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Os heróis das “ressalvas”

por V. I. Lênin


Imagem: ITAR-TASS


O presente texto é o penúltimo da série que se propôs a revisar e divulgar as traduções dos escritos de Lênin sobre Tolstói. Tal como os textos anteriores, sua primeira tradução para a língua portuguesa também foi feita por Eneida de Morais e está contida na compilação de textos e trechos organizada por Jean Fréville (Trechos escolhidos sobre literatura e arte: Marx, Engels, Lenin e Stalin. Rio de Janeiro: Editorial Calvino, 1945).

Tendo por base fundamental tal versão em português, a partir da comparação entre a versão do texto em espanhol (Lenin, V. I. Obras completas. Tomo XX, Moscou: Progreso, 1983, p. 95-101) e em inglês (Lenin, V. I. Collected Works. Vol. 16, Moscow: Progress Publishers, 1973, p. 368-373), realizamos consultas ao texto no original russo nas Obras Completas. No caso específico deste texto, nossa revisão da tradução – com o cotejamento a partir do escrito original em russo –, o resultado foi um título relativamente diferente daquele pelo qual a primeira tradutora optou. Enquanto Eneida de Morais decidiu por Os heróis da “pequena resistência”, nos pareceu menos dúbio e menos polissêmico ao público brasileiro traduzir a palavra russa “оговорочность” por “ressalva”.

Por fim, novamente reforçamos aqui que nossa proficiência no idioma russo é ainda muito débil, sendo essa mais uma tradução provisória, preocupada centralmente em retomar o sentido de alguns elementos, como termos, palavras e ideias, perdidos pelas traduções disponíveis ao público lusófono.


Revisão de tradução por Pedro Badô.

Revisão textual por Wesley Sousa.


O décimo número da revista do sr. Potréssov e Cia., “Náchei Zarí”[1], que acabamos de receber, dá exemplos tão espantosos de descuido, ou melhor, de falta de princípios na apreciação sobre Liev Tolstói, que é necessário examiná-los agora, mesmo que brevemente.

Tomemos o artigo do novo guerreiro do exército potréssoviano, V. Bazárov. Os editores não concordam com “certas afirmações” deste artigo, mas não indicam, é claro, quais são essas afirmações. É muito mais conveniente agir assim para encobrir a confusão! Quanto a nós, achamos difícil indicar afirmações deste artigo que não indignem uma pessoa que preze um pouco pelo marxismo. “Nossa intelligentsia – escreve V. Bazárov – despedaçada e molenga, transformada em um disforme lamaçal intelectual e moral, atingindo o último limite de decomposição espiritual, reconheceu unanimemente Tolstói – Tolstói como um todo – como sua consciência”. Isso é mentira. Isso é apenas uma frase. Nossa intelligentsia em geral, e a intelligentsia da “Náchei Zarí” em particular, se assemelha muito a pessoas “molengas”, mas ela não manifestou e não podia manifestar nenhuma “unanimidade” na apreciação de Tolstói, nunca fez e não poderia fazer uma apreciação correta sobre Tolstói como um todo. E é precisamente a ausência de unanimidade que é encoberta por uma frase de pura hipocrisia,  muito digna do “Nóvoie Vrêmia[2], sobre a “consciência”. Bazárov não luta contra o “lamaçal”, mas estimula o lamaçal.

Bazárov “gostaria de lembrar algumas injustiças (!!) em relação a Tolstói, de quem são culpados os intelectuais russos em geral, e nós, radicais de diferentes tipos, em particular”. A única verdade aqui é que Bazárov, Potréssov e Cia. são precisamente “radicais de diferentes tipos”, tão dependentes do “lamaçal” geral que, enquanto silenciam, da maneira mais imperdoável, as inconsistências e as fraquezas fundamentais da visão de mundo de Tolstói, correm como franguinhos [петушком; petushkom], como franguinhos atrás do “todo”, berrando sobre a “injustiça” feita a Tolstói. Eles não querem embriagar-se “com a droga muito difundida entre nós, que Tolstói chama de “a ira da discussão”[3], – é exatamente esse o discurso e a melodia necessária aos sujeitos medíocres[4] que, com um infinito desprezo, se afastam de toda discussão que tenha qualquer princípio defendido de maneira integral e coerente.

“A força principal de Tolstói consiste justamente em que, tendo passado por todas as escalas da decomposição típica nas pessoas instruídas de hoje, soube encontrar sua síntese...”. Mentira. Foi exatamente uma síntese, seja nos fundamentos filosóficos de sua visão de mundo, seja em seus ensinamentos sociais-políticos, o que Tolstói não soube, ou melhor: não pôde encontrar. “Tolstói foi o primeiro (!) a objetivar, isto é, a criar não somente para si, mas também para os outros, essa religião puramente humana (os grifos são todos do próprio Bazárov), com a qual Comte, Feuerbach e outros representantes da moderna civilização só poderiam sonhar subjetivamente (!)”, etc., etc.

Tal tipo de discurso é pior que a mediocridade habitual. É cobrir o “lamaçal” com flores artificiais, o que só pode enganar as pessoas. Há mais de meio século, Feuerbach, não sabendo “encontrar uma síntese” em sua visão de mundo, a qual representava sob vários aspectos a “última palavra” da filosofia clássica alemã, emaranhou-se nesses “sonhos subjetivos”, cujo significado negativo já havia sido apreciado há muito tempo pelos “representantes da moderna civilização” verdadeiramente avançados. Declarar agora que Tolstói “foi o primeiro a objetivar” esses “sonhos subjetivos” significa ingressar no campo daqueles que voltam para trás, significa lisonjear a mediocridade, significa cantar junto como viekhismo[5].

“É evidente que o movimento (!?) fundado por Tolstói deve sofrer mudanças profundas se estiver realmente destinado a desempenhar um grande papel histórico-mundial: a idealização da vida patriarcal-camponesa, a tendência para as maneiras de produção naturais e muitos outros traços utópicos do tolstoísmo que, no atual momento, estão se destacando (!) em primeiro plano e parecem ser os mais essenciais, são na realidade apenas os elementos subjetivos que não estão ligados por um vínculo necessário aos fundamentos da ‘religião’ tolstoiana.”

Assim, pois, Tolstói “objetivou” os “sonhos subjetivos” de Feuerbach e o que Tolstói refletiu em sua genial obra artística e em seus ensinamentos cheios de contradições, as particularidades econômicas da Rússia do século passado notadas por Bazarov, são “apenas os elementos subjetivos” de seus ensinamentos. É o que se chama de alcançar o céu com o dedo[6]. Mas isso também quer dizer: para a “intelligentsia despedaçada e molenga” (etc., como citado acima), não há nada mais agradável, mais desejável, mais caro, nada que mais conivente com sua moleza que essa exaltação dos “sonhos subjetivos” de Feuerbach “objetivados” por Tolstói e isso é uma distração em relação às questões histórico- econômicas e políticas concretas que, “no atual momento, estão se destacando em primeiro plano”!

É compreensível que Bazárov não goste especialmente da “crítica cortante” que o ensinamento da não resistência ao mal causa “por parte da intelligentsia radical”. Para Bazárov, “está claro que não há que se falar aqui de passividade e quietismo”. Explicando seu pensamento, Bazárov se refere ao conhecido conto “Ivan, o tolo” e propõe ao leitor “imaginar que não é o tsar das baratas[7] que envia os soldados contra os tolos, mas sim seu próprio inteligente soberano Ivan, que, com o auxílio desses soldados, recrutados pelos próprios tolos, e, portanto, próximo a eles em sua constituição mental, Ivan quer obrigar seus súditos a executar qualquer exigência injusta. É bastante óbvio que os tolos, quase desarmados e não conhecendo a arte militar, não podem sequer sonhar com a vitória física sobre as tropas de Ivan. Mesmo com a mais enérgica ‘resistência pela violência’, os tolos podem vencer Ivan não fisicamente, mas apenas pela influência moral, isto é, apenas pela chamada ‘desmoralização’ dos soldados das tropas de Ivan”... “A resistência dos tolos pela violência obtém o mesmo resultado (apenas pior e com mais vítimas) que a resistência sem violência”... “A não resistência ao mal pela violência, ou de maneira mais geral, a harmonia entre os meios e os fins (!!) não é, de modo algum, uma ideia exclusiva dos pregadores morais anti-sociais. Esta ideia constitui um componente necessário de toda visão de mundo integral”.

Assim raciocina o novo guerreiro do exército potréssoviano. Não podemos aqui analisar seus raciocínios, mas talvez seja suficiente, pela primeira vez, reproduzir simplesmente o essencial e acrescentar três palavras: é puro viekhismo.

Dos acordes finais da cantata sobre o tema de que as orelhas não ultrapassam a testa: “Não há necessidade de representar nossa fraqueza como força, como superioridade sobre o ‘quietismo’ e o ‘raciocínio limitado’ (e sobre a inconsequência dos raciocínios?) de Tolstói. Isso não deve ser dito não apenas porque contradiz a verdade, mas também porque isso nos impede de aprender com o maior homem de nosso tempo.”

Muito bem. Muito bem. Não há porque ficar com raiva, senhores, e responder com bravatas e injúrias ridículas (como sr. Potréssov nos números 8-9 do “Náchei Zarí”) se vocês são abençoados, aplaudidos e beijados pelos Izgoiev[8]. Desses beijos, nem os antigos nem os novos guerreiros do exército potréssoviano podem ser purificados.

O estado-maior desse exército acrescentou uma ressalva “diplomática” ao artigo de Bazárov. Mas o editorial do sr. Nevedomski, publicado sem nenhuma ressalva, não é muito melhor. “Tendo absorvido para si – escreve este orador da intelligentsia contemporânea – e incorporando de maneira completa as aspirações e as tendências basilares da grande época da queda da servidão na Rússia, Liev Tolstói revelou-se a mais pura e acabada encarnação do princípio ideológico humano-universal – o princípio da consciência”.

Hum, hum, hum... Tendo absorvido para si e incorporando de maneira completa as formas basilares de declamação típica dos publicistas liberal-burgueses, M. Nevedomski revelou-se a mais pura e acabada encarnação do princípio ideológico humano-universal, – o princípio da conversa fiada.

Ainda mais um relato, o derradeiro[9]:

“Todos esses admiradores europeus de Tolstói, todos esses Anatole France de diversas denominações, e as Câmaras de Deputados que, recentemente, votaram em enorme maioria contra a abolição da pena de morte, e que agora homenagearam de pé o grande homem íntegro, tudo isso é o reino das intermediações, da indinferença, de ressalvas – que figura majestosa e poderosa que se levanta diante deles, fundido num só metal puro, a imagem desse Tolstói, dessa encarnação viva de um princípio único”.

Ufa! Ele fala bem – mas tudo isto é falso. Não foi nem num único, nem num puro, nem em um metal que se forjou a figura de Tolstói. E “todos esses” admiradores burgueses “homenagearam de pé” sua memória não exatamente por sua “integralidade”, mas justamente pelo desvio da integralidade.

O sr. Nevedomski deixou escapar apenas uma boa palavra. Essa palavra – ressalva – descreve tão bem aqueles senhores do “Náchei Zarí”, assim como a caracterização da intelligentsia de V. Bazarov acima mencionada. Temos diante de nós explicitamente os heróis da  “ressalva”. Potréssov faz uma ressalva de que não concorda com os machinistas[10] embora os defenda. Os editores fazem ressalvas de que não estão de acordo com “posições específicas” de Bazárov, embora seja claro para todos que não se trata de posições específicas. Potréssov faz a ressalva de que Izgoiev o caluniou. Mártov faz a ressalva de que não está inteiramente de acordo com Potréssov e Levitski, embora seja a estes a quem ele presta um serviço político fiel. Todos juntos fazem a ressalva de que não estão de acordo com Tcherevanim, embora aprovem muito mais seu segundo livro liquidacionista, que acentua o “espírito” de sua primeira criação. Tcherevanim faz ressalvas de que não está de acordo com Maslov. Maslov faz ressalvas de que não está de acordo com Kautsky.

Todos juntos estão de acordo apenas de que não estão de acordo com Plekhânov e sobre o fato deste acusá-los caluniosamente de serem liquidacionistas, sendo ele próprio incapaz de explicar suas relações atuais com os adversários de ontem.

Não há nada de mais simples do que a explicação dessa aproximação, incompreensível para as pessoas de ressalvas. Quando tínhamos uma locomotiva, estávamos em desacordo veemente sobre a questão de saber se a velocidade, digamos, de 25 ou 50 verstas por hora, correspondia à potência dessa locomotiva, ao estoque de combustível, etc. A discussão sobre esta questão, como sobre toda questão profundamente acalorada, era travada com ardor e algumas vezes com ira. Este debate – em todas as questões que se levantaram – está à vista de todos, aberto a todos, tudo está plenamente em acordo, não encoberto por nenhuma “ressalva”. E nenhum de nós pensa em retirar nada ou reclamar da “ira da discussão”. Mas, quando a locomotiva sofreu uma avaria, quando caiu num pântano cercada da intelligentsia com “ressalvas”, que zombam covardemente porque não há “nada a liquidar”, porque a locomotiva não mais existe, então nós, “discutidores irados” de ontem, unimo-nos por uma causa comum. Sem renunciar a nada, sem esquecer nada, sem fazer nenhuma promessa quanto ao desaparecimento das diferenças, servimos juntos a uma causa comum. Estamos direcionando toda nossa atenção e todos nossos esforços para reerguer a locomotiva, para concertá-la, para torná-la mais sólida, mais resistente, para colocá-la nos trilhos – teremos tempo para discutir quanto à velocidade e à mudança desta ou daquela agulha no devido momento. A tarefa atual desses nossos tempos difíceis é criar algo capaz de se opor às pessoas de “ressalvas” e à “intelligentsia despedaçada e molenga”, que estimulam direta e indiretamente o “lamaçal” reinante. A tarefa atual é, mesmo nas condições mais difíceis, escavar em busca do minério, extrair o ferro, fundir o aço da visão de mundo marxista e das superestruturas que correspondem a essa visão de mundo.


Misl, nº 1, dezembro de 1910.

 

Notas:

[1] A Náchei Zarí foi uma revista dos chamados mencheviques liquidacionistas. Foi editada em São Petersburgo entre janeiro de 1910 e setembro de 1914.

[2] O Nóvoie Vrêmia foi um jornal publicado entre 1868 e 1917 em São Petersburgo. Considerado um grande jornal de “tipo europeu”, publicava notícias estrangeiras bem detalhadas, anúncios de grandes empresas e obituários de figuras famosas. No entanto, com o passar do tempo, o Novoie Vremia ganhou reputação de um jornal servil, reacionário, sem escrúpulos e antissemita.

[3] A expressão referida, “озлоблением спора” – que costuma também ser traduzida como “exasperação da discussão” –, foi utilizada por Tolstói no último parágrafo da seção XV de sua obra “Uma confissão”.

[4] Lênin utiliza aqui a expressão “обывателями” (“obyvatelyami”), comumente traduzida como “filisteus” ou “pequeno-burgueses”. A palavra “обыватель” designava os residentes das pequenas cidades e aldeias no interior da Rússia e, por isso, passou a ter também um sentido pejorativo, próximo, em certa medida, do sentido negativo de “filisteu”, isto é, aquele indivíduo cujos interesses são mesquinhos e rasteiros, sendo um tanto desprovido de capacidades críticas ou de interesse pela arte e por outras áreas do pensamento que se afastem da imediaticidade do cotidiano.

[5] Os Viekhi – também conhecidos pelo título em inglês Landmarks ou Signposts – é uma coleção de ensaios publicada pela primeira vez em Moscou na primavera de 1909. Segundo o próprio Lênin, os Viekhi são uma “conhecida compilação feita pelos mais influentes ensaístas kadetes [constitucional-democratas]” – como Berdiaev, Bulgakov, Gershenzon, Izgoev, Kistiakovski, Struve e Frank –, que “foi recebida com entusiasmo por toda a imprensa reacionária e constitui um autêntico símbolo da época”. Os artigos tentavam colocar em questão as tradições democráticas revolucionárias do movimento popular russo, os pensadores como Belinski, Dobroliubov, Tchernishevski e Pisarev e o movimento revolucionário de 1905. Uma análise de Lênin sobre os Viekhi pode ser encontrada em Acerca de Veji, in: Obras completas. Tomo XVI, Madrid: Akal, 1977, p.119-127.

[6] Do original russo “попасть пальцем в небо”, trata-se de um expressão que designa o ato de dar uma resposta ou uma solução de forma inadequada, de explicar algo de maneira estranha ou estúpida.

[7] O tsar das baratas (“тараканский царь”), também traduzido como “rei barata”, é um personagem do referido conto Ivan, o tolo.

[8] Se trata de uma referência a Aleksandr Samoilovich Izgoiev, pseudônimo literário de Aron Solomonovich Lande, líder dos kadetes – os constitucional-democratas – e viekhista.

[9] Verso célebre de Pushkin – no original russo, “Еще одно, последнее сказанье” – na obra Boris Godunov, que abre a cena em que o padre Pímen escreve sobre a história da Rússia.

[10] Referência aos seguidores de Ernst Mach (1838-1916), influente físico austríaco e teórico ligado à tradição do empiriocriticismo.


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