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Minhas razões contra a Barravento ou Os problemas da produção periodista da esquerda

por Débora Mattos

Imagem: Capa de uma edição da Alternativa.


Um dia, em 1977, a revista Alternativa decidiu fazer uma pausa para balanço. Em seguida, Gabriel García Márquez - seu fundador e contribuinte - publicou uma crônica com algumas reflexões sobre ela. Espero, com este texto, fazer algo próximo a isso.

Não são poucas as iniciativas de produção teórica e jornalística independente de esquerda. Nossa revista é um exemplo entre muitos e parte de nossos leitores também compõem o grupo de pessoas que se preocupam em produzir material de estudo, análise, divulgação e debate. No entanto, durante os poucos meses em que a Barravento está em circulação, desafios já previstos puderam ser compreendidos de forma prática. Dedico este texto a fazer reflexões sobre eles.

De início, é plausível pensar que muitos dos problemas que esse tipo de publicação enfrenta são problemas de nosso tempo, frutos da nova dinâmica da comunicação e de sua velocidade cada vez mais acelerada, essa ponderação tem seu lugar, mas, aqui, retorno à uma crônica escrita em 1977 por Gabriel García Márquez para a revista Alternativa, que discute problemas que ainda nos assolam, mostrando que questões antigas permanecem e ainda se embaraçam com as formas atuais de comunicação.

A revista Alternativa foi fundada em Bogotá por Gabriel García Márquez, Bernardo García, Enrique Santos Calderón, Antonio Caballero Holguín e Orlando Fals Borda, em 1974. Esse corpo editorial - que compreendia um espectro político relativamente amplo - tinha o objetivo de criar um revista de esquerda, com jornalismo sério de profunda apuração e refinado acabamento literário. Como muitos grupos de publicação e estudo, ela sofreu algumas fissões ao longo de sua breve história, chegando ao fim em 1980, após 257 edições. Durante esse período, ela passou por hiatos e sua publicação foi em tempos quinzenal, em outros semanal.

A crônica em questão é Minhas duas razões contra esta revista, publicada em maio de 1977, na primeira edição da Alternativa após o recesso para sua reformulação. Logo de início, García Márquez expõe alguns dos problemas do periódico ao afirmar que o hiato de publicações serviu para que perdessem menos dinheiro e trabalhassem menos, mas que também serviu para que algumas reflexões fossem possíveis.

As duas razões de Gabo contra a revista, da qual foi fundador e era colaborador permanente, eram sua periodicidade e seu preço. No momento em que a crônica foi escrita, a Alternativa era um periódico semanal. A partir disso, ele expõe os problemas de se fidelizar público com uma revista cara e que possuía intervalos de publicação de uma semana, de forma que os leitores mais assíduos adicionavam ao seu cotidiano os grandes jornais - apoiados pelo governo e patrocinados por grandes empresas - que teriam estrutura para produzir e publicar textos diários.

Mas talvez seja apenas o lapso de uma semana é um desafio descomunal para a histórica falta de memória dos colombianos: quando chega o sábado os leitores já esqueceram do que foi sua revista favorita no sábado anterior, de maneira que esta tem que conquistar cada semana uma clientela nova que sequer lembrava de ter sido a mesa clientela fugitiva da semana anterior. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2018, p. 26)

Debatendo a fidelização do público leitor de revistas, Márquez chega às grandes publicações, de altos números de impressão na Colômbia e afirma que até mesmo essas, que ele diz terem em suas mãos "todos os poderes do poder", têm suas dificuldades de manter seus leitores, produzir em uma periodicidade desejada e fugir da falência. Esses problemas também são a realidade de grandes editoras no Brasil na atualidade que, por mais mesquinhas e sem escrúpulos que sejam para seleção de seus patrocinadores, pautas e abordagem, por menos que se importem com a apuração e a verdade, também têm a redução de publicações e a falência batendo em suas portas.

A revista tem sido um gênero infeliz na Colômbia. Todas, de qualquer espécie, tiveram o destino dos amores de verão e dos ministros da Educação: intenso e fugaz. A única que resistiu mais de sessenta anos aos acasos dos salões de beleza e aos infartos fulminantes das trocas de proprietários parece mais uma advertência de Deus para castigo de ingênuos e temerários. Talvez nós colombianos não saibamos fazer revistas. Talvez não saibamos lê-las. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2018, p. 26)

No último mês do ano passado, a Editora Abril, responsável pela publicação das revistas Veja, Superinteressante, Claudia, Piauí, entre outras, teve que desocupar seu histórico prédio, construído para ela em 1968. A venda do prédio aconteceu em um leilão, que tinha como objetivo o pagamento de uma dívida, em que a marca Veja e o edifício tinham sido dados como garantia de pagamento, tão grave é a situação da editora. Diante de notícias como essa, é possível pensar que o espaço de uma semana entre as publicações tem parecido cada vez mais longo para parte dos leitores, que a internet está reduzindo o público do jornalismo impresso, ou então - o que seria realmente grave - que as pessoas estão deixando de se informar através da leitura.

Por mais que, no início do texto, tenha afirmado que os problemas do periodismo de esquerda que enfrentamos não se deve às novas formas de comunicação, seria um grande erro não considerar essas mudanças ao analisar algumas das questões tratadas aqui. Esse é o caso do ponto em que Gabo discorre sobre a dificuldade de se fidelizar público lançando somente uma vez por semana, enquanto que outro veículo, com publicações mais constantes, conquistaria esse público. Portanto, devemos considerar que com o enorme fluxo de informação e com a grande velocidade de disseminação, provocados pelo avanço dos novas formas de comunicação, esse desafio se torna ainda maior.

É aqui que a segunda razão de García Márquez contra sua revista se encontra com a primeira. Quando debate o preço de sua revista, o escritor afirma que o valor seria muito caro para seu público desejado e que, mesmo assim, muitas vezes a revista gerava prejuízos. A proposta da Alternativa, de ser uma revista independente e de esquerda, praticamente anulou suas possibilidades de anúncios e patrocinadores, ela também não possuía uma organização ou partido político por trás, fazendo com que seu financiamento fosse feito exclusivamente por seus leitores. A consequência dessa forma de manutenção foram cópias muito caras para as massas trabalhadoras, que eram o público que Gabo afirmou ser o desejado pelo corpo editorial.

Sem grandes anúncios - que desejamos mas que ninguém nos daria -, sem um partido político que nos sustente, nem um centro mundial de poder que nos mantenha, nem uma agência central de inteligência que nos subsidie para depois poder contar para todos, o preço de capa desta revista órfã de pai e mãe não pode ser menor e a amarga verdade, doa a quem doer, é que os leitores com possibilidade de gastar vinte pesos não são os que mais nos interessam. Portanto queremos atingir um público e na realidade chegamos a outro. Fazemos uma revista para pobres que muitos pobres não podem comprar. Tentamos criar uma consciência popular, mas à nossa clientela mais acessível interessa menos a justiça social do que as férias em Miami. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2018, p. 27)

A respeito do público leitor, é necessário diferenciar o que García Márquez afirmava ser o desejado por sua revista e o que grande parte das iniciativas independentes de esquerda na internet buscam, para que, assim, seja possível compreender as dificuldades de alcançar os leitores esperados por grande parte das publicações independentes presentes na web. Enquanto a Alternativa buscava chegar às massas de trabalhadores - público que também é o desejado por grande parte dos jornais de partidos e organizações políticas -, as iniciativas independentes da internet costumam ser voltadas às vanguardas, onde grande parte dos debates ocorrem, ou à jovens que buscam introdução nas principais discussões da esquerda.

A proximidade do público almejado pela Alternativa e pelos jornais ligados a organizações políticas - que os mantêm - e que, assim como ela, são jornais impressos, facilita algumas investigações necessárias sobre esses jornais. Há de se estudar as razões para que estes não penetrem as massas e, para isso, as reflexões colocadas por Gabriel García Márquez podem contribuir em alguns pontos. Para essa discussão é preciso considerar os problemas financeiros dos partidos políticos de esquerda no Brasil, a periodicidade desses jornais, suas linguagens e temáticas, o que não é nosso objetivo aqui, e renderia um novo texto.

Quanto às publicações na internet, tem de se considerar que a delimitação e o alcance de um grupo específico de leitores é consideravelmente difícil, dependendo muito de estratégias de marketing digital, domínio do uso das redes sociais, compreensão dos mais essenciais temas a serem levantados, entre outros aspectos que devem ser avaliados. Essas condições necessárias para alcance de público específico dependem de uma profissionalização que é, na maior parte das vezes, impraticável. Dessa forma, é indiscutível não só a dificuldade de se alcançar um público específico, mas também de conquistar leitores assíduos de forma geral.

Ainda que se considere suas diferenciações, é possível um paralelo entre os periódicos independentes da web e o problema levantado por Gabo sobre o financiamento de revistas. Partindo do princípio de que, com a internet, não é preciso uma grande estrutura para impressão, ou, obrigatoriamente, de uma sede para redação, essas publicações seriam mais fáceis de se manter. No entanto, é preciso recordar que um dos principais desafios é conseguir publicar com a maior frequência possível para se fidelizar um público leitor. Isso acarreta na demanda de um maior número de produções, de mais tempo dedicado à escrita. Na internet, a possibilidade de retorno financeiro para que se crie uma estrutura que permita uma publicação mais constante é ainda mais estreita e, nela, os textos estão envolvidos em um universo de uma grande quantidade de produções e em uma lógica de maior velocidade de veiculação.

Também é essencial ressaltar que grande parte das iniciativas de periodismo, como a de nossa revista, são independentes e surgem da mais pura vontade e necessidade de produzir textos que discutam os temas considerados cruciais para a esquerda na visão de seus escritores. Assim, esse trabalho é iniciado sem nenhuma estrutura inicial e sem perspectiva - ou mesmo intenção - de que, ainda que no futuro, ele gere retorno financeiro para que essa se torne uma atividade profissional que possibilite uma dedicação exclusiva que garanta uma maior periodicidade. Dessa forma, o aumento de redatores se torna uma dos poucos caminhos financeiramente viáveis para sua maior produção, mesmo que acarrete em novos problemas, como a expansão do espectro político do periódico.

Trata-se de um texto com muitas perguntas e poucas respostas. Os problemas estão postos e se complexificam a cada dia. As respostas, porém, só podem vir do avanço da produção dos periódicos que, por mais que sejam numerosos, ainda estão muito atrasados em relação ao espaço que representam na internet e ao domínio das ferramentas necessárias para disseminação.

Um caminho pode começar a ser considerado, a segmentação e adaptação de cada veículo à uma parte do público prioritário. Talvez os jornais de partidos consigam, com um maior número de publicações, avançar no alcance das massas. Quanto aos blogs e portais independentes, talvez o maior desafio seja compreender quais são as temáticas mais essenciais a serem trabalhadas, para, assim, ampliar seu alcance, ou, ao menos, gerar conteúdo relevante aos poucos que atingem. Não pretendo traçar soluções simplificadoras, mas sim pontuar nossos principais problemas: periodicidade, financiamento, alcance de público alvo, escolha cuidadosa de seu conteúdo e sobrecarga de trabalho; todos eles já sistematizados por Gabo em 1977, mas que persistem e se enredam nas novas formas de comunicação. A nós, resta compreendê-los e nos adaptarmos.



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