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As bases objetivas do racismo no Brasil

por Maria Goreti Juvencio Sobrinho[1]


Antônio Pitanga em Barravento (1962) (Iglu Filmes/Glauber Rocha)


Este artigo é uma versão ampliada do trabalho “Racismo e desigualdades sociais no capitalismo brasileiro” apresentado no XII Congresso Português de Sociologia, “Sociedades polarizadas? Desafios para a sociologia”, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em abril de 2023. 


“Nos Estados Unidos da América do Norte, todo movimento operário independente ficou paralisado durante o tempo em que a escravidão desfigurou uma parte de sua república. O trabalho não pode se emancipar na pele branca onde na pele negra ele é marcado a ferro.” (Karl Marx)


Introdução

O sociólogo e político brasileiro Guerreiro Ramos (1915-1982), que buscou pensar o negro como “negro-vida”, não como ser essencializado, criticou o que ele denominou de “sociologia inautêntica”, que transpunha para o Brasil conceitos forjados na Europa, aplicando-os de modo acrítico. Com efeito, excluía o negro do desenvolvimento nacional, tratava-o como problema. O problema não era o negro, argumentava, mas a sociologia assimilacionista que o transformou em problema. A questão real estaria na patologia do homem branco que, para alcançar o padrão estético europeu, precisava se diferenciar do negro, transformando-o em problema (Ramos, 1981). Um dos pioneiros nos estudos das relações raciais no Brasil, Florestan Fernandes (1920-1995), especialmente em sua obra de maturidade, vinculou a questão do racismo, assim como os desafios da população negra e da classe trabalhadora em geral, às especificidades da “revolução burguesa no Brasil” e à subordinação estrutural do capitalismo brasileiro ao imperialismo, cujos processos de modernização se expressam na extrema “concentração social, racial e regional da riqueza e da cultura” e nos “imensos bolsões de atraso educacional e de miséria” (Fernandes apud Chagas, 2011, p. 224). Dada sua natureza “compósita”[2] e associação subordinada ao capital externo, a burguesia brasileira é autocrática: acentua e concentra em suas mãos o poder político, transforma o Estado em instrumento exclusivo dos seus interesses particulares e egoístas, não admite conflitos inter-raciais e de classes e sufoca os protestos sociais, que são tomados de antemão como caso de polícia ou manifestações contra a ordem, o que significa, assim, que uma reforma racial dentro da ordem burguesa é impossível (Fernandes, 2017)[3]. Lélia Gonzalez (1935-1994), uma das maiores referências da luta antirracista no país, também combateu o mito da democracia racial, assim como o patriarcado e as opressões de gênero, presentes, inclusive, nos movimentos negros. O cientista social Clóvis Moura (1925-2003), por sua vez, colocou no centro do debate acerca da formação social brasileira, assim como no centro da crítica ao capitalismo brasileiro, o protagonismo negro, sobretudo da grande massa de trabalhadoras negras e trabalhadores negros do país. Nos últimos anos, uma das referências para o debate antirracista no Brasil tem sido a obra O que é racismo estrutural? (2018), de Sílvio de Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania. Ainda que o presente trabalho mobilize pistas de investigação deixadas por alguns expoentes do pensamento social brasileiro, seu objetivo não é analisar e polemizar as diferentes interpretações sobre racismo, tampouco a longa história de organização, resistência e lutas do povo negro no Brasil. Este artigo busca analisar as bases objetivas do racismo, em suas expressões ideológicas e práticas e, especificamente, a relação entre capitalismo, racismo, superexploração da força de trabalho e autocracia burguesa. Começa trazendo à tona o modo pelo qual o Brasil se inseriu no mundo moderno, a categoria da superexploração e a particularidade da formação social brasileira. Na sequência, aborda o processo de racialização do povo negro: a relação entre a abolição conservadora (1888) e a manutenção da estrutura subordinada do país, assim como os mecanismos ideológicos e práticos de discriminação, marginalização e subalternidade, que têm sido impostos à população afrodescendente no Brasil.


1. A particularidade da formação social brasileira.


O empreendimento colonial na América e a escravidão moderna que o sustenta são partes constitutivas da acumulação primitiva do capital (Marx, 2017)[4]. O Brasil, como de resto a região latino-americana, é inserido no mundo moderno na condição subordinada de colônia de exploração, subordinação pautada pelas relações de produção, portanto, também de suas classes sociais.

Integrado ao mercado mundial como fornecedor de metais preciosos, gêneros agrícolas e matérias-primas, o Brasil colabora para a formação e o desenvolvimento do sistema capitalista e, ao passo que se expande a grande indústria, também contribui para a mudança de eixo da acumulação – a passagem para a mais-valia relativa –, assim como para contrabalançar a tendência de queda da taxa de lucros nos países centrais (Marini, 2000)[5]. Por outro lado, uma vez que o desenvolvimento das forças produtivas no Brasil é menor que a dos países industriais, ele lhes transfere parte de sua mais-valia via comércio e sofre, portanto, uma baixa em sua taxa de lucro. Para compensar suas perdas de valor, o Brasil precisa aumentar a produção, incrementar a massa de valor intercambiado, por meio de uma maior exploração do trabalho e não pelo incremento da sua capacidade produtiva. A superexploração da força de trabalho caracteriza-se pelo pagamento dessa força abaixo do seu valor real, modalidade esta em que, como dissecado por Marx (2017), parte do fundo de salário se converte em fundo de acumulação do capital[6], o que se traduz no baixo padrão de vida da classe trabalhadora no Brasil. Ao contribuir, assim, para o desenvolvimento e a expansão do capitalismo europeu, ao coadjuvar a transição para a mais-valia relativa, cuja acumulação depende do aumento da capacidade produtiva do trabalho e não apenas da exploração do trabalhador, a economia brasileira é compelida a se apoiar na superexploração do trabalho, reproduzindo um padrão de produtividade do trabalho sempre inferior ao dos países centrais, mesmo quando avança no capitalismo industrial (Marini, 2000).

Importa observar que a agudização dos métodos de extração do trabalho excedente se impõe como tendência no Brasil numa fase em que a economia agroexportadora ainda não está baseada internamente em relações capitalistas, mas sustentada no trabalho compulsório, não obstante vinculada ao mercado mundial por meio das exportações, portanto, submetida à lógica da produção de valor (de troca), de forma que “o afã de lucro”, os efeitos do intercâmbio desigual com os países industriais implicarão numa maior exploração do negro escravizado[7].

Vale destacar que o negro escravizado é uma mercadoria, o que compreende o tempo total de sua existência: o tempo produtivo e o tempo não produtivo. A diferença básica do capitalismo em relação às demais formas de produção mercantil reside na transformação não do trabalhador, mas da sua força de trabalho em mercadoria,

[...] isto é, o tempo de sua existência utilizável para a produção, deixando ao próprio trabalhador os cuidados de responsabilizar-se pelo tempo não produtivo, do ponto de vista capitalista. É esta a razão pela qual, ao subordinar-se uma economia escravista ao mercado capitalista mundial, a agudização da exploração do escravo se acentua, já que interessa então a seu proprietário reduzir seus tempos mortos para a produção e fazer coincidir o tempo produtivo com o tempo de existência do trabalhador. (Marini, 2000, p. 128)[8]

No entanto, a intensificação do trabalho escravo, que reduz o tempo de vida produtiva do trabalhador, somente se viabiliza quando é possível repô-lo[9]. No Brasil, a interrupção do tráfico, a partir de 1850[10], fez com que as atividades produtivas, justamente aquelas destinadas à exportação, passassem a investir no trabalho assalariado, o que culminou com a Abolição[11]. Uma das formas de compensação do impacto da Abolição, especialmente nas zonas decadentes do Nordeste em que os recém-libertos, não substituídos pela mão de obra imigrante, continuaram sujeitos às mesmas arbitrariedades e violência dos seus ex-proprietários[12], foi a criação de alguns instrumentos para atar o trabalhador à terra como “a inclusão de um artigo no código civil que vinculava à pessoa as dívidas contraídas: o sistema de ‘barracão’, verdadeiro monopólio do comércio de bens de consumo exercido pelo latifundiário no interior da fazenda” (Marini, 2000, p. 129). Esse sistema, assim como o “cambão” (esquema em que o trabalhador paga o aluguel da terra trabalhando gratuitamente alguns dias para o proprietário), foi uma das modalidades da superexploração do trabalho assalariado.

A condição subordinada da economia e seu lastro escravocrata são mantidos com a formalização da independência nacional do Brasil. No último quartel do século XIX, a Abolição da Escravidão e a Proclamação da República também não expressaram um revolucionamento da ordem social brasileira. A constituição do capitalismo verdadeiro, do capital industrial, somente desponta no século XX, numa quadra histórica de acirramento das disputas imperialistas e quando já havia ocorrido uma revolução anticapitalista, o que reduzia profundamente seu arco de possibilidades, de forma que a trajetória histórica brasileira é marcada pela contraposição exacerbada entre evolução nacional/desenvolvimento econômico e progresso social, que se expressa no baixo padrão de reprodução da vida material e espiritual da maioria de sua população.

Conforme a análise de Chasin (2000) sobre o que denominou via colonial de objetivação do capitalismo brasileiro, é da lógica processual do sistema capitalista o engendramento de formações sociais desiguais e combinadas, distintas formas de ser e ir sendo capitalismo, que não negam o caráter universal da anatomia da sociedade burguesa, mas que se concretizam sob formas particulares. Dada sua origem colonial e emergência hipertardia, o capitalismo brasileiro configura-se num modo de ser marcado por conciliações entre o novo e o velho. Este foi constituído por uma burguesia que nasce e se desenvolve comprometida com a secular estrutura agrária latifundiária sustentada na superexploração da força de trabalho. A conciliação que preserva o arcaico obstaculiza ao mesmo tempo o pleno desenvolvimento do novo, uma vez que a renúncia dessa burguesia à reforma agrária, sua dependência da agroexportação, portanto, seu compromisso com a subordinação constitutiva, implicou na conservação de limites e contradições que aquela estrutura impôs à ampliação do mercado interno de consumo e ao desenvolvimento pleno da própria indústria. Limites e contradições que não serão resolvidos, mas aprofundados com a associação subordinada da burguesia com o capital externo a partir da segunda metade da década de 1950, já num contexto de acirramento do imperialismo e sob nova divisão internacional do trabalho, da qual resultou uma industrialização que, atendendo aos desígnios do capital subordinante (imperialista) e aos interesses imediatos do capital subordinado (receptor daquele), não está baseada na expansão e completude dos bens de produção e no barateamento dos bens-salários (que são os que determinam o valor da força de trabalho), mas nos chamados bens suntuários (dos quais as multinacionais automobilísticas são exemplo) que, dada a vigência da superexploração da força de trabalho, só podem ser consumidos pelos setores de média e alta renda.

O avanço de uma industrialização, que está apartada das necessidades de consumo da classe trabalhadora, e a conciliação com o velho mantêm elevado o valor da força de trabalho, sem que esta seja remunerada de acordo com seu valor real, ao mesmo tempo vão selando a superexploração da força de trabalho, que “é o coração concreto da democracia de proprietários no Brasil” e o caráter incompleto/incompletável (portanto, subordinado) do capitalismo brasileiro (Chasin, 2000, p. 173). Este foi constituído por uma burguesia que não pôde e nunca pretendeu empunhar as bandeiras de suas congêneres revolucionárias: a autonomia econômica e a formação de um Estado Democrático. Conformando-se com sua subordinação estrutural ao imperialismo, cujos ordenamentos econômicos não atendem às necessidades da classe trabalhadora, ao contrário se viabilizam à custa dela, recorrendo à conciliação pelo alto com as demais classes proprietárias e a soluções políticas conservadoras a burguesia brasileira exerce seu poder político de forma autocrática, isto é, excluindo a participação política das forças populares e rechaçando qualquer debate e questionamento de sua base econômica[13].

O caráter permanentemente autocrático do Estado brasileiro se afirmou ao longo da história republicana, quer sob a forma ditatorial/bonapartista – a ditadura das oligarquias rurais (1889-1930), a chamada política dos governadores, o Estado Novo (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964-1984) –, quer em suas expressões institucionalizadas, que sucederam aquelas, incluindo o período republicano atual (iniciado em 1985 e erroneamente chamado de democratização da vida nacional) que, sob a legalidade da constituição de 1988, sofreu o golpe parlamentar de 2016 (Vaisman; Assunção, 2016). O poder autocrático da burguesia é a forma política gerada pelo e adequada ao caráter hipertardio e subordinado do capitalismo brasileiro, que é destituído das condições de possibilidade de viabilização da democracia (Chasin, 2000). A natureza autocrática da burguesia brasileira caracteriza-se pela sistemática barragem ao progresso social, assim sendo, pela repressão a qualquer movimentação social nessa direção. A burguesia autocrática precisa, pois, repelir a participação das categorias do trabalho e racializar a classe trabalhadora, já que a integralização do conjunto das categorias sociais, inclusive étnicas, mesmo nos estreitos limites da democracia burguesa, exigiria romper com sua plataforma econômica, com a subordinação constitutiva, isto é, romper com as bases materiais do seu poder autocrático.


2. Racialização da classe trabalhadora no Brasil: da escravidão à escravidão do trabalho livre


Estruturada no latifúndio e sustentada no trabalho compulsório, a economia colonial é, na expressão caiopradiana, “uma vasta empresa colonial” (Prado, 1986), cujo dinamismo é desvinculado das necessidades internas, das demandas e carências daqueles que nela vivem e labutam (Souza; Rago, 2014). Até o fim do século XIX, a produção de riqueza, isto é, o atendimento dos capitais metropolitanos e do aparelho de luxo e fausto da classe senhorial, foi alicerçada na violência, no terror[14] e na exploração do negro escravizado até o limite da morte (Moura, 2021).

Como trouxeram à tona Moura (1981) e Nascimento (2016), ao contrário do que reza o mito da passividade/acomodação/docilidade do escravo, que grassa em parcelas da historiografia e do pensamento social brasileiro, os negros criaram um amplo leque de resistência e oposição à escravidão, “entre as quais se incluíam o suicídio, o crime, a fuga, a insurreição, a revolta”[15], assim como o banzo (Nascimento, 2016, p. 71).

Segundo Moura (2019), do ponto de vista das classes dominantes da época, era necessário que o negro fosse tomado como irracional, primitivo e inferior, em oposição ao homem branco, europeu, civilizado, e que suas diversas formas de rebeldia fossem entendidas como patológicas e/ou biológicas. Ocorre que essa ideologia racista é incorporada e produzida pelo pensamento social brasileiro e pela literatura, nos quais, com raras exceções, o negro quase nunca é tratado como agente social dinâmico de nossa história, tampouco como herói, no máximo, na condição de humilhado e ofendido[16].

As teorias racistas e eugenistas dos países centrais foram, sem dúvida, incorporadas, adaptadas e reproduzidas por nossas elites (Schwarcz, 1993). A ideia de que o Brasil seria mais civilizado quanto mais branco fosse foi sustentada por vários expoentes do pensamento social brasileiro. Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), ele próprio um “mulato”, considerava os negros “um dos fatores da nossa inferioridade como povo” (apud Nascimento, 2016, p. 82). Francisco José Oliveira Vianna (1883-1951), também preocupado com a miscigenação como fator de degeneração, considerava o mulato “incapaz de ascensão, degradado nas camadas mais baixas da sociedade”, porém existiriam “mulatos superiores, arianos pelo caráter e pela inteligência ou, pelo menos suscetíveis da arianização, capazes de colaborar com os brancos na organização e civilização do país” (2005, p. 170-171). Mesmo na obra de um dos maiores defensores da suposta convivência racial pacífica, Gilberto de Mello Freyre (1900-1987), encontramos a exaltação da cultura dos dominadores brancos: as mestiçagens etnoculturais teriam ocorrido “sem que significasse repúdio à predominância de valores culturais europeus na formação brasileira” (apud Nascimento, 2016, p. 52). O ideólogo Antonio José de Azevedo Amaral (1881-1942), um dos principais expoentes do debate teórico dos anos 1830, defensor de uma modernização conservadora, excludente/autocrática, postulava que o Estado – o verdadeiro demiurgo da construção da identidade nacional, lastreada pela industrialização e pelos princípios da eugenia – deveria “eliminar e/ou desativar condições da reprodução dos ‘degenerados seres inferiores’, como também promover a reprodução dos elementos superiores”, o que pressupunha um programa imigratório de controle racial (Rago, 2019). O processo de difusão do pensamento racista, em suas diversas expressões, incluindo o mito da democracia racial, que penetraram profundamente na subjetividade do brasileiro em geral, contou, sem dúvida, com um amplo trabalho tanto dos ideólogos das classes dominantes quanto com o silenciamento/subserviência teórica/ideológica de parcelas da ciência social brasileira, o que foi fortemente denunciado, embora por angulações teóricas distintas, por Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, entre outros. Retomando a discussão proposta por Moura (2019), ele tem razão ao afirmar que poucos cientistas sociais buscaram restituir “ao negro escravo a sua postura de agente social dinâmico, não por haver criado a riqueza comum, mas exatamente pelo contrário; por haver criado mecanismos de resistência e negação ao tipo de sociedade na qual o criador dessa riqueza era alienado de todo o produto elaborado” (p. 45-46).

Por outro lado, é fundamental destacar a base objetiva do pensamento racista. Se o negro escravizado[17] pôde aparecer no plano subjetivo, na ideologia dominante, destituído de humanidade, de sua dimensão de rebeldia, é porque na vida vivida, efetiva, na forma social escravocrata, todo o seu ser lhe foi alienado. Seu corpo, sua mente, suas capacidades, foram-lhe usurpados, reduzidos à mercadoria como um bem semovente[18], um ser coisificado, propriedade de outro. O negro escravizado é apenas meio de extração do mais-trabalho: família, ancestralidade, línguas, cultura, religiosidade, relações sociais e vínculos afetivos foram-lhe negados ou destroçados. Não pode ser amado, não pode amar. As relações reprodutivas e seus frutos são apropriados pelo senhor. Seu corpo, objeto sexual e instrumento para reprodução geracional dos proprietários: os escravos para a manutenção da casa grande, a escrava que é estuprada pelo senhor, a “cria da casa” pelo sinhozinho, a ama de leite que é forçada a enjeitar seus próprios filhos, a prostituição que é imposta à escrava[19]. Sob todos os aspectos citados, é sobre a mulher negra que recaiu toda a infâmia da escravidão, assim como do racismo, da superexploração e do patriarcado de hoje (Gonzales, 1984; Carneiro, 2011). Como já dissera Marx (2017), sob a lógica da produção do mais-valor, o negro escravizado é apenas objeto de exploração até o limite da morte. É justamente contra essa desumanização das relações sociais que o negro se rebela. A escravidão não o despojou de sua humanidade, embora não tenha podido realizá-la. Contudo, é aquela base objetiva, dada pelas relações sociais de produção, que nos informa que a ideologia racista não é uma subjetivação apartada da forma social escravocrata, mas resultado desta. Ela expressa essa forma social e é necessária à sua reprodução. Ela tem um caráter de classe, expresso tanto pelas classes proprietárias, que necessitam justificar a escravidão, quanto por vários intelectuais que, comprometidos com os interesses daquelas classes e/ou subsumidos à ideologia dominante, estão impossibilitados de elevar a crítica à escravidão à sua radicalidade.

Quando a escravidão, que fora fundamental para a acumulação primitiva e a formação do sistema capitalista, torna-se um entrave ao desenvolvimento e à expansão deste, quando essa mesma escravidão se choca com a escravidão do trabalho livre[20], o próprio capital força sua abolição. Todavia, a abolição do trabalho compulsório no Brasil, que é o último país do mundo a decretá-la, não implicou em mudanças efetivas na vida dos negros e da população não branca em geral.

O período que vai da proibição ao tráfico (1850), que onera o investimento na mão de obra escrava, até a abolição da escravidão (1888) corresponde ao processo no qual as classes proprietárias e autoridades governamentais, cônscios da inevitabilidade da substituição do trabalho escravo pelo livre, logram estabelecer as principais medidas que lhes dão o controle do processo de transição. A discussão que prevalece no seio das classes dominantes e seus porta-vozes não é a preocupação com a integração social plena da futura população negra liberta, mas o de como preservar seus interesses fundamentais. Para tanto, conquistam duas medidas: a Lei de Terras (1850)[21] e a política de imigração/branqueamento.

Segundo a legislação que vigorava até então, o Estado era proprietário das terras, que obtiveram no século XIX o status de patrimônio público, de sorte que a aquisição de terras somente poderia ocorrer por meio de doações do Estado. Tal situação por si só amedrontava os senhores fundiários e os políticos em face da possibilidade futura de uma abolição que incluísse a doação de terras aos libertos, via governo imperial (Moura, 2021). A Lei de Terras dissipou essa preocupação: autorizava o Estado a vender as terras no mercado para quem tivesse capital para adquiri-las. A nova lei, inclusive, previa a venda de terras aos “descendentes de raças civilizadas”, como forma de atrair o imigrante, e vinha com dispositivos para regularização das terras (extremar as terras do domínio público, revalidação de sesmarias, legitimação de posses e imposto territorial), que praticamente se tornaram letra morta (Carvalho, 2010)[22]. Sob a fachada de democratização das possibilidades de acesso à terra, formalizou-se, assim, a liberdade do capital, a manutenção da estrutura fundiária, a posse do latifúndio de monocultura exportadora nas mãos dos mesmos proprietários, não a emergência de condições para a realização da liberdade do povo negro.

A escravidão moderna já havia engendrado o pensamento racista que a justificava e garantia o seu funcionamento. Desde a fase colonial, os negros traficados da África para o Brasil, assim como os povos originários, são tomados como bárbaros, raças inferiores envoltas em superstição, fetichismo, animismo. São sub-humanos ou inumanos, em oposição ao homem branco, europeu, civilizado, cuja cultura e religiosidade são, estas sim, legítimas e superiores. Mediante essas concepções, foi facilmente dado um passo à ideologia do branqueamento, que norteou as políticas de imigração, assim como a redefinição dos sistemas classificatórios de hierarquização social e cultural, com base no tipo ideal branco, de seleção étnica e de barragem contra a população afrodescendente, em especial, a negra. O auge da sua elaboração e difusão corresponde exatamente ao período de transição do trabalho escravo para o livre, no qual a população afrodescendente é peremptoriamente descartada para o trabalho assalariado.

Com o agravamento da crise social, nos estertores da escravidão, os trabalhadores livres, em geral, descendentes de negros e indígenas, trabalhadores intermitentes, ou seja, a grande massa de mão de obra nacional, despojada de seus meios de subsistência[23] e, pois, marginalizada, vão se avolumando com os negros escravizados, agora em número reduzido. No entanto, é a parcela de mão de obra não branca, em especial negra, que é apresentada pela classe dominante, seus porta-vozes e grupos imigrantistas, como congenitamente inferior, animalesca, ociosa, desordeira, perigosa e incapaz para o trabalho livre. A crise social não é, portanto, atribuída à subsunção econômica, social e política do país, à existência e persistência da escravidão, mas ao povoamento do seu território de raças inferiores, incapazes de se integrar socialmente e inaptas para atender às necessidades de desenvolvimento do país. Enquanto o homem branco, europeu, é seu oposto: superior, disciplinado, capaz de dominar técnicas avançadas de produção, disposto à integração social. Como raça superior, progressivamente eliminaria a “mancha negra”, branquearia a nação, pavimentaria, assim, o caminho da civilização brasileira. Essa ideologia seguiu sustentando, nas décadas seguintes à Abolição, propostas de esterilização e controle de natalidade dos negros. A busca “da redenção de Cam” de nossas elites continua atualmente por meio do genocídio cotidiano de jovens negros. Durante séculos de escravidão, entretanto, foi a mão de obra negra que alicerçou a riqueza do país. Além de trabalhar nos eitos, os negros eram eficientes no setor manufatureiro e artesanal, os mais habilidosos na metalurgia, cujas técnicas foram trazidas da África e aperfeiçoadas, detinham, assim, diversas capacidades que, inclusive, rendiam dividendos aos seus proprietários por serviços prestados a outros, especialmente no meio urbano. São os casos de “escravos de ganho”, que são forçados pelo seu proprietário a trabalhar na rua, cujos rendimentos eram apropriados pelo seu senhor: escravas prostitutas de ganho, barbeiros, médicos, vendedores ambulantes, entre outros (Moura, 2019).

O processo de substituição da mão de obra nacional pelo trabalhador branco imigrante, que começa com o fim do tráfico, em 1850, e se amplia a partir do movimento abolicionista, não foi determinado pela suposta inferioridade do negro e superioridade do branco, tampouco por falta de mão de obra nacional. O contingente de trabalhadores desocupados era superior ao número de imigrantes que aportaram no Brasil (1851-1900)[24], portanto, não havia crise de mão de obra que justificasse a política de imigração. Esta vingou por força da pressão e articulação política dos grupos e das empresas de imigração, que obtiveram volumosos lucros com o segundo tráfico, e dos fazendeiros da zona cafeeira, que substituíram a compra onerosa de negros escravizados de outras regiões do país pelo pagamento de baixos salários à mão de obra branca importada. Houve, assim, uma troca da mão de obra negra pela força de trabalho branca imigrante[25].

Se para a grande massa de trabalhadores não brancos faltavam planos de integração social, projetos de inserção na estrutura produtiva e ocupacional, para os trabalhadores brancos imigrantes, foram direcionados investimentos privados e públicos. Todavia, sem ignorarmos as diversas privações e formas de opressão a que foram submetidos os trabalhadores imigrantes no Brasil, o fato é que enquanto a população não branca, nacional, foi alijada do acesso à terra e das demais condições de vida e integração social, os trabalhadores brancos imigrantes tiveram a oportunidade de acesso à propriedade e foram integrados socialmente. Na última década do século XIX, desfrutavam de uma posição social melhor do que a dos negros brasileiros, constituindo-se já no início do século XX numa camada de pequenos proprietários, quer por meio de poupança individual, quer com apoio institucional.

A Lei de Terras que impede o acesso da população negra liberta à propriedade é a que preserva nossa secular estrutura fundiária: o latifúndio baseado na produção de gêneros voltada para o capital internacional, não para o atendimento das carências da grande massa – estrutura essa, vale lembrar, exacerbada com a produção de commodities do neocolonialismo atual. As classes proprietárias permanecem voltadas para seus interesses imediatos, centrados na estrutura agroexportadora, enquanto o capital externo, sobretudo inglês, já exerce seu domínio não apenas por meio do comércio mundial, mas pela penetração nos ramos produtivo, comercial e financeiro do país (Prado, 1986). A abolição da escravidão – a transição para o modo de produção capitalista – ocorre, portanto, sob a manutenção da subordinação do país, sob a reiteração das condições socioeconômicas geradoras da exclusão e marginalização das forças populares, majoritariamente negra. Esta, que fora usurpada de suas condições de existência e da propriedade sobre si mesma, foi libertada formalmente do jugo dos proprietários e do Estado e jogada no mercado simplesmente como trabalhadores livres, somando-se à massa de libertos que já se encontrava nessa situação, isto é, despojada de meios de produção[26]. A política de imigração e os mecanismos de discriminação contra o negro cerceiam, a favor da mão de obra branca, o acesso do proletariado negro ao mercado de trabalho ou o confinam em postos subalternos, de forma que a classe trabalhadora negra é duplamente usurpada: dos meios de produção e da única possibilidade de sobrevivência: a venda de sua força de trabalho. Entre a situação de escravidão e a escravidão da liberdade de vender a força de trabalho, as mudanças foram e continuam sendo mínimas.

Segundo Moura (2019), os mecanismos ideológicos e práticos de discriminação, controle, repressão e barragem, criados contra os negros escravizados, serão redefinidos contra os negros, que os mantêm, até hoje, “em espaços sociais restritos e controláveis pelas classes dominantes” (p. 131). A estrutura produtiva e comercial urbana é ocupada majoritariamente por trabalhadores imigrantes[27]. A população não branca e negra, em especial, não é incorporada ao proletariado nascente, ela vai “compor a grande franja de marginalizados exigida pelo modelo do capitalismo dependente[28] que substituiu o escravismo” (p. 94), uma massa que será “reserva de segunda categoria do exército industrial” (Moura, 2021, p. 148) – a última a ser admitida e a primeira a ser demitida.

A extrema exclusão socioeconômica dos libertos exigiu o aumento da repressão policial. Foram baixados decretos, leis, regulamentos e normas para garantir o controle, punir e disciplinar a grande massa negra marginalizada. Além do cerceamento da locomoção dos negros desempregados, foram restabelecidas antigas “restrições às festividades características da população negra, como batuques, cateretês, congos e outras. Multiplicaram-se as instituições destinadas a confinar loucos, criminosos, menores abandonados e mendigos” (Costa, 2008, p. 138). Como destacado por Abdias do Nascimento (2016), as culturas africanas que resistiram, resistiram na clandestinidade, “foi na conquista do lugar, dentro do contexto brasileiro, de uma cultura perseguida de um povo marginalizado” (p. 120).

A República (a emancipação da classe dominante branca do jugo da Coroa[29]), proclamada logo após a Abolição, que removera as bases do Império, volta-se imediatamente contra a população negra marginalizada: cria o Código Penal (1890) que reprime os capoeiristas e torna mais rígida a punição ao crime de vadiagem; destrói, em 1893, o cortiço carioca Cabeça de Porco, que resistira por décadas, entre outras ações repressivas que marcam as políticas urbanistas/higienistas de expulsão territorial de negros e pobres para os morros e as favelas, que perduram até hoje (Rolnik, 1989; Maricato, 2013).

A partir do desenvolvimento capitalista, com ou sem o amparo da lei, o negro será socialmente excluído, visto em todas as suas formas de existência como perigo social, identificado ao ócio, à malandragem, à periculosidade, entre outros estereótipos que penetraram profundamente na consciência do brasileiro em geral. Será culpado por sua miséria e marginalização e, com efeito, punido[30].

De acordo com Moura (2019), como não houve mudanças radicais na transição da escravidão para as relações de produção capitalistas, a ideologia racista foi mantida, reformulada e difundida, o que permitiu à classe dominante “justificar o peneiramento econômico-social, racial e cultural” imposto ao negro (p. 39). A difusão da ideologia da miscigenação benevolente e da democracia racial (pensamento este, vale dizer, da mesma natureza de outras concepções burguesas) atua para escamotear uma realidade social profundamente desigual, antagônica e discriminatória, e legitimar o racismo na sociedade capitalista. Dessa forma, se existe democracia racial e os negros são socialmente marginalizados é porque eles não souberam acompanhar o ritmo do progresso e aproveitar as oportunidades sociais, são culpados, portanto, por sua inferioridade econômica, social e cultural[31]. A subalternidade deve-se, assim, à incapacidade das camadas negras e não às barreiras de peneiramento a que foram submetidas. No entanto, os mecanismos de peneiramento, de seletividade racial, determinam “o imobilismo social” do negro (Moura, 2019).

O preconceito de cor e a discriminação restringem as possibilidades sociais e as expectativas de vida do negro, o que pode ser constatado no comportamento racista rotineiro de grandes parcelas da população branca, nas escolhas afetivas, nas relações de amizade e familiares, nos processos educacionais, no mercado de trabalho (sobretudo para a trabalhadora negra[32], que ocupa os postos mais subalternos, recebe os salários mais baixos e sofre as maiores taxas de desemprego do país[33]), assim como na atuação das forças policiais (as mais letais do mundo), que vitimam, na esmagadora maioria, homens negros, especialmente jovens[34].

Esse processo histórico e rotineiro de discriminação, marginalização e violência tem, sem dúvida, implicações profundamente complexas na consciência, no comportamento e na personalidade do negro. Como forma de escapar da discriminação, segmentos não brancos tendem a fugir de sua realidade, produzindo uma autoimagem distorcida, assimilando a moralidade burguesa, mascarando-se justamente com os valores que foram criados para discriminá-los (Moura, 2019; Fanon, 2020)[35]. O racismo, no entanto, não é uma via de mão única, ele não só medeia as relações sociais como é produto da prática social que produz o mundo e os indivíduos que atuam nesse mundo. A subjetividade do branco/do racista não pode escapar dos efeitos do racismo (Faustino, 2019), posto que é constitutiva dessas relações historicamente construídas. A inferiorização/racialização da população afrodescendente, que é operada ideológica e socialmente, objetiva-se na totalidade da vida social concreta. O pensamento e a prática social racista, que expressam a incapacidade de reconhecimento do negro como ser humano e, vale dizer, outras formas de alienação/estranhamento/opressões próprias da sociabilidade capitalista obstam o livre desenvolvimento da personalidade e autoafirmação humana de todos os indivíduos.

Ao menos duas questões ainda se impõem: por que o racismo se faz socialmente necessário? Qual é a função desempenhada pela racialização da classe trabalhadora na acumulação do capitalismo brasileiro?


3. Racialização, superexploração da classe trabalhadora e autocracia burguesa

Moura (2019) jamais desvinculou o problema da discriminação e marginalização do povo negro, sobretudo da grande massa negra proletária e pobre, que reconhece como “o centro nevrálgico do dilema racial no Brasil”[36] (p. 31), da forma social capitalista. Embora não tenha se detido no exame da categoria da superexploração da força de trabalho e como esta se coloca como única alternativa ao capitalismo brasileiro, reconheceu a funcionalidade da racialização do negro na relação capital e trabalho no Brasil.

O Negro foi obrigado a disputar a sua sobrevivência social, cultural e mesmo biológica em uma sociedade secularmente racista, na qual as técnicas de seleção profissional, cultural, política e étnica são feitas para que ele permaneça imobilizado nas camadas mais oprimidas, exploradas e subalternizadas. Podemos dizer que os problemas de raça e classe se imbricam nesse processo de competição do negro, pois o interesse das classes dominantes é vê-lo marginalizado para baixar os salários dos trabalhadores no seu conjunto. (Moura, 2021, p. 215)

Moura (2019) também reconheceu que o trabalhador negro “tem especificidades, particularidades e um nível de complexidade muito mais profundo do que o trabalhador branco”, no entanto, “está a ele ligado porque não se poderá resolver [...] o problema do racismo brasileiro, sem atentarmos para o fato de que esse racismo [...] tem causas econômicas, sociais, históricas e ideológicas que alimentam seu dinamismo” (p. 32). Não obstante, para aprofundar o exame das funções desempenhadas pelos mecanismos de seleção étnica e de discriminação contra o negro na acumulação do capital, é fundamental ter em conta a particularidade do capitalismo brasileiro que, conforme visto anteriormente, sustenta-se no poder autocrático do Estado e na superexploração da força de trabalho.

Forjada pelo sistema capitalista e pela escravidão moderna, a racialização da classe trabalhadora é constitutiva da formação social brasileira e do capitalismo de via colonial, que emerge já contando com um exército de mão de obra majoritariamente composto de não brancos, de uma grande massa de trabalhadores excluída da economia agroexportadora, cujo esgotamento cria um excedente de mão de obra que realimentará a superexploração da força de trabalho no capitalismo industrial, que deu seus primeiros passos na década de 1930. O avanço do capitalismo industrial brasileiro, conforme mencionado, somente ocorreu a partir de meados dos anos 1950 por meio de sua associação subordinada ao imperialismo. No entanto, sua expansão, sua modernização e seu aumento de produtividade reiteraram a superexploração da força de trabalho. Ou seja, o progresso técnico permitiu ao capitalista “intensificar o ritmo de trabalho do operário, elevar a sua produtividade e, simultaneamente, manter a tendência a remunerá-lo em proporção inferior ao seu valor real” (Marini, 2000, p. 147).

Marini não se debruçou sobre o problema da racialização da classe trabalhadora, mas sua análise da superexploração da força de trabalho é uma chave importante para a discussão das bases materiais do racismo. Segundo esse cientista social, a introdução de inovações tecnológicas do exterior numa economia subordinada, já baseada na superexploração da força de trabalho, resulta na ampliação do exército industrial de reserva, que é um dos elementos que viabiliza a superexploração da força de trabalho, e numa grande heterogeneidade tecnológica, que leva os setores monopólicos, que produzem a custos de produção mais baixo, a se apropriarem de uma mais-valia extraordinária, e os setores de baixa composição orgânica a recorrerem a superexploração da força de trabalho para compensar a perda de parte de sua mais-valia para aqueles setores. Entretanto, uma vez que os setores produtivos com baixa composição orgânica reúnem a maior parte da força de trabalho do país, a redução salarial tende a se estender, em termos relativos, aos setores monopólicos, inclusive, porque nestes “também há uma força de trabalho empregada cujo nível de remuneração obedece, em termos gerais, ao nível médio fixado em empresas que trabalham em condições médias” (1979a, p. 8). De forma que:

[...] a superexploração se reflete em uma escala salarial cujo nível médio está abaixo do valor da força de trabalho, o que implica que mesmo aquelas camadas de trabalhadores que conseguem sua remuneração acima do valor médio da força de trabalho (trabalhadores qualificados, técnicos etc.) veem seu salário constantemente empurrado para baixo [...] pelo papel regulador que o salário médio desempenha em relação à escala salarial como um todo. (Marini, 1979a, p. 8-11)

Afora outros problemas que fogem ao escopo do presente texto[37], vale destacar o fundamental dos lineamentos de Marini: a superexploração da força de trabalho diz respeito ao conjunto da classe trabalhadora no Brasil, não é uma forma de extração do trabalho excedente específica de uma determinada categoria ou grupos de trabalhadoras e trabalhadores.

A partir desses lineamentos, é possível ver que a parcela racializada do proletariado, discriminada e marginalizada no mercado, é funcional para viabilizar e reproduzir a superexploração da força de trabalho, quer por sua expulsão para o exército de desempregados que, por sua vez, como afirma Marini (1979b), “viabiliza a pressão do capital sobre as condições de trabalho e remuneração dos trabalhadores” (p.37)[38], quer por sua baixa remuneração, que incide sobre o salário médio no mercado de trabalho. A racialização do proletariado negro, que é a maioria da força de trabalho no Brasil, os desempregados e subempregados criam o que Marx (2017) já apontava: as condições que permitem ao capital impor à classe trabalhadora o grau de exploração que lhe convém para maximizar a massa de trabalho não pago ao menor custo possível. Pouco importa para o capital que sua expansão e regime de exploração resultem no definhamento da classe trabalhadora já que ele tem à sua disposição uma massa de trabalhadores, sempre crescente, obrigada a se candidatar à morte). Situação esta que só pode ser contraditada pela organização e ofensiva da própria classe trabalhadora.

O racismo atua, sem dúvida, como divisor da classe trabalhadora, ao lado de outras formas de alienação/estranhamento e demais condições e formas de opressão (inerentes ao capital[39]), que o reforçam e são por ele reforçadas, colocando os de pele branca e os de pele negra em esferas opostas, supostamente irreconciliáveis, enquanto o antagonismo entre capital e trabalho é obnubilado. Tal situação, no entanto, não elimina nem o fato de que a superexploração da força de trabalho é exercida sobre o conjunto da classe trabalhadora, nem a obviedade de que a parte mais oprimida do proletariado é a trabalhadora negra. A superexploração da força de trabalho expressa, assim, umas das bases materiais do racismo. A classe trabalhadora negra tem, contudo, demandas e desafios específicos. Como insistiam Fernandes, Moura e Gonzalez, ao trazerem para o centro da luta antirracista no Brasil a realidade da grande massa negra proletária, a situação do negro vincula-se à dinâmica da luta de classes, mas com particularidades muito mais complexas que as do trabalhador branco[40], sobretudo a trabalhadora negra, sobre a qual recaem as opressões racial, patriarcal e de classe. O racismo é, pois, uma das formas que permite ao capitalismo brasileiro exercer plenamente seu domínio sobre o conjunto da classe trabalhadora[41].

Os diversos esquemas classificatórios e de peneiramento racial, perpetuados na sociedade brasileira, que inferiorizam e discriminam o negro, conforme o padrão ideológico, cultural e estético da classe dominante branca, não são mais codificados. Até 1950, os anúncios de emprego tinham a explícita advertência de não se aceitar “pessoas de cor”, mas mesmo a partir da lei Afonso Arinos (1951), que proibiu a discriminação racial, os anúncios passaram a usar o eufemismo “pessoas com boa aparência”. Os esquemas discriminatórios não têm o amparo da lei[42], como teve a segregação racial pelas Leis Jim Crow nos Estados Unidos (1877-1965), mas são igualmente objetivos, são institucionalizados pela vida, pela prática social, que produz a sociedade e os seres que atuam nela, produzindo os mesmos efeitos: barram o negro, limitam seus espaços e suas relações sociais, levam a adoecimentos de toda sorte[43], à violência racial e ao genocídio negro. O racismo se objetiva, assim, na totalidade das relações sociais da realidade brasileira, na reprodução da vida, no trabalho, nas relações familiares, nos vínculos afetivos e nas relações sexuais, nos processos educacionais, institucionais e políticos, assim como na linguagem. No entanto, qual é a fonte que o retroalimenta, que o faz necessário? Esta não é senão uma forma social (capitalista), cuja particularidade (capitalismo de via colonial) exacerba e torna mais violenta as contradições inerentes ao capital, uma vez que se funda sob a exclusão das massas populares, sustenta sua acumulação na superexploração da força de trabalho, para a qual é funcional a racialização da classe trabalhadora. O capitalismo brasileiro de via colonial caracteriza-se por uma forma de acumulação viabilizada por meio da superexploração da força de trabalho e por submeter as parcelas mais excluídas e negligenciadas pelas suas relações de produção a formas de trabalho análogas à escravidão, isto é, um capital que se alimenta do mínimo indispensável à sobrevivência física dos trabalhadores.

O capitalismo brasileiro, que se sustenta na exclusão das forças populares, na racialização e na superexploração da classe trabalhadora, não pode se reproduzir sem sua outra face, o Estado autocrático, quer em sua expressão ditatorial/bonapartista, quer sob o Estado de Direito, das liberdades políticas e institucionais. O Estado de Direito pode, inclusive, aperfeiçoar os dispositivos autocráticos, que são necessários para rechaçar qualquer ameaça real ou potencial das forças do trabalho[44]. O desenvolvimento do capitalismo brasileiro não somente não traz consigo a democracia como necessita barrá-la, e não apenas barrar qualquer movimentação social que vise suplantar as minorias autocráticas que consubstanciam o historicamente velho (a subordinação estrutural, a contraposição entre desenvolvimento e progresso social...), como precisa eliminar direitos conquistados pela classe trabalhadora, como as reformas trabalhista e previdenciária, que intensificam a superexploração do trabalho e a oficializa nos dispositivos legais, enquanto o Estado transfere a riqueza para o capital monopólico/financeiro por meio da dívida pública. A discriminação e a violência raciais são uma das maiores expressões da autocracia burguesa, que mantém em “espaços restritos e controláveis” os setores populares, o povo negro, que ao longo de toda a história brasileira foi silenciado a ferro e fogo. A população afrodescendente é a maior vítima da repressão e tortura desde a fase colonial, mas foram poucos os que se lembraram dela ao denunciarem os horrores da ditadura militar (1964-1984).

Engendrado pela escravidão moderna e reformulado nos momentos seguintes da vida nacional, o racismo é constitutivo do desenvolvimento do sistema capitalista, da formação social brasileira e do capitalismo de via colonial. O racismo não é apenas uma herança do passado colonial e escravocrata, ele é funcional ao capital (viabiliza a superexploração do conjunto da classe trabalhadora) e é expressão do caráter autocrático da burguesia brasileira que, conforme visto, é incapaz de assumir a universalidade da sociedade brasileira, de integrar o conjunto de suas categorias sociais em sua diversidade étnica e cultural, mesmo nos estreitos limites da democracia burguesa.

O racismo não é uma subjetivação ou prática social apartada do sistema capitalista, mas produto dessa relação social de produção. O racismo não é apenas uma ideologia ou um pensamento, tampouco um fenômeno autossustentado, ele tem bases objetivas, dadas pela natureza da forma social que o engendra. Como uma dada ideologia ou pensamento, o racismo orienta e medeia ações humanas concretas, quer individuais, quer de classes ou institucionais, posto que nenhuma ação social é destituída de pensamento, de prévia ideação, mas emerge e opera em determinadas condições sócio-históricas, de modo que, em suas várias expressões, ideológicas e práticas, não subsistiria sem uma profunda afinidade com a lógica do capital e, em particular, com o modo de ser e ir sendo do capitalismo brasileiro.


Considerações finais

A partir da promulgação da chamada constituição cidadã, em 1988, houve, sem dúvida, importantes avanços no campo do Estado de Direito. Além do Sistema Único de Saúde (SUS) e outras conquistas, antigas reivindicações dos movimentos e lideranças dos povos originários e afrodescendentes foram incorporadas nas legislações e políticas de Estado[45] – à custa do suor e sangue de seus protagonistas, não por concessões beneficentes das classes dominantes. Durante o boom internacional das commodities, houve melhorias na base da pirâmide social por meio de programas sociais de renda (que sequer se tornaram políticas de Estado) e de políticas afirmativas de recorte social e racial, mas pesquisas empíricas atestam que a concentração de riqueza[46], as desigualdades sociais[47] e étnico-raciais, a violência racial e de gênero recrudesceram no país, a par da criminalização da classe trabalhadora, de suas lideranças e dos movimentos sociais, a exemplo da repressão às Jornadas de Junho de 2013 (Miguel, 2023) e da violência cotidiana no campo[48] que, por sua vez, divide com a questão da mobilidade urbana o problema da propriedade territorial no país. Os povos indígenas e quilombolas obtiveram conquistas jurídicas para acesso a seus territórios, mas a maioria ainda não recebeu a titulação de suas terras[49]. A despeito do aumento do número de negros com instrução formal, de sua presença significativa nas instituições de ensino superior, a seletividade racial continua impondo aos trabalhadores negros, sobretudo, às trabalhadoras negras, o desemprego, as ocupações mais subalternas e os salários mais baixos no mercado de trabalho[50].

Os mecanismos de controle e repressão de outrora, criados pelas classes dominantes contra a rebeldia dos negros escravizados, são traduzidos hoje com o encarceramento em massa de negros e pobres, cuja maioria sequer foi julgada. Quase um milhão de seres humanos vivem em presídios que lembram “navios negreiros” (Alves, 2017). São traduzidos por um Estado militarizado e miliciano[51], responsável pela continuidade do genocídio negro, sobretudo de jovens, por um Estado que facilita a expulsão territorial de negros e pobres para as periferias das grandes metrópoles. A profilaxia das classes dominantes, das autoridades e lideranças políticas, inclusive de “esquerda”, restringe-se, porém, à segurança pública, à modernização das polícias e à legislação antiterrorista. São instrumentos eficazes, sem dúvida, para defesa da propriedade privada e para o controle social, com o que se naturalizam os territórios da favela e da prisão como lugares demarcados para os pretos e pobres, o que está em perfeita sintonia com o estreitamento congênito do horizonte de classe da burguesia brasileira, cujo caráter incompleto/incompletável e subordinado consolidou-se, a partir do fim dos anos 1980, no bojo da mundialização do capital e da atual divisão internacional do trabalho, comandadas pelo capital monopólico/financeiro (Sobrinho, 2019), de forma que quanto mais subordinada, quanto mais estreito seu espaço de atuação, mais mesquinha e truculenta[52]. As classes dominantes no Brasil (que compreendem o que restou da chamada burguesia nacional e o capital externo) e suas elites políticas identificam modernidade com o neocolonialismo, modernização com privatização da riqueza/dos serviços públicos, com avanço da fronteira agrícola e mineral, com depredação de seu patrimônio ambiental (que dizima os povos originários e condena a sobrevivência do planeta[53]) e, assim, tornam inócuas as conquistas históricas no campo do direito e da representatividade política e, ainda, pressionam por novos dispositivos legais de proscrição dos povos originários, a exemplo do chamado marco temporal para demarcação de terras[54]. A complexidade do racismo no Brasil reside, assim, tanto na profundidade e diversidade de formas de subalternização do povo negro e seus respectivos padecimentos físicos e psíquicos, quanto no fato de ele dividir com os demais problemas sociais do país as mesmas raízes.

A discriminação e a violência raciais devem ser combatidas por dispositivos jurídicos e institucionais, mas desvincular o racismo da forma de dominação burguesa no Brasil, do capital incompleto e subordinado, como se o capital e suas personae não tivessem nenhuma responsabilidade, ou reduzi-lo a uma questão de representatividade política, a uma demanda identitária (que pouco ou nada tem a ver com identidade negra, com as demandas, a realidade e lutas da grande massa negra) a ser atendida no interior da mesma forma social que o engendra e o faz necessário, é contribuir para um ambiente já bastante confortável para o capital.

Os avanços no campo do direito e da representatividade política, embora significativos e necessários, não suplantam as bases objetivas do racismo e as condições socioeconômicas geradoras das desigualdades sociais, não por deficiências jurídicas e institucionais ou porque essas, dirão alguns, não avançaram o suficiente, mas porque, como dizia Marx (2010), “a impotência é a lei natural da administração” (p. 60). O Estado, mesmo o mais democrático, “deixa em pé os pilares do edifício” (Marx, 1977, p. 10), mantém suas bases de sustentação, a divisão social do trabalho e a propriedade privada, de sorte que a esfera do direito, a esfera administrativa, deve limitar-se a uma “atividade formal e negativa”, posto que “lá onde começa a vida civil e o seu trabalho, cessa o seu poder” (Marx, 2010, p. 60), isto é, onde exatamente se encontram as raízes da penúria social, do racismo e do genocídio[55]. Contudo, se o Estado moderno “tem a violência como seu conteúdo mais central, uma vez que é a outra face do capital” (Cotrim, 2016, p. 10), os níveis de violência não são idênticos a todas as formas de Estado. Em países como o Brasil, marcado pela reiterada oposição entre desenvolvimento econômico e progresso social, a extrema exclusão socioeconômica e racial, que é a base de sustentação da acumulação capitalista no país, exige o aumento da repressão.

O racismo é um dos problemas sociais mais graves e complexos do mundo contemporâneo e, em particular, do Brasil. Não é de modo algum fortuita a relação entre a intensificação da crise estrutural do capital/o avanço do neoliberalismo, a partir dos anos 1970, e o aumento da violência estatal, da violência de gênero e da chamada precarização do trabalho (Cotrim, 2022), inclusive nos países centrais. Todavia, se o Brasil somente é coetâneo com o primeiro mundo nessa quadra histórica de degradação social, é porque sua ordem social foi fundada e se desenvolveu até hoje sob a subsunção externa, a violência racial e a exclusão material e política das massas populares que, por sua vez, sustentaram o padrão de vida dos países centrais.


Notas


[1] Maria Goreti Juvencio Sobrinho é doutora em Ciências Sociais (PUC/SP) e mestre em Ciência Política (Unicamp). Atualmente é pesquisadora do Núcleo de Estudos de História: Trabalho, Ideologia e Poder (NEHTIPO) PUC- SP. E-mail: mgjsobrinho@gmail.com.

[2] A burguesia brasileira “possui uma costela nacional e outra internacional” (Fernandes, 1985, p. 66).

[3] “[...] a revolução dentro da ordem é impossível para eliminar as iniquidades econômicas, educacionais, culturais, políticas etc., que afetam os estratos negros e mestiços da população. Mesmo quando o negro não são sabe o que é socialismo, a sua luta por liberdade eigualdade possui uma significação socialista” (Fernandes, 2017, p. 42).

[4] Em 1846, Marx, ao falar da escravidão dos negros no Suriname, no Brasil e nas regiões sul da América do Norte, demarcou a conexão entre escravidão, colonialismo e capitalismo: “A escravidão direta é tão crucial para girar as engrenagens do industrialismo atual quanto a maquinaria, o crédito etc. Sem a escravidão não haveria algodão, sem algodão não haveria indústria moderna. Foi a escravidão que deu valor às colônias, foram as colônias que criaram o comércio mundial, e o comércio mundial é condição necessária para a indústria em larga escala. [...] A escravidão é, portanto, uma categoria econômica de importância fundamental” (apud Anderson, 2019, p. 143).

[5] O Brasil colabora para a produção de mais-valia relativa já que incrementa a oferta mundial de alimentos (bens-salário) que, por sua vez, reduz o valor real da força de trabalho nos países industriais, o que faz com que nestes o incremento da produtividade se expresse na elevação da cota de mais-valia. Ajuda a contrabalançar a tendência à queda da taxa de lucro nos países industriais, que resulta da elevação da composição orgânica do capital, já que aumenta a oferta mundial de bens primários, que reduzem o valor do capital variável e do capital constante (Marini, 2000).

[6] Segundo Marini (2000), a superexploração da força de trabalho ocorre por meio de três mecanismos, que podem ser utilizados de forma isolada ou combinada: ampliação da jornada de trabalho, aumento da intensidade do trabalho e da redução salarial. Adverte que “o conceito de superexploração não é idêntico ao de mais-valia absoluta, já que inclui também uma modalidade de produção de mais-valia relativa – a que corresponde ao aumento de intensidade do trabalho”. A mais-valia absoluta não significa, necessariamente, que a força de trabalho seja remunerada abaixo do seu valor real. Para que ocorra a superexploração da força de trabalho, mediante o prolongamento da jornada de trabalho (ampliação do trabalho excedente), é necessário que a força de trabalho seja remunerada abaixo do seu valor real, isto é, que não receba uma remuneração equivalente ao seu desgaste. Nesse sentido, vale lembrar que, segundo Marx, “toda variação na magnitude, extensiva ou intensiva, do trabalho afeta [...] o valor da força de trabalho, na medida em que acelera seu desgaste” (apud Marini, 2000, p. 126).

[7] “Isso explica por que o trabalho dos negros nos estados sulistas da União Americana conservou certo caráter patriarcal, enquanto a produção ainda se voltava sobretudo às necessidades imediatas. Mas à medida que a exportação de algodão tornou-se o interesse vital daqueles estados, o sobretrabalho dos negros, e, por vezes, o consumo de suas vidas em sete anos de trabalho, converteu-se em fator de um sistema calculado e calculista. O objetivo já não era extrair deles uma certa quantidade de produtos úteis. O que importava, agora, era a produção do próprio mais-valor” (Marx, 2017, p. 310).

[8] “No caso do escravo, o salário-mínimo aparece como uma magnitude constante, independente de seu trabalho. No caso do trabalhador livre este valor de sua capacidade de trabalho e o salário médio que corresponde ao mesmo não estão contidos dentro desses limites predestinados, independentes de seu próprio trabalho, determinados por suas necessidades puramente físicas. A média aqui é mais ou menos constante para a classe, como o valor de todas as mercadorias, mas não existe nesta realidade imediata para o operário individual cujo salário pode estar por cima ou por baixo desse mínimo” (Marx, Capítulo VI (Inédito), apud Marini, 2000, p. 127). Discorrendo sobre as diferenças entre trabalho escravo e trabalho assalariado, Marini concluiu que o trabalho escravo é incompatível com a superexploração da força de trabalho: “salvo na hipótese de que a oferta de trabalho seja totalmente elástica (o que não se verifica na América Latina, a partir da segunda metade do século XIX), o regime de trabalho escravo constitui um obstáculo ao rebaixamento indiscriminado da remuneração do trabalhador [...]. Não acontece o mesmo com o trabalho assalariado e, em menor medida, com o trabalho servil” (Marini, 2000, p. 127).

[9] Como afirma Marx (2017), “o senhor de escravos compra seu trabalhador como compra seu cavalo. Se perde seu escravo, ele perde um capital, que tem de ser reposto por meio de um novo gasto no mercado de escravos. [...] Preocupações econômicas que poderiam oferecer uma espécie de segurança para o tratamento humano do escravo [...] transformaram-se, após a introdução do tráfico escravista, em razões para a mais extrema deterioração do escravo. [...] Por isso, é uma máxima da economia escravista, em países importadores de escravos, que a economia mais eficaz está em extrair do gado humano [...] a maior quantidade possível de trabalho no menor tempo possível” (p. 338-340).

[10] Lei Eusébio de Queiróz, n. 581/1850.

[11] Lei Imperial, n. 3353/1888.

[12] Essa situação é retratada no conto “Bons dias” de Machado de Assis.

[13] O que ocorre por meio do politicismo. A respeito, ver Chasin, 2000.

[14] A escravidão não teria subsistido sem o terror cotidiano, por meio de diferentes formas e instrumentos: “o tronco, a gargalheira, o anjinho, o açoite, a prostituição forçada, a desarticulação familiar, a cristianização compulsória, a etiqueta escrava em relação ao senhor, o homossexualismo imposto, a tortura nas suas diversas modalidades” (Moura, 2021, p. 42). Encontramos a figuração de alguns dos horrores e atrocidades perpetrados contra os negros escravizados nos desenhos do italiano Angelo Agostini, em atividade no Brasil na segunda metade do século XIX (Maringoni, 2011).

[15] A República dos Palmares, “surpreendentemente progressista para a época”, tinha como base uma estrutura auto-organizacional, da produção e de seus resultados, voltada para as necessidades dos próprios quilombolas (Moura, C., 2021, p. 55-57).

[16] Clóvis Moura (2019) e Abdias do Nascimento (2016) consideram Machado de Assis um exemplo de intelectual que se embranqueceu, que teria privilegiado em sua obra personagens do universo da classe branca dominante e se subsumido ao padrão linguístico/estilístico metropolitano. Entretanto, a nosso ver, a obra machadiana é marcada por uma crítica contundente à escravidão, na qual a rebeldia do ser humano escravizado também é retratada. No conto Mariana, por exemplo, os traços mais viscerais da classe escravocrata são tipificados no pensamento e nas ações do personagem Coutinho, o objeto do amor da personagem Mariana, a escrava, a “mulata”, “a cria da casa” que, impossibilitada de realizar sua humanidade, comete o suicídio. O suicídio aqui é o instrumento de rebeldia de Mariana, posto que a uma vida desumana, à impossibilidade de realizar seu amor por Coutinho, escolheu a morte. A narrativa machadiana retrata a humanidade de Mariana, em nítida superioridade ao padrão humano dos demais personagens daquele universo societário, assim como o patriarcado, no qual a mulher (incluindo a que pertence à classe dominante, retratada pela personagem Amélia, a noiva de Coutinho) é objeto do prazer, da vaidade, da satisfação e da felicidade do homem. A posição de Coutinho em relação à mulher, o modo como pensa e trata a escrava, seu interesse e sua aversão ao amor de Mariana expressam tanto o racismo e a superioridade de classe como a opressão de gênero, o que nos remete à complexidade do racismo, que quase nunca se objetiva desvinculado de outras formas de alienação/estranhamento/opressões. Sobre o realismo machadiano, ver Cotrim, 2020.

[17] Marx (2020), em um de seus primeiros trabalhos de crítica à economia política, explicitando os vários limites dessa ciência, que naturaliza a sociedade burguesa, que é incapaz de apreender o capital fundamentalmente como relação social, como uma determinada forma de ser dos homens, historicamente efetivada, pergunta: “O que é o negro?”, em seguida, responde: “Um homem da raça negra. Uma explicação vale a outra. Um negro é um negro. Só se torna um escravo em determinadas condições”. Igualmente sucede com as demais coisas que se tornam capital: “Uma máquina de fiar algodão é uma máquina de fiar algodão. Só em determinadas condições se torna capital. Excluída dessas condições, ela é tão pouco capital como o ouro é em si e por si dinheiro ou o açúcar é o preço do açúcar” (p. 521).

[18] Em termos jurídicos, o negro escravizado era tratado como um animal, um bem semovente, sem obrigações jurídicas, era objeto do direito do indivíduo que o possuía, não sujeito de direito. Entretanto, em face da rebeldia do negro escravizado, real e/ou potencial, foram criadas também legislações penais, nas quais o escravo era responsabilizado por crimes, deveria responder a processo, ir a julgamento, sofrer penas. Sobre as transformações do instituto jurídico da escravidão no Brasil, suas contradições e polêmicas, ver Chignoli, Daniel Nogueira. De objeto a sujeito: o estatuto jurídico dos escravos no Império do Brasil. 2018. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

[19] Abdias Nascimento (2016, p. 73), desmascarando o mito da miscigenação benevolente, lembra: “O costume de manter prostitutas negro-africanas como meio de renda, comum entre os escravocratas, revela que além de licenciosos, alguns se tornavam também proxenetas”.

[20] “O contrato pelo qual ele vende sua força de trabalho ao capitalista prova [...] que ele dispõe livremente de si mesmo. Fechado o negócio, porém, descobre-se que ele não era ‘nenhum agente livre’, que o tempo de que livremente dispõe para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la, que, na verdade, seu parasita não o deixará ‘enquanto houver um músculo, um nervo, uma gota de sangue para explorar’” (Marx, 2017, p. 373).

[21] Lei número 601, 18 de setembro de 1850: "Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colonias de nacionaes e de extrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonisação extrangeira na forma que se declara. [...] Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra. [...]” Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0601-1850.htm#:~:text=LEI%20No%20601%2C%20DE,sem%20preenchimento%20das%20condi%C3%A7%C3%B5es%20legais.%20Acessado%20em:%2010%20jul.%202023.

[22] Algumas mazelas da estrutura fundiária brasileira, originária das chamadas sesmarias, foram, de certa maneira, percebidas já em 1821 por José Bonifácio, cuja visão, segundo Moura (2020), era mais progressista do que os legisladores da lei de terras de 1850 e dos abolicionistas, em geral, posto que chegou a propor a criação de uma legislação que, embora não eliminasse o direito do Estado de doar terras, recomendava sua extensão também a índios, mulatos, negros e forros, além de incluir novos critérios para o tamanho da propriedade e para as terras improdutivas e despovoadas.

[23] Vale lembrar que a miséria também grassava entre a população branca proletária, à margem da opulência das classes proprietárias. Pai contra mãe, outro conto de Machado de Assis sobre o universo societário da escravidão, narra as contradições, o embate entre a vida e a morte entre os personagens Cândido, o pai, branco, pobre, que é levado ao ofício “caçador de escravos fugidos”, e Arminda, a escrava grávida fugida. No entanto, é sobre a mulher negra escravizada que a opressão e a degradação social são mais profundamente implacáveis: ao seu retorno forçado ao calabouço, aborta, enquanto o rebento do branco vinga.

[24] Entre 1851-1900, entraram 2.092.847 imigrantes europeus no Brasil. Entretanto, “em 1882 tínhamos, nas províncias de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio de Janeiro, para 1.443.170 trabalhadores livres e 656.540 escravos, uma massa de desocupados de 2.822,583” (Moura, 2019, p. 115).

[25] Com a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial, que obsta a imigração subvencionada, recorre-se ao contingente de trabalhadores não brancos, do mesmo modo que os negros escravizados foram recrutados para lutar e morrer pela nação durante a Guerra do Paraguai.

[26] Marx (2017) critica os historiadores burgueses que apenas reconhecem um dos aspectos do processo histórico que transforma os produtores em trabalhadores assalariados: a libertação do jugo da servidão e da corporação, não vendo que “os recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam” (p. 787).

[27] Segundo Moura (2019), nas regiões prósperas da economia cafeeira, os trabalhadores negros foram totalmente excluídos e marginalizados, enquanto nas zonas decadentes do Nordeste, que não contavam com capital para investir na substituição de mão de obra, os recém-libertos, assim como a população não branca em geral, foram integrados “em uma economia da miséria” (p. 119), sujeitos, vale recordar, àquelas modalidades de superexploração da força de trabalho como visto anteriormente.

[28] Segundo Moura (2021), a longa duração do “modo de produção escravista” o teria levado, em seus estertores (1850-1888), a encontrar-se com as forças imperialistas, o que estrangulou as possibilidades de desenvolvimento de um capitalismo autônomo/nacional. A transição para o trabalho livre teria engendrado o que o autor denomina “capitalismo dependente”. Vale observar que o conceito de dependência é usado desde os anos 1960 por autores com distintas perspectivas de classe.

[29] Esse transformismo da Proclamação da República é retratado na obra machadiana Esaú e Jacó. Sobre os dois personagens centrais do romance, a figura do narrador nos informa: “Pedro era monarquista, Paulo republicano. Sobre a abolição, os dois concordam, mas por razões diversas [...]. A diferença única entre eles dizia respeito à significação da reforma, que para Pedro era um ato de justiça, e para Paulo era o início da revolução. E mesmo o disse, concluindo um discurso em São Paulo, no dia 20 de maio: ‘A abolição é a aurora da liberdade, esperemos o Sol, emancipado o preto, resta emancipar o branco’” (Assis, 2020, p. 224-225).

[30] É da natureza do Estado a incapacidade de compreensão e resolução dos males sociais (Marx, 2010).

[31] A ideologia racista, que transfere para o negro a responsabilidade por sua marginalização, foi expressa até mesmo por uma figura progressista como Celso Furtado, que responsabiliza o negro pelo atraso econômico brasileiro. Avaliando a corrente migratória europeia para São Paulo, após a Abolição, afirma: “as vantagens que apresentava o trabalhador europeu com respeito ao ex-escravo são demasiado óbvias para insistir sobre elas [...]. Cabe tão somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a Abolição, retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento econômico do país” (apud Moura, 2019, p. 113-114).

[32] As mulheres pretas ou pardas são a maioria da população de jovens entre 15 e 29 anos que não estudam nem estão ocupadas no Brasil (2019-2021). “Síntese de indicadores sociais, uma análise das condições de vida da população brasileira 2022” do IBGE. Disponível em:  https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101979. Acessado em: 14 jul.2023. 

[33] Segundo PNAD do IBGE (maio de 2023), a taxa de desocupação para pretos (11,3%) e pardos (10,1%) ficou acima da média nacional (8,8%), enquanto para brancos (6,8%) ficou abaixo. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/home/pnadcm. Acessado em: 14 jul. 2023.

[34] Os pretos e pardos chegam a 84,1% de todas as vítimas de intervenções policiais. “Anuário Brasileiro de Defensoria Pública 2022”. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/05-anuario-2022-letalidade-policial-cai-mas-mortalidade-de-negros-se-acentua-em-2021.pdf. Acessado em: 14 jul. 2023. Segundo o “Atlas da Violência” IPEA, 2021, os homens negros ultrapassam 70% das vítimas de homicídios no Brasil, a maioria jovem, entre 15 e 29 anos. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/5141-atlasdaviolencia2021completo.pdf. Acessado em: 14 jul. 2023.

[35] Franz Fanon (2020) buscou mostrar que, ao invés das “máscaras brancas”, “outra solução é possível. Ela implica uma reestruturação do mundo” (p. 95).

[36] Essa questão é sempre ressaltada por Moura (2019) em suas críticas a alguns grupos da classe média negra desvinculados da grande massa negra que “não lhe transmitem identidade e consciência étnicas, [...] com isso, reproduzem uma ideologia que justifica vê-la como periférica, como o negativo do próprio problema do negro” (p. 31). Florestan Fernandes (1976), debruçando-se sobre os desafios do povo negro no contexto da modernização conservadora/excludente da ditadura militar, afirma: “O próprio negro acaba rompendo os obstáculos identificando-se com os interesses e os valores dos estratos sociais dominantes e de suas elites [...]. Por conseguinte, o único inconformismo que quebra as barreiras históricas se transforma, no terrível processo de ascensão econômica, social e cultural do negro, em um elemento de manipulação do negro pelo branco e pelo sistema” (p. 81). Lélia Gonzáles também trouxe para o centro do debate antirracista a realidade, as demandas e os dilemas da grande massa negra proletária, sobretudo da mulher negra, quer em suas críticas ao preconceito racial e de classe no interior do movimento feminista branco, quer em suas análises dos movimentos negros no Brasil (Gonzáles, 1982, 2020; Gonzáles; Hasenbalg, 1982).

[37] Por exemplo, a tendência de generalização da superexploração da força de trabalho por todo o sistema capitalista (Marini, 2000).

[38] Durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), o capital criou vários instrumentos para quebrar a resistência da classe trabalhadora, além da repressão, a substituição da estabilidade no emprego pelo FGTS, a eliminação do direito de greve, entre outros, que tornaram mais efetiva a função do exército de reserva. Atualmente, o próprio crescimento vertiginoso do exército de desempregados e a imposição de regime de trabalho sem direitos, em escala planetária, quebram a resistência da classe trabalhadora. “A organização do processo capitalista de produção já desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário nos trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalismo sobre o trabalhador” (Marx, 2017, p. 808).

[39] Capital, como relação social, forma social que resulta da consumação da divisão do trabalho e da propriedade privada, da separação dos indivíduos de suas forças sociais (materiais e espirituais), pois assentada na divisão da sociedade em classes, na diferenciação, separação e oposição dos indivíduos. A sociabilidade do capital, como expressão da usurpação radical dos indivíduos autoprodutores de suas forças sociais, que foram objetivadas sob a forma do capital e da política, que determinam as contradições entre produção social e apropriação privada, entre vida pública e vida privada, entre vida individual e vida genérica, corresponde à pré-história da humanidade, à longa fase de sociabilidades incapazes de autocondução, isto é, de indivíduos que ainda estão impedidos de controlar a sua própria existência (Marx, 1977, 1989, 2010; Chasin, 2000b).

[40] “Todos os trabalhadores possuem as mesmas exigências diante do capital. Todavia, há um acréscimo: existem trabalhadores que possuem exigências diferenciais, e é imperativo que encontrem espaço dentro das reivindicações de classe e das lutas de classes. [...] Por isso, existem duas polaridades, que não se contrapõem, mas se interpenetram como elementos explosivos – a classe e a raça” (Fernandes, 2017, p. 84-85).

[41] Analisando o significado histórico do 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra (instituído, em 1978, em Salvador, pelo Movimento Negro Unificado), Fernandes (2017) afirma: “Os ativistas negros [...] precisam, acima de tudo, despertar a consciência do caráter suprarracial da solidariedade proletária, porque, no fundo, a superexploração do negro é a condição tanto da desvalorização do trabalho operário em geral quanto do fortalecimento do despotismo das classes burguesas” (p. 47).

[42] A legislação brasileira avançou ao tipificar o racismo como crime hediondo, Lei 7716/1989 (disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm), assim como na tipificação da injúria racial como crime de racismo, Lei 14.532/2023 (disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14532.htm).

[43] A esse respeito, ver: “Os efeitos psicossociais do racismo” (2008). Disponível em: http://www.ammapsique.org.br/baixe/Os-efeitos-psicossociais-do-racismo.pdf.

[44] Recorde-se que a transição pelo alto da ditadura militar manteve os traços nevrálgicos do capitalismo brasileiro: a superexploração da força de trabalho e sua estrutura autocrática. A Lei de Anistia (1979) igualou os assassinos e torturadores aos assassinados e torturados. Não houve condenação dos responsáveis pelos crimes da ditadura. O aparato de repressão, muito mais sofisticado que o do Estado Novo, foi mantido e aperfeiçoado, a exemplo da prática de tortura, disseminada no sistema prisional, e da Lei de Terrorismo de 2016. “A Constituição de 1988, sob a égide da qual foram realizadas as eleições de 1989, embora tenha trazido avanços em alguns aspectos, seguiu a tradição brasileira de restringir na própria Carta os direitos nela garantidos, ou remeter para a legislação ordinária sua regulamentação, que tende a limitá-los ou simplesmente não é efetivada. Ademais, manteve disposições relativas à propriedade de terras e dos meios de comunicação presentes na Constituição anterior, elaborada pela ditadura, e revestiu o velho decreto-lei com o manto da medida-provisória; não eliminou ‘a componente militar nas equações do poder, a não ser nos limites consentidos pela auto-reforma da ditadura’ [...]. Muitas das cláusulas constitucionais relativas às forças armadas, às polícias militares, ao sistema judiciário militar e à segurança pública não sofreram alterações em relação à Constituição ditatorial de 1967 e à sua emenda de 1969 [...]. A militarização da polícia, herança da ditadura bonapartista, também não foi banida, e continuou em vigor a Lei de Segurança Nacional promulgada em 1983, às vésperas da data oficial de encerramento da ditadura” (Cotrim, 2019, p. 61). Sobre os limites da Constituição de 1988, ver Fernandes, 1989.

[45] Lei n. 12.990/2014, que versa sobre a reserva de vagas para negros em concurso público e a Lei n. 12.711/2012, que contempla as reservas de vagas para alunos negros e indígenas nos institutos federais de educação.

[46] Relatório: “Mapa da Riqueza no Brasil” (2023), FGV Social. Disponível em: https://cps.fgv.br/riqueza.

[47] Os problemas estruturais (moradias insalubres, falta de moradia e de saneamento básico, insegurança alimentar, entre outros), enfrentados pelas populações mais vulneráveis do Brasil, já vinham se intensificando e foram explicitados e aprofundados durante a pandemia de covid-19. O recrudescimento das políticas neoliberais reduziu drasticamente os investimentos nas áreas da saúde e da educação, penalizando diretamente a classe trabalhadora, já assolada pelo desemprego e pela perda de direitos.  “Pesquisa: desigualdades e vulnerabilidades na epidemia de COVID-19 (2021).  Disponível em: https://repositorio.unifesp.br/handle/11600/61363. Acessado em: 5 abri. 2023.

[48] “Em 2022, registramos 47 assassinatos em conflitos no campo, um crescimento de 30,56% na comparação com o ano de 2021, no qual 36 pessoas foram vítimas dessa violência extremada. No ano de 2022, pelos registros da CPT, houve ainda um aumento de 272,73% nos números de tentativas de assassinato – passando de 33 para 123 pessoas – e de 43,06% nos números de ameaças de morte – de 144, em 2021, para 206 pessoas ameaçadas em 2022. No caso das tentativas de assassinatos, é o maior número desse tipo de violência registrado em todo o século XXI”. In: Conflitos no campo Brasil 2022, Centro de documentação Dom Tomás Balduíno. Goiânia: CPT Nacional, 2023, p. 7.  Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/downlods/summary/41-conflitos-no-campo-brasil-publicacao/14302-livro-2022-v21-web. Acessado em: 22 set. 2023.

[49] Observatório Terras Quilombolas da Comissão Pró-Índio de São Paulo. Disponível em: https://cpisp.org.br/direitosquilombolas/observatorio-terras-quilombolas/.

[50] Baseado nos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do período de 1987 até 2022, o Relatório das Desigualdades Raciais (2022) conclui que houve “uma importante atenuação das desigualdades raciais presentes na educação formal”. Entretanto, observou-se “a manutenção de desigualdades duráveis que mantêm brancos e amarelos com melhores níveis de escolaridade, de trabalho e renda, se comparados ao grupo formado por pretos, pardos e indígenas. [...] apesar da melhoria no acesso à educação, pretos, pardos e indígenas ainda sofrem com altas taxas de desocupação. Quanto à renda, a desigualdade é ainda mais acentuada, novamente em favor de brancos e amarelos”. Disponível em: https://gemaa.iesp.uerj.br/relatorios/relatorio-das-desigualdades-raciais-2022/. Acessado em: 22 ago. 2023. A respeito, ver também Damasceno, 2022, p. 174-192.

[51] Como mostra a pesquisa de Alves (2019), as milícias do Rio de Janeiro surgiram durante a ditadura militar, mas elas não são um poder paralelo, são o próprio Estado.

[52] “'Quanto mais a ordem do capital se desenvolve e completa, tanto mais se autonomiza e independe da intervenção estatal para se estabelecer e dominar. O segredo do Estado é a sociedade civil’ [...]. O que não significa, evidentemente, que o capital possa descartar a política, mas sim que as tarefas para as quais continua precisando dela se reduzem cada vez mais à repressão e ao esmagamento da classe trabalhadora pelo exercício da violência, policial ou econômico-jurídica. Para isso, não se carecem de grandes qualidades humanas, ao contrário, quanto mais rebaixados forem seus agentes, tanto mais adequados serão para o cumprimento de tais tarefas. O  esvaziamento da política se junta, pois, a acentuação de sua ‘insensibilidade congênita frente à dimensão humana, em confluência e de acordo com a lógica do capital’ [...], insensibilidade ainda mais aguda quando se trata da política de um capital atrófico” (Cotrim, 2019, p. 65).

[53] Ver a análise de Liszt Vieira sobre a Cúpula da Amazônia (8 e 9 de agosto de 2023, Belém do Pará), que produziu apenas discursos, sem compromissos e planos concretos para salvar a floresta e seus povos, o que se alinha com a prática concreta do governo atual, que segue com a liberação indiscriminada de agrotóxicos, projetos de exploração de combustíveis fósseis e de construção de ferrovias, entre outros. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/cupula-da-amazonia/.

[55] O Estado repousa sobre debilidades sociais, resulta dos próprios limites e negatividades da sociedade civil, isto é, da escravidão. “Com efeito, esta dilaceração, esta infâmia, esta escravidão da sociedade civil é o fundamento natural em que se apoia o estado moderno, assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento no qual se apoiava o estado antigo. A existência do Estado e da escravidão são inseparáveis. O estado antigo e a escravidão antiga – fracas antíteses clássicas – não estavam fundidos entre si mais estreitamente do que o estado moderno e o mundo moderno de traficantes – hipócritas antíteses cristãs”. Se a impotência é um traço congênito do estado, determinado pela sociedade civil, se o estado quisesse superar sua impotência, ele teria, pois, que cometer o suicídio (Marx, 2010, p. 60-61).


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Nota final: o presente texto utiliza o novo acordo ortográfico.


































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