das ideias de seu pai e de outros liberais do século XIX, Mill se deteve a meio caminho entre o liberalismo e o socialismo. Como os primeiros socialistas, ele pôs o problema do socialismo de uma forma utópica (RUBIN, 2014, p.428).

Assim, Mill se apresenta como um dos herdeiros da escola clássica, mas sua lógica eclética o leva a adotar ao mesmo tempo postulados da economia vulgar. Por exemplo: “O sr. John S. Mill, […] reproduz, por um lado, a teoria do lucro de Ricardo e, por outro, filia-se à “remuneration of abstinence” [remuneração da abstinência] de Sênior” (MARX, 2013, p.672).

Marx considerava J. S. Mill como um ricardiano menor, já que este se limitava a repetir os vulgarizadores de Ricardo. Embora tenha em parte sua formação referenciada nos clássicos, Mill não produz avanços significativos, acabando por reproduzir grande parte dos equívocos de seus mestres e dos dogmas da apologética econômica. Como analisa Isaac Rubin (2014):

De Malthus, ele apropriou a teoria da população: de Say, a doutrina das crises. Como Torrens, ele transformou a teoria do valor-trabalho numa teoria dos custos de produção. Seguindo Baley, ele limitou sua análise ao conceito de valor “relativo”. De James Mill e McCulloch ele aceitou a doutrina do fundo salarial e de Sênior, a teoria da abstinência[…], de Sismondi defendeu fervorosamente a economia camponesa de pequena escala e, seguindo a pegada dos socialistas utópicos, fez a crítica do sistema capitalista. (RUBIN, 2014, p. 431-432).

Dessa maneira, o sr. J. S. Mill “ […] registra, com dogmatismo de discípulo, a confusão mental de seus mestres (MARX, 2013, p. 665). Essa apropriação eclética, tanto da teoria clássica como da economia vulgar, deixou marcas e contradições insuperáveis na obra do filósofo britânico.

Ao tomar os dogmas e os esquematismos da economia clássica como verdades eternas, Mill acaba reproduzindo justamente as partes mais problemáticas dos clássicos. Tomemos como exemplo de concretude sua interpretação da relação entre leis da produção e distribuição. Estamos diante da seguinte caracterização: “a produção deve ser representada […] como leis naturais eternas, independentes da história, oportunidade em que as relações burguesas são furtivamente contrabandeadas como irrevogáveis leis naturais da sociedade[…]” (MARX, 2011, p. 42).

A inépcia de todos os economistas burgueses, e também de J. St. Mill, p. ex., que considera eternas as relações de produção burguesas, mas históricas suas formas de distribuição, mostra que eles não compreendem nem estas nem aquelas (MARX, 2011, p. 635).

Desse modo, a contradição interna do sistema de Mill fica evidente. Estamos diante de leis naturais (produção) e de leis históricas (distribuição). Dessa forma, as mudanças sociais só podem ocorrer na distribuição da riqueza (circulação) pois, no seu esquema econômico, a produção é vista como algo natural e eterno. Portanto, Mill acaba como tantos outros socialistas da época identificando que os problemas da sociedade capitalista se dão na esfera da circulação, escorregando assim para a propositura política da “distribuição justa”. Ou seja, ele quer uma sociedade capitalista sem os efeitos nefastos da “distribuição injusta”. Vejamos o que Marx tem a nos dizer sobre o assunto da distribuição em sua obra Crítica ao Programa de Gotha (2012 [1875]):

A distribuição dos meios de consumo é, em cada época, apenas a consequência da distribuição das próprias condições de produção; contudo, esta última é uma característica do próprio modo de produção. O modo de produção capitalista, por exemplo, baseia-se no fato de que as condições materiais de produção estão dadas aos não trabalhadores sob a forma de propriedade do capital e de propriedade fundiária, enquanto a massa é proprietária somente da condição pessoal de produção, da força de trabalho, estando assim distribuídos os elementos da produção. Daí decorre por si mesma a atual distribuição dos meios de consumo. Se as condições materiais de produção fossem propriedade coletiva dos próprios trabalhadores, então o resultado seria uma distribuição dos meios de consumo diferente da atual (MARX, 2012 [1875]), p. 34).


E segue Marx:

O socialismo vulgar (e a partir dele, por sua vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição. (MARX, 2012, p. 34)


Mill não se atenta para o fato que a produção é o momento predominante, ou seja, que na produção já se encontra os momentos da distribuição, pois essa já pressupõe a distribuição dos meios de produção entre os proprietários privados e os vendedores da força de trabalho, entre o salário e o lucro (o lucro: forma fenomênica do mais-valor). Nesse sentido, ele acaba por atacar as formas mais aparentes do modo de produção capitalista não indo em sua essência que é justamente a produção do mais-valor.

Ademais, é típico do pensamento utópico-reformista se prender nas manifestações fetichistas da sociedade burguesa, buscando corrigir os problemas mais aparentes com teorias éticas, ou seja, com teorias da “justiça social”, da distribuição justa, etc. Contudo, essas teorias não conseguem combater o pressuposto sobre a qual está erguida a sociedade capitalista, quer dizer, não partem do pressuposto que é na produção do valor e do mais-valor que essa ordem social se reproduz de forma incessante – fruto da apropriação “vampiresca”, por parte do capitalista, do trabalho excedente . Essas teorias acabam mantendo a ordem social intacta.

Nesse passo, também Proudhon, como expoente do socialismo utópico francês, combatia o dinheiro e deixava intacta a produção de mercadorias da qual o dinheiro é só a forma necessária de expressão do valor interno dessas mesmas mercadorias – ou em um outro registro – propunha introduzir alterações no sistema de crédito (circulação), com seu mítico banco do povo, para combater os juros, sem compreender que os juros são uma parte do mais-valor produzido na esfera da produção.

Ao tentar conciliar uma teoria econômica burguesa com uma filosofia social progressista de caráter utópico, Mill vai se enredando por um sistema teórico eclético e inconsistente. Estando no meio do caminho, entre o socialismo e o liberalismo, o filósofo propõe corrigir os excessos do capitalismo, mantendo aspectos contraditórios de seu desenvolvimento. Isaac Rubin, com quem concordo, em História do pensamento econômico (2014) interpreta que:

Assim, vemos que, mesmo em sua filosofia social, área em que mais se destacou de seu pai e de outros liberais do século XIX, Mill se deteve a meio caminho entre o liberalismo e o socialismo. Como os primeiros socialistas, ele pôs o problema do socialismo de uma forma utópica. O objetivo é, para o pensador, julgar os “méritos relativos” do capitalismo e do socialismo e conceber o sistema social ideal que deveria ser estabelecido em virtude da perfeição de suas características inerentes (RUBIN, 2014, p. 428-429).


Em J. S. Mill, o socialismo deixa de ser a forma finalmente encontrada de organização da produção e distribuição da riqueza, isto é, uma fase inevitável por qual tem que passar a evolução das sociedades humanas a fim de evitar a dissolução e destruição da sociedade por crises econômicas recorrentes, para se tornar algo “desejável ou viável”. Já para Marx o socialismo é a única alternativa ao modo de produção capitalista, pois este último tem como tendência geral de seu processo de desenvolvimento a concentração e a centralização da riqueza e, por conseguinte, o aumento relativo da pobreza das massas trabalhadoras na exata medida em que concentra e centraliza a riqueza e a propriedade em poucas mãos.

O processo capitalista de produção tem como determinantes dois aspectos que estão entrelaçados: o social, que pressupõe o estabelecimento de relações entre os homens para produzir sua existência, bem como o técnico material, relação dos homens com a natureza. O primeiro corresponde às relações sociais de produção e o segundo correspondem às forças produtivas.

Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social (MARX, 2008, p. 47).


Com o desenvolvimento das forças produtivas ocasionado pela concorrência entre os próprios capitalistas, a lei do valor, que é a lei reguladora da produção capitalista, passa a ser negada pela própria lógica contraditória desta sociedade.

Do ponto de vista das relações de produção burguesa o desenvolvimento das forças produtivas opera uma diminuição do quantum de trabalho que passa a ser incorporado individualmente nas mercadorias, a relação desproporcional entre capital constante e variável afeta a taxa média de lucro (C+V/M). Isso se faz pela elevação da produtividade do trabalho ocasionada pelo constante aperfeiçoamento da maquinaria que eleva a composição orgânica do capital. Por composição orgânica Marx entende a relação entre o capital constante (meios de produção, matérias-primas, instalações etc.) e o capital variável (força de trabalho).

Desta maneira, o aumento da produtividade produz proporcionalmente maior investimento em capital constante do que em capital variável. Como consequência deste processo, temos uma tendência à queda na taxa média de lucro mesmo que se aumente a taxa de mais-valor em função da mais-valia relativa. Portanto, a queda da taxa média de lucro é uma resultante necessária da lei da acumulação capitalista que pressupõem a concorrência entre os capitais que leva a incessante busca por maior produtividade, por conseguinte, a crise do capital. É justamente nas crises que as possibilidades revolucionárias se abrem para os trabalhadores. Isso não significa que exista em Marx uma identificação mecânica entre crise do capital e consciência revolucionária, como defendeu certo marxismo determinista. As crises do capital são a forma de manifestação da contradição estrutural entre o desenvolvimento permanente das forças produtivas e a sua não correspondência com as relações de produção burguesa. Portanto, a crise do capital é algo inerente desta sociedade. Assim, é justamente a análise sobre as crises que permite a Marx inferir que não existe possibilidade de melhoras duradouras nas condições de vida da classe trabalhadora na sociedade capitalista.

A essa altura, alguém poderia perguntar: qual é a concepção de socialismo de Marx? Para responder tal pergunta, devemos começar pela consideração de que Marx não elaborou um tratado sistemático de como seria a sociedade socialista e nisto ele se diferencia de toda variante utópica do socialismo. Não obstante, estava nas suas intenções um livro no qual ele se ocuparia da dissolução do modo de produção e da sociedade baseada na forma do valor de troca. O livro não veio a lume. Todavia, é possível encontrar na obra de Marx, mesmo que em fragmentos, formulações e indicadores significativos que abordam a forma social comunista.

O modo de produção comunista para Marx pressupõe o momento em que ele saiu da sociedade burguesa.

[..] Marx pensava em sociedade socialista […] tal como ela surge da sociedade capitalista;” É certo que esta sociedade expropriou os capitalistas, […] , aqui “ o produtor individual recebe, depois das deduções, exatamente” o que dá à sociedade, “ o que deu a ela é sua quantidade de trabalho individual […] a sociedade lhe dá a certificação de que entregou tanto de trabalho, […] e esse certificado ele extraiu das reservas sociais de meios de consumo […] Em uma sociedade assim, não pode haver lugar para uma lei como a do valor, porque nela estamos em presença de uma forma de produção totalmente diferente da produção de mercadorias; a regulação da produção e da distribuição não fica entregue ao jogo cego do mercado. Fica submetida ao controle consciente da sociedade (ROSDOLSKY, 2001, p.360).


O socialismo seria a primeira fase da sociedade comunista, ainda marcada pelo direito burguês, embora aqui, já podemos ter uma nova conformação da produção e distribuição da riqueza, pois o trabalho não assume a forma fantasmagórica de uma objetividade de valor que tem que se expressar em coisas. Desse modo, a distribuição da riqueza se dá da seguinte forma: cada um segundo sua capacidade, a cada um, segundo seu trabalho. Não é mais o jogo cego do mercado, isto é, é a lei do valor que vai regular a produção e a distribuição. Essa sociedade deverá criar as condições para uma fase superior.

Numa fase superior da sociedade comunista, quando tiver sido eliminada a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre trabalho intelectual e manual; quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades! (MARX,2012, p.33).


Em Marx o movimento comunista adquire novos contornos e se torna um movimento teórico-político centrado na classe trabalhadora, pois a situação adversa por que passa a classe trabalhadora só pode ser alterada pela obra dos próprios trabalhadores, devidamente organizados como classe, com interesses próprios, que mediante uma revolução social ponham abaixo as relações burguesas, abolindo a propriedade privada dos meios de produção, modificando, a partir de então, as formas de produção e distribuição da riqueza. Com o socialismo, a humanidade superará sua pré-história.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo, demonstrei que a crítica social presente na obra de J. S. Mill se faz pela mescla sincrética da economia vulgar com o socialismo utópico. Foi argumentado que Mill é favorável às demandas dos trabalhadores, embora as tente conciliar com a economia política do capital e, ao fazê-lo, seu sistema teórico se envereda pela busca de conciliar o inconciliável. No texto, sinalizo que Mill recupera as teses utópicas que pretende introduzir modificações (reformas sociais) nas formas de distribuição da riqueza, não se atentando para o fato de que a produção já pressupõe uma distribuição do trabalho e dos instrumentos de trabalho, ou seja, de um lado temos trabalhadores livres que só têm sua força de trabalho para vender e, de outro, os proprietários privados dos meios de produção. É dessa divisão no ato da produção que se engendra as formas de distribuição da riqueza produzida. Na superação, pois, do sincretismo entre economia vulgar e socialismo utópico como marcantes das formulações ídeo-teóricas de Mill sustentamos, a partir de Marx, que a crítica ao modo de produção capitalista passa necessariamente pela tomada de posição em favor do socialismo como contraponto inconciliável com a sociedade do capital e como única forma de superação das mazelas sociais advindas do modo de produção capitalista.


BIBLIOGRAFIA

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