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Uberização do trabalho e O capital de Marx

por Guilherme Nunes Pires [1] Tradução de Wesley Sousa e Pedro Badô

Ilustração: Cristiano Siqueira /Insta: @crisvector/ Twitter: @crisvector

O presente texto foi publicado originalmente em língua inglesa no volume 24 da Revista Katálysis, jan.-abr. 2021, p. 228-234, e encontra-se disponível no link <https://www.scielo.br/j/rk/a/fpsw66xmmHwvTYV7PWJnprt/?lang=en>. A despeito das discordâncias teóricas que alguns de nossos editores levantam em relação às conclusões do texto, reputamos como fundamental o espírito crítico do autor. Nos parece que este impulso da crítica, que leva Guilherme Pires a buscar nos escritos de Marx uma hipótese explicativa, é o caminho incontornável para todo aquele marxista que queria se debruçar sobre as imensas problemáticas que dizem respeito a exploração da força de trabalho e do desenvolvimento do modo de produção capitalista em nossos dias. Diferentes hipóteses sobre a chamada “uberização” podem ser encontradas no texto de Eleutério Prado < https://eleuterioprado.files.wordpress.com/2018/04/subsuncc3a3o-financeira-do-trabalho-ao-capital.pdf>. Introdução


Nos últimos anos pôde-se observar o surgimento de uma síntese muito peculiar entre as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e as relações de trabalho descentralizadas, freelance e por demanda [on demand]. De um lado estão as plataformas digitais que ligam produtores e consumidores, enquanto, de outro lado, estão os trabalhadores gig [gig workers] [2] sem salário fixo e sem direitos trabalhistas básicos. Essa particular combinação tem sido caracterizada como Gig Economy [3] e as relações de trabalho específicas como uberização [Uberization] (De Stefano, 2016; Johnston, Land-Kazlauskas, 2019; Bloomer, 2019; Fontes, 2017).

Apenas para ter dimensão desse processo, em 2018, o volume bruto da Gig Economy foi de 204 bilhões de dólares em todo o mundo. Em 2019, esse número aumentou para mais de 250 bilhões e, para 2023, a expectativa é de crescimento superior a 450 bilhões. Do total desses números, o setor de transportes corresponde a 58% do volume bruto total. A nível regional, os países que lideram nesse total são EUA, Brasil, França e Reino Unido, respectivamente. Em comparação com as economias desenvolvidas, os países subdesenvolvidos tiveram um crescimento de 30% do uso do trabalho gig [gig work] nas plataformas digitais. Ou seja, esse fenômeno é uma tendência mundial do capitalismo contemporâneo (Muhammed, 2019; Mastercard, 2019; Johnston, Land-Kazlauskas, 2019).

Fundamentalmente, as relações de trabalho da Gig Economy baseiam-se em empregos descentralizados [decentralized], freelance e por demanda [on demand] sem contrato e salários fixos – geralmente realizados em plataformas digitais – conhecidas como uberização. Os ganhos destes trabalhadores baseiam-se exclusivamente no número de gigs/tarefas [gigs/tasks] que realizam. Da uberização do trabalho decorre um grande número de consequências. Como já está evidente, essas relações de trabalho estão diretamente ligadas à intensificação do trabalho, ampliação da jornada laboral, baixa remuneração, ausência de direitos trabalhistas, ampliação do controle indireto sobre o processo de trabalho, etc. (Fontes, 2019; Istrate, Harris, 2017).

Entretanto, embora pareça que a uberização do trabalho seja uma nova característica do capitalismo contemporâneo, não é possível argumentar que essas relações de trabalho sejam novas. É claro que elas carregam a combinação entre plataformas digitais e relações de trabalho descentralizadas, mas podemos indicar que Marx (1976) [4] viu esse processo como uma tendência constitutiva da economia capitalista. Mais do que isso, ao analisar o salário por peça [piece-wage] em O capital, Marx argumentou que a remuneração por tarefas/gigs [tasks/gigs] não altera a natureza das relações de trabalho e é uma tendência par excellence no capitalismo, já tendo identificado as principais consequências para a classe trabalhadora.

A partir disso, o objetivo deste artigo é indicar que O capital de Marx já antecipava essa tendência da economia capitalista e traçou as principais consequências da uberização do trabalho. Além disso, esse artigo tenta preencher a lacuna da análise da uberização a partir da crítica da economia política. O decorrer do artigo é dividido em duas seções. Na primeira seção, apresentamos as principais características da Gig Economy e suas relações de trabalho. Na segunda seção, expusemos e argumentamos que, n’O capital, Marx já havia antecipado as principais características da uberização do trabalho e suas consequências. A Gig Economy e o trabalho


Nós podemos caracterizar a Gig Economy como um modelo de negócios que combina tecnologia com emprego descentralizado, freelance e por demanda da força de trabalho. As empresas mais eminentes da Gig Economy são aquelas em setores influenciados pela tecnologia, principalmente plataformas digitais. A ideia da Gig Economy implica a noção de economia compartilhada [Sharing Economy]: uma perspectiva que relaciona bens e serviços de espaços conectados a plataformas online ou mesmo redes descentralizadas que podem resultar em benefícios monetários ou não monetários. Um claro exemplo dessa ideia de compartilhamento pode ser observado na Wikipédia, onde qualquer pessoa conectada à internet pode fazer uma contribuição significativa (ou não) para o desenvolvimento de uma enciclopédia mundial gratuita e acessível (Rihehart, Gitis, 2015).

Essas duas perspectivas combinadas caracterizam o modelo de negócios atual que usa relações de trabalho de tempo parcial [meio período]/por demanda [part-time/on demand] vinculadas a plataformas digitais como uma forma de superar os limites da acumulação de capital nos dias de hoje. Um exemplo global claro disso são as empresas Uber, Lyft e Airbnb, que conectam esses recursos principais.

A Gig Economy representa o amadurecimento do processo de globalização econômica e desenvolvimento tecnológico. Desde os anos 1970, temos visto a transição do padrão produtivo metal-mecânico-químico para a microeletrônica e telecomunicações. O ponto de amadurecimento, contudo, envolve esse longo processo de desenvolvimento tecnológico das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) que levará a modelos de negócios que proporcionam formas de exploração do trabalho no capitalismo contemporâneo (Perez, 2002).

De acordo com Istrate e Harris (2017), a Gig Economy tem, pelo menos, três características principais. A primeira está relacionada ao trabalho. Diferentemente do emprego padrão com salário fixo, na Gig Economy o salário depende exclusivamente do número de tarefas ou projetos realizados (gigs) [tasks or projects performed (gigs)] pelos trabalhadores. A segunda se refere à forma de consumo. Os consumidores têm uma enorme variedade de opções de bens e serviços por meio das plataformas digitais. Por fim, a terceira característica diz respeito à maneira pela qual a empresa intermediária conecta produtores e consumidores por meio das plataformas digitais.

Como Istrate e Harris (2017, p. 3) sintetizam da seguinte maneira:

A gig economy é formada por três componentes principais: os trabalhadores independentes pagos pelo gig (ou seja, uma tarefa ou um projeto), em oposição aos trabalhadores que recebem um salário ou uma remuneração por hora; os consumidores que precisam de um serviço específico, por exemplo, uma carona até seu próximo destino ou a entrega de um determinado item; e as empresas que conectam o trabalhador ao consumidor de forma direta, incluindo plataformas de tecnologia baseadas em aplicativos. Empresas como Uber, Airbnb, Lyft, Etsy ou Taskrabbit atuam como meio pelo qual o trabalhador está conectado ao – e por fim pago pelo – consumidor. Essas empresas facilitam aos trabalhadores encontrarem um emprego rápido, temporário (ou seja, um gig), que pode ser qualquer tipo de trabalho, desde uma apresentação musical até o conserto de uma torneira com vazamento. Uma das principais diferenças entre um gig e os arranjos de trabalho tradicionais, entretanto, é que um gig é um contrato de trabalho temporário, e o trabalhador é pago apenas por esse trabalho específico.

A partir disso, os principais elementos da Gig Economy são as empresas de plataformas digitais, os trabalhadores gig [gig workers] e os consumidores finais. Do ponto de vista das empresas de plataformas digitais, elas têm sido a força motriz por trás da expansão desse fenômeno. Essas empresas facilitam as transações entre consumidores e produtores nas plataformas digitais, tornam o trabalho mais flexível, oferecem opções de pagamento online, das quais é cobrada uma taxa significativa, e fornecem perfis online com a qualificação e a avaliação dos produtores e dos consumidores (Istrate, Harris, 2017).

Em geral, nos países desenvolvidos, em relação aos trabalhadores que estão conectados com os consumidores por plataformas digitais, há, em média, dois grandes grupos que podem ser identificados. O primeiro diz respeito àqueles que fornecem seu trabalho para ganhar a vida: motoristas, trabalhadores manuais e entregadores. As principais características desses trabalhadores são a baixa escolaridade e a baixa renda, cuja vida profissional foi baseada em empregos de tempo parcial [meio período; part-time] e temporários, ou também devido à dificuldade de encontrar empregos com maior estabilidade. No segundo grupo estão os trabalhadores, que fornecem algum bem ou serviço, que possuem renda e escolaridade mais altas e que não dependem exclusivamente do trabalho em tempo parcial [meio período; part-time]. Isso porque, em geral, eles têm empregos em tempo integral [full time] e buscam ganhar uma renda extra trabalhando em plataformas digitais (Istrate, Harris, 2017). Mas isso vem mudando ao longo dos anos. A cada ano, muitos trabalhadores qualificados não têm outra opção a não ser se tornar um trabalhador gig em tempo integral [full gig worker].

Nas economias subdesenvolvidas, entretanto, é bem diferente. Esses países geralmente têm um grande mercado de trabalho informal e taxas de desemprego mais altas, de modo que podemos ver um grande grupo de trabalhadores que foram transformados em trabalhadores gig pelas circunstâncias da periferia do capitalismo. De trabalhadores precários a recém-desempregados, de advogados a engenheiros, não há alternativa a não ser se tornar um trabalhador gig.

O emprego da força de trabalho nesses setores baseia-se principalmente em contratos temporários e freelance. Ou seja, os trabalhadores estão sujeitos a diferentes modalidades: tempo parcial [meio período; part-time], autônomo [por conta própria; self-employed], por demanda [on demand], etc. (Rinehart, Gitis, 2015; Johnston, Land-Kazlauskas, 2019). Além disso, “os trabalhadores gig, como contratados independentes [independent contractors], não recebem benefícios, como seguro saúde, das empresas de plataformas tecnológicas; em vez disso, eles devem obtê-los por conta própria” (Istrate, Harris, 2017, p. 5).

Essas características principais da força de trabalho da Gig Economy têm sido chamadas de uberização, pois a Uber é uma das maiores empresas do segmento (Fontes, 2017). Embora a Uber seja apenas uma entre muitas empresas, ela é a principal empresa que tem crescido exponencialmente em todo o mundo ao longo dos anos. Portanto, ao falarmos em uberização do trabalho, estamos apenas reafirmando uma tendência geral de acumulação de capital e subordinação do trabalho.

Vamos dar uma breve olhada nos números da Uberização. Especificamente nos EUA, a parcela de trabalhadores gig saltou de 10,1% em 2005 para 15,8% em 2015. Entre 2005 e 2015, os trabalhadores autônomos [self-employed workers] aumentaram 19% nos EUA (Istrate, Harris, 2017). Além disso, os ganhos desse tipo de trabalho são muito baixos. Por exemplo, nos EUA, alguns trabalhadores gig das plataformas digitais podem receber US$ 2 por hora, mais de três vezes abaixo do salário mínimo médio (ILO, 2018). Com esse salário gig [gig salary], a jornada de trabalho precisa aumentar para mais de 10 horas para que se consiga um salário para sobreviver.

No Reino Unido, o número de trabalhadores gig dobrou em três anos. Em 2019, o Reino Unido tinha 4,7 milhões de trabalhadores gig e espera-se que esses números aumentem nos próximos anos. Com a expansão da Gig Economy, agora 1 em cada 10 trabalhadores no Reino Unido está empregado em condições de uberização (Partington, 2019).

Na União Europeia, de acordo com Bloom (2019), o número de trabalhadores gig dobrou entre 2000 e 2014, fazendo deste tipo de relação de trabalho o grupo principal e o de crescimento mais rápido. Na África do Sul, pelo menos 30.000 trabalhadores gig, divididos entre dois grupos: a primeira metade são motoristas de táxis e o restante são entregadores gig [delivery gig workers].

No Brasil, a uberização do trabalho é evidente. Em menos de uma década, nós temos visto uma dramática expansão disso. Em 2019, de acordo com o IBGE, mais de 5 milhões de trabalhadores brasileiros tinham suas principais fontes de renda pelas plataformas digitais como a Uber e, ao menos, 17 milhões têm eventualmente alguma fonte de renda pelas plataformas digitais (Gravas, 2019). Entre 2014 e 2019, somente a Uber viu seus trabalhadores gig crescerem de 5.000 para mais de 600.000. A situação mais dramática, entretanto, diz respeito aos entregadores que utilizam bicicletas [bike delivers] no Brasil, conhecidos como “bikeboys”. Apesar de trabalharem 12 horas diárias e sete dias por semana, eles não recebem o salário mínimo nacional. Uberização e O capital de Marx


Embora pareça que a uberização do trabalho seja algo estritamente novo no capitalismo contemporâneo, vamos discutir como esse processo é uma tendência do capitalismo e que O Capital de Marx já previa esse fenômeno e suas consequências gerais.

Em O capital, Marx (1976) já identificava no salário por peça [piece-wage] algo muito similar ao que nós podemos encontrar na uberização do trabalho na Gig Economy. No capítulo sobre o salário por peça no Livro I d’O Capital, Marx explicou como essa forma de salário não era algo estritamente novo e como ela coexiste com outras formas de pagamento. Como Marx pontua, essa coexistência sempre ocorreu, “ambas as formas do salário existem ao mesmo tempo, uma ao lado da outra” (Marx, 1976, p. 692) [2013, p. 621]. Essa ideia, entretanto, não contradiz a natureza fundamental do regime salarial do capitalismo, ou seja, as formas de pagamento do salário, seja por peça (gig) ou por tempo, “não modifica em nada a essência” (Marx, 1976, p. 693) [2013, p. 622].

De acordo com Fontes (2017), na Gig Economy a empresa detém apenas parte dos meios de produção necessários para a realização das atividades principais da empresa. Principalmente a plataforma on-line onde as atividades-meio são desenvolvidas e estabelecidas entre os trabalhadores e os consumidores. Consequentemente, elas têm total controle para gerenciar e viabilizar a combinação dos meios de produção com a força de trabalho para atender ao mercado consumidor, sem exigir emprego no sentido formal (Fontes, 2017).

Empresas como a Uber, por exemplo, obtêm seus lucros ou prejuízos independentemente dos custos de criação e manutenção de sua plataforma, custos esses que não variam diretamente com a quantidade de “serviços de transporte” vendidos por seus precários “funcionários” [precarious “employees”] por meio do aplicativo. Como Fontes (2017, p. 56) argumenta, nessas condições há uma forte inter-relação entre “ as formas mais concentradas da propriedade, que viabilizam o controle econômico do processo [...], o controle da extração, a captura do mais-valor e sua circulação de volta à propriedade” [5]. O financiamento dessas grandes plataformas da Gig Economy está intimamente ligado à necessidade de grandes fundos especulativos de obter lucros extraordinários. Ou seja, “une-se estreitamente a investidores que, detentores de quantias de dinheiro monumentais, precisam transformá-las em capital, isto é, investi-las em processos de extração de valor” (Fontes, 2017, p. 56).

Fontes (2017) argumenta que é evidente a intensificação do comando do capital sobre o trabalho na Gig Economy e na uberização. O controle do processo de trabalho é absolutamente centralizado e os custos trabalhistas são reduzidos. À primeira vista, a intermediação da plataforma digital na conexão entre produtores e consumidores parece proporcionar maior autonomia aos trabalhadores. No entanto, produtores e consumidores devem ser credenciados nas plataformas, seguir a forma de pagamento eletrônico e se submeter às normas impostas pelos algoritmos. O controle sobre o trabalho torna-se impessoal e em tempo real (Fontes, 2017).

A análise de Marx sobre o salário por peça sugere as mesmas consequências. De acordo com Marx (1976, p. 694) [2013, p. 623], semelhante à uberização, “[a] qualidade do trabalho é controlada, aqui, pelo próprio produto, que tem de possuir uma qualidade média para que se pague integralmente o preço de cada peça”. Isso significa que, com base na avaliação do consumidor, os bens e serviços fornecidos podem sofrer uma série de penalidades que podem levar a descontos ou até mesmo a bloqueios que impeçam o trabalhador de trabalhar por um determinado período. Ou seja, “[s]ob esse aspecto”, a forma de salário por peça “se torna a fonte mais fértil de descontos salariais e de fraudes capitalistas” (Marx, 1976, p. 694) [2013, p. 623]. Se usarmos as plataformas digitais como exemplo, é possível ver a própria consequência para os trabalhadores gig.

Além disso, a uberização do trabalho permite que os capitalistas meçam integralmente o aumento da intensidade do trabalho. Como os salários são medidos pelo número de gigs realizados, não há necessidade de supervisão rigorosa do processo de trabalho. Agora, a intensidade e a jornada de trabalho são controladas pelo próprio trabalhador, que deseja aumentar seus ganhos diários e intensificar ao máximo sua própria exploração.

Isso está intimamente relacionado ao salário por peça analisado n’O capital. Marx (1976, p. 695) [2013, p. 624] argumenta que “[c]omo a qualidade e a intensidade do trabalho são, aqui, controladas pela própria forma-salário, esta torna supérflua grande parte da supervisão do trabalho”. O salário por peça, portanto, a uberização, tornou-se um melhor “sistema hierarquicamente concatenado de exploração e opressão" (Marx, 1976, p. 695) [2013, p. 624].

Embora pareça que o trabalhador tenha uma autonomia e um controle relativamente maiores sobre sua própria atividade, em essência isso garante um controle indireto muito mais intenso. As plataformas digitais garantem o controle em tempo real enquanto a plataforma digital estiver ativa. Além disso, a dependência de pagamentos automáticos, vinculados às plataformas, garante a extração direta de um montante considerável da remuneração do trabalhador, em torno de 20 e 25% a título de taxa fixa. De acordo com Fontes (2017, p. 56), a plataforma digital:

permite acoplar uma plataforma de busca a uma tecnologia móvel de cartão de crédito e a um localizador, que asseguram a estreita dependência do trabalhador, pois do cartão depende sua própria remuneração e o localizador denuncia todos os seus percursos, uma vez acionado o celular (conexão principal). E é através do cartão que serão extraídos diretamente entre 20 e 25% de toda a remuneração do trabalhador. A taxa de extração de valor é férrea, assim como o regime de trabalho.

Como são os trabalhadores que empregam os meios de produção, todos os custos de depreciação, reparo e melhoria são pagos pelos próprios trabalhadores. Se utilizarmos a empresa Uber como exemplo, veremos que o automóvel como meio de produção é de propriedade do trabalhador ou, em alguns casos, alugado pelo próprio trabalhador. Portanto, além das taxas cobradas pelas plataformas digitais, os trabalhadores arcam com todos os custos extras e de manutenção de seus próprios meios de produção, como combustível, reparos, troca de pneus etc. Em outras palavras, de acordo com Fontes (2017, p. 57), “[a] empresa distancia-se da vida concreta e faz questão de ignorar as condições de vida dos trabalhadores, assegurando-se um custo próximo de zero para maquinaria, matéria-prima (combustíveis, reparos, renovação da frota) e da própria força de trabalho”. A empresa só precisa pagar a manutenção da plataforma e toda a estrutura necessária para ela.

Paralelamente a isso, há uma expansão dos segmentos capitalistas que buscam parasitar essas atividades. Conforme demonstrado por Marx (1976, p. 695) [2013, p. 624], na forma de salário por peça, isso “facilita, por um lado, a interposição de parasitas entre o capitalista e o assalariado”. Na uberização, podemos ver o fenômeno exatamente. Um exemplo claro disso hoje é a empresa Uber: entre a empresa e o motorista, há uma série de intermediários que procuram alugar carros (meios de produção) para trabalhadores gig.

Além disso, há o processo de descentralização do processo de trabalho. Como dito acima, o credenciamento em plataformas digitais permite o controle indireto e irrestrito sobre o trabalhador, mas, além disso, altera qualitativa e quantitativamente a jornada de trabalho. Como argumenta Fontes (2017, p. 58):

Para além do credenciamento e do localizador, não há controle direto próximo aos trabalhadores: apenas a pura necessidade deve movê-los ao trabalho. Não há jornada de trabalho combinada ou obrigatória, nem limites para ela, tampouco dias de repouso remunerado. Estes se sabem trabalhadores, mas não se consideram como tal, mas como prestadores de um serviço casual, mesmo se movidos pela mais dramática necessidade. De fato, eles não têm um emprego, mas uma conexão direta de entrega do mais-valor aos proprietários capazes de lhes impor um processo de produção de valor pré-estabelecido. Não são os poros do tempo livre que tais proprietários procuram obturar, como nos processos fabris, que realizam estrito controle do tempo de trabalho. Aqui, trata-se de lidar com novas escalas, ampliando o volume de valor, através de fornecedores massivos de mais-valor. Qualquer tempo disponibilizado pelo trabalhador singular é tempo de lucro.

Marx faz um bom paralelo entre o salário por peça e o aumento da jornada de trabalho e da intensidade do trabalho nessa forma de salário: como resultado do salário baseado em gigs, ele diz, “é natural que o interesse pessoal do trabalhador seja o de empregar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista a elevação do grau normal de intensidade” (Marx, 1976, p. 695) [2013, p. 624]. Além disso, uma consequência natural desse arranjo é o desejo do trabalhador de trabalhar mais horas por dia. Nas palavras de Marx, é “do interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada de trabalho, pois assim aumenta seu salário diário ou semanal” (Marx, 1976, p. 696) [2013, p. 625].

Esse aumento na jornada e na intensidade do trabalho é evidente tanto no salário por peça quanto nos gigs. Ao analisar o salário por peça, Marx argumentou que a jornada de trabalho era tão extensa que, no século XIX, até mesmo Thomas Malthus não gostava dela. Marx (1976, p. 698-699) [2013, p. 628], em O Capital, nos lembra que: “Malthus observou, àquela época, em relação aos fatos publicados pelo Parlamento: ‘Confesso que vejo com desagrado a grande difusão da prática do salário por peça. Um trabalho efetivamente duro que se estenda por 12 ou 14 horas por dia, ou por períodos ainda mais longos, é demasiado para um ser humano’.”.

De acordo com Marx, a forma de salário por peça também proporciona ilusões reconfortantes aos trabalhadores que, em uma luta competitiva consigo mesmos, acreditam que têm mais liberdade, autonomia e independência. Na verdade, eles estão apenas em uma luta constante para sobreviver. Em suas palavras: “Mas o maior espaço de ação que o salário por peça proporciona à individualidade tende a desenvolver, por um lado, tal individualidade e, com ela, o sentimento de liberdade, a independência e o autocontrole dos trabalhadores; por outro lado, sua concorrência uns contra os outros” (Marx, 1976, p. 697) [2013, p. 626].

A partir disso, a noção de uberização do trabalho não é algo exclusiva e fundamentalmente novo, mas uma tendência do capitalismo já identificada por Marx. A inovação aqui é a combinação muito particular de novas tecnologias em desenvolvimento, plataformas digitais e capital financeiro para ampliar o escopo e a amplitude da acumulação de capital. Considerações finais


A expansão da uberização do trabalho é uma tendência global e podemos ver esse processo em todo o mundo. Desse ponto de vista, as propriedades resultantes desse fenômeno aparecem inteiramente como algo novo na economia capitalista contemporânea. É verdade que as plataformas digitais na Gig Economy combinam novas características da economia capitalista contemporânea. A nova característica é, nesse caso, a combinação do desenvolvimento tecnológico, especificado nas plataformas digitais, e a necessidade do capital financeiro de obter lucros extraordinários. Em outras palavras, a necessidade de grandes quantidades de dinheiro para se transformar em capital por meio da extração de valor aliada a um número crescente de trabalhadores em busca de vender sua força de trabalho.

Do ponto de vista das relações de trabalho capitalistas, foi possível perceber que o fenômeno da uberização, e suas principais consequências para a classe trabalhadora, não é algo exclusivamente novo no capitalismo contemporâneo. Marx já identificava essa tendência ao analisar o salário por peça na dinâmica capitalista. O aumento da jornada de trabalho e de sua intensidade, a ausência de direitos trabalhistas, a descentralização do processo de trabalho, a ampliação do controle indireto sobre o trabalho, as penalidades de desconto, etc., são características tanto do salário por peça quanto das formas gig de salário [gig forms of salary] e foram entendidas com excelência por Marx como uma tendência do capitalismo.

Embora a combinação de TICs e atividades de trabalho descentralizadas produza novos modelos de negócios por meio de plataformas digitais, a especificidade central da uberização do trabalho continua sendo explicada pela crítica da economia política de Marx, ou seja, a necessidade do capital de reduzir os custos do trabalho e ampliar sua exploração. Parece que a crítica da economia política de Marx é um ótimo ponto de partida capaz de lidar com a uberização do trabalho sem cair em análises anacrônicas e apologistas desse processo. A partir dessa aproximação inicial, novas pesquisas podem surgir para aprofundar essa questão.


Referências


BLOOMER, P. (2012). The future of work: litigating labour relacioships in the Gig Economy. Business & Human Rights Resource Centre, 2019.

DE STEFANO, V. (2016). The rise of the “just-in-time workforce”: on-demand work and labour protection in the ‘gig economy’. Internacional Labour Organization. Conditions of work and employment serie, Geneva, n. 71.

FONTES, V. (2017). Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Marx e o marxismo, 8(5), 45-67.

GAVRAS, D. (2019). 5,5 milhões usam app de transporte para trabalhar. O Estado de S. Paulo. 28 abr., 2019.

ILO. (2018). Job quality in the plataforma economy. International Labour Organization: Global Commission on the Future of Work, 2018.

ISTRATE, E., HARRIS, J. (2017). The future of work: the rise of the Gig Economy. National Association of Countries.

JOHNSTON, H., LAND-KAZLAUSKAS, C. (2019). Organizing on-demand: representation, voice and collective bargaining in the gig economy. International Labour Organization: Conditions of Work and Employment Series, Geneva, n. 94.

MARX, K. (1976). Capital. Critique of political economy. Vol. I. London: Penguin Books.

MASTERCARD. (2019). The Global Gig Economy: Capitalizing on a ~$550B Opportunity.

MUHAMMED, A. (2019) 5 important stats about the Gig Economy to know in 2019. Forbes, mai. 2019.

PARTINGTON, R. (2019). Gig Economy in Britain doubles, accounting of 4,7 million workers. The Guardian, 28 jun., 2019.

PEREZ, C. (2002). Technological Revolutions and Financial Capital. USA: Edward Elgar.

RINEHART, W., GITS, B. (2015) Independent contractors and the emerging Gig Economy. American Action Forum, Washington, DC.


Notas


[1] Universidade Federal do ABC, Centro de Ciências Naturais e Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais, São Bernardo do Campo, São Paulo, Brasil. (N.A.). [2] A expressão gig, em sentido estrito, costuma designar a ideia de uma única performance executada por um músico, ou grupo de músicos, especialmente tocando música moderna ou pop. No entanto, passou a ser empregada de maneira generalizada para designar trabalhos, empregos e serviços prestados temporariamente. (N.T.).

[3] Termo que designa de maneira mais abrangente as relações de trabalho temporárias e sem vínculo empregatício, incluindo atividades freelancer e remuneradas por cada projeto ou serviço. (N.T.).

[4] Na presente tradução, utilizamos a tradução brasileira de O capital da editora Boitempo: MARX, K. O capital: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. (N.T.).

[5] Todas as citações em outros idiomas foram traduzidas livremente pelo autor. (N.A.).

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