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Intelectualidade e luta de classes: uma crítica à postura tuísta

Vera Cotrim [1]

Nota introdutória da Revista Barravento

O ensaio que aqui apresentamos ao leitor, escrito por Vera Cotrim, retoma uma questão elementar de nosso tempo: qual o papel do intelectual hoje? Ou, melhor dizendo, é possível dizer que os intelectuais, os “acima” da classe trabalhadora, os “espectadores imparciais” (Adam Smith), são de algum modo ‘isentos’ ou mais “racionais”? Aliás, não é este o problema, senão outro, que cada vez mais se vê os esforços para um tipo de desinteresse de classe, pautado pela pesquisa e pelo louvor de seus pares; ainda mais, não seria um Grande Hotel de luxo na beira do Abismo (capitalismo), nos dizeres de György Lukács?

V. Cotrim, cuja escrita sem rodeios e com uma imensa clareza, ao relembrar uma peça do teatrólogo, dramaturgo marxista, Bertold Brecht, reflete de modo satírico, o tema da intelectualidade, elegendo alguns autores para a particularidade de nosso tempo. Antes de passar ao texto, cabe esclarecer ao leitor: o ensaio que se segue abaixo estará dividido em duas partes. Para o texto, uma pequena ressalva: na segunda parte, os autores mencionados entram em cena na análise da autora. No que se refere na primeira parte - logo abaixo -, o capítulo 1, cujo conteúdo é para explanar e explorar o problema dos “diagnósticos” do neoliberalismo, os pressupostos de uma intelectualidade alheia aos sofrimentos do povo, mas que deles se valem para parecerem grandes paladinos da defesa dos interesses do “povo”.

De todo modo, convidamos a todos os leitores e as leitoras que desfrutem do ensaio. À autora, nosso agradecimento por ceder com exclusividade tamanho conteúdo!



Resumo: Este ensaio busca questionar as críticas ao neoliberalismo que não alcançam a radicalidade do questionamento à forma-capital, mostrando sua impotência. Examinamos as críticas de autores de diferentes escolas filosóficas: o liberal Thomas Piketty, os foucaultianos Pierre Dardot e Cristhian Laval e o marxista David Harvey. Buscamos com isso questionar o papel do intelectual que não se considera pertencente à classe trabalhadora, bem como a ideia de uma “classe intelectual”. Esta exposição lança mão de uma peça do dramaturgo alemão Bertold Brecht, Turandot ou O Congresso das Lavadeiras, que satiriza o intelectual não comprometido com a luta de classes.

Palavras-chave: intelectualidade; divisão do trabalho; capital; Bertold Brecht


Abstract: This essay seeks to question the criticism of neoliberalism that does not reach the radicality of questioning the capital-form, showing its impotence. We examine the critics of authors from different philosophical schools: the liberal Thomas Piketty, the Foucauldians Pierre Dardot and Cristhian Laval and the Marxist David Harvey. With this, we seek to question the role of the intellectual who does not consider himself to belong to the working class, as well as an idea of ​​an “intellectual class”. This exhibition makes use of a play by the German playwright Bertold Brecht, Turandot or the Whitewasher's Congress, which satirizes the intellectual not committed to the class struggle.

Key words: intellectuality; division of labor; capital; Bertold Brecht

“(...) os chamados filósofos ou homens de especulação,

cujo ofício é nada fazer, mas tudo observar”

Adam Smith, A riqueza das nações

“Que a Terra seja redonda é uma coisa

que pode ter importância algum dia”

Mo Si

Bertold Brecht, Turandot ou o congresso das lavadeiras

O objetivo deste ensaio é mostrar que a crítica ao chamado neoliberalismo que não alcança a radicalidade de crítica do capital, do Estado e do patriarcado a um tempo, acaba por reduzir-se a denúncias e exortações piedosas que, no momento em que os conflitos sociais reais se explicitam, pode mesmo decair em seu contrário, tornando-se uma salvaguarda dos fundamentos deste sistema. O objeto deste texto são algumas críticas do modo de vida atual por pensadores franceses do campo da esquerda, nomeadamente a dupla Pierre Dardot e Christian Laval e Thomas Piketty. Mas extrapola os pensamentos singulares desses autores para buscar ser uma crítica à postura do intelectual crítico hoje, satisfeito do lugar que ocupa na divisão social do trabalho: um membro da classe intelectual. Essa postura, como defendemos, está na base dos constructos teóricos desses autores, cuja recusa declarada ao modo de vida capitalista resguarda o apego à necessidade da divisão social do trabalho e, com ela, à noção de liberdade como autonomia individual (às vezes, restrita mesmo ao mercado). Busco também refutar o argumento que embasa a recente e triste capitulação de David Harvey ao reformismo capitalista, com a finalidade mais ampla de comentar a naturalização da divisão social do trabalho que perpassa o pensamento desses intelectuais.

Bertolt Brecht criou uma figuração satírica da classe intelectual, presente em diferentes trabalhos do autor e abrangendo múltiplos personagens, os cômicos tuis. O termo tui foi criado pelo dramaturgo alemão e é sigla de um anagrama com a palavra Intellektual, Tellekt-Ual-In. Recorro neste ensaio à peça Turandot e o congresso das lavadeiras (1953), uma das obras em que Brecht satiriza o intelectual como função especializada da divisão social do trabalho, para ajudar a figurar a crítica que busco fazer à postura da classe intelectual crítica. Esta peça, ambientada em uma China mítica, conta a história de Turandot, a lânguida filha do Imperador que busca um amor entre os tuis, porque “não consegue resistir a atributos intelectuais”[2] (BRECHT, 1993, p. 117). As lavadeiras do título são os tuis, que lavam a roupa suja do império chinês para manter seus privilégios de classe intelectual.

A peça mostra que o debate democrático tem um limite em uma sociedade de classes: é aceito enquanto os fundamentos da ordem não são questionados e, assim, identifica a ordem com a própria razão. Mas, quando esses fundamentos são postos em questão na prática das lutas sociais, aquelas mesmas ideias plurais que se mantinham no limite da razão aceita, ou seja, que não se constituíam em crítica radical, mas conciliavam com a ordem, são inseridas no conjunto amorfo do inimigo da ordem, da própria sociedade. Em uma palavra, o debate democrático em si mesmo é criminalizado. Com isso, a peça revela o caráter não apenas ineficiente, mas favorável ao sistema capitalista, daquelas críticas conciliatórias. A falta de radicalidade desses intelectuais consiste na ausência de uma tomada de posição de classe, pela classe trabalhadora: os tuis são uma classe autônoma e, como a peça desvenda, o posicionamento em defesa desta classe se torna sustentação prática da classe dominante. Mas, ainda assim, justamente porque se portam como uma classe à parte, na radicalização prática das lutas são identificados, pelos representantes da ordem, com o inimigo (a classe trabalhadora) e, mesmo que sempre tenham conciliado e até defendido o poder constituído, esse poder, quando precisa reagir, não mais os aceita, porque não pode mais conciliar-se com qualquer forma de pluralidade de ideias.

Nada mais atual, diga-se de passagem, no nosso país, em que tudo o que não mimetiza o discurso do governo é inserido no grupo do marxismo cultural, inclusive correntes anti-marxistas. A peça é uma sátira fina do intelectual que vê a si mesmo em uma classe à parte e não assume a radicalidade de uma transformação social profunda. Como a figura de Kai Ho explicita, aqueles intelectuais que assumem a luta de classes, muito antes da radicalização dessas lutas e da necessidade do estado bonapartista, foram banidos da classe dos tuis, do debate democrático, e criminalizados. Kai Ho não é um intelectual, mas um agitador, cuja obra não é discutida nos congressos tuis, mas dogmaticamente desmoralizada. Trata-se de uma provável referência a Marx, banido da academia ou reduzido a um dos “três porquinhos” da especialidade sociológica, para usar uma expressão corrente na academia brasileira. Busco mostrar como a postura crítica dos pensadores franceses, bem como a recusa em assumir o anticapitalismo por David Harvey, os aproxima, por sua falta de radicalidade e consequência, aos tuis brechtianos. Como buscaremos mostrar, essa falta de consequência pode ser identificada especialmente nas propostas de transformação do mundo que esses autores oferecem: constructos ideais a serem aplicados ao mundo, incoerentes com as leis deste, com seu campo efetivo de possibilidades.

Os pensadores a partir dos quais pretendo fazer essa reflexão são críticos. Recusam o modo de vida capitalista atual, com suas contradições já aprofundadas e explícitas, ou o modo de vida chamado de neoliberal. Atuam intelectualmente para defender uma transformação no modo de vida atual. Assim, Dardot e Laval sustentam a necessidade da priorização do comum, em lugar do interesse privado, com vistas à recusa da subjetivação do capitalismo que nos molda, ou da capitalização de nós mesmos; Piketty defende um socialismo participativo, em que a propriedade seria dividida por meio de expedientes como a taxação internacional de lucros e fluxos de capital, e até mesmo a garantia de uma herança de 120 mil euros para cada indivíduo que completar 25 anos de idade. Harvey, que há décadas vem explicando o desenvolvimento das relações econômicas e sociais e denunciando o neoliberalismo, hoje associa a gigantesca monopolização capitalista, expressa na profunda divisão internacional do trabalho que observamos, à impossibilidade material de qualquer revolução anticapitalista, propondo as reformas políticas como os únicos meios de domar a barbárie do capital.

1. Os problemas

1.1. Neoliberalismo

Primeiro, apresento o problema em comum que esses intelectuais estão enfrentando. Ele é mais complexo do que aquele que os tuis da peça brechtiana precisam resolver, e do qual falarei à frente, mas ambos têm uma dificuldade similar.

Os pensadores em questão se voltam para o neoliberalismo (Dardot e Laval) e para a recente ampliação das desigualdades e da concentração de riqueza (Piketty), ou seja, para o momento presente, que começa a se constituir após a derrocada do chamado socialismo real e do último suspiro dos trinta anos de conciliação de classe na Europa; David Harvey denuncia a catástrofe ambiental que pode se tornar irreversível e toda a violência mediante a qual a reprodução do capital se impõe. Para eles, esse modo de vida deve ser superado: para Piketty, o nível de concentração de renda a que chegamos beira a obscenidade; em Dardort e Laval, a subjetividade humana está limitada pela razão produtivista e acumuladora do empreendedor de si mesmo; Harvey, como marxista, indica a necessidade de superar a produção pela produção e seu impulso de caráter irracional e destrutivo.

Vale recuperar brevemente a especificidade do chamado neoliberalismo, como um momento da história do desenvolvimento capitalista. Sabemos que a teoria que justifica o neoliberalismo é antiga, e foi derrotada como alternativa político-econômica no pós-guerra. Como prática vitoriosa, a partir de 1978, o neoliberalismo responde a uma crise que é ao mesmo tempo a expressão do fracasso do “liberalismo embutido” de Keynes, ou da “sociedade organizada”, como alguns chamaram. Quer dizer, quando aquela alternativa vitoriosa na década de 1940 encontrou seus limites, e quando todas as tentativas de ruptura com o capital foram derrotadas, o neoliberalismo emerge como forma de vida hegemônica.

Desse modo, sua emergência aparece como uma solução para a crise econômica e como modelo final de sociabilidade. Sabemos, a partir de Marx, que crise é sempre crise de superprodução de capital ou superacumulação. A ampliação da produtividade do trabalho, determinante do modo de produção que funciona pela via da concorrência, é contraditória porque restringe progressivamente as bases de valorização do capital.

Esquematicamente, é assim que Marx explica a principal contradição do capitalismo desenvolvido: por um lado, o pressuposto da relação de valor “é e continua sendo a massa de tempo de trabalho imediato, o quantum de trabalho empregado como fator decisivo da produção de riqueza” (MARX, 2011, p. 587). Por outro, impulsiona o incremento da produtividade do trabalho, embora desigualmente em diferentes ramos, o que barateia os produtos e restringe a capacidade do capital de empregar trabalho.

O aumento da produtividade do trabalho social, o papel civilizatório que Marx atribui ao capital, expulsa trabalho do organismo produtivo, de modo que a proporção entre a parte do capital que precisa ser aplicada em materiais e equipamentos e aquela destinada a empregar trabalho se altera. Um montante dado de capital vai paulatinamente perdendo sua capacidade de empregar trabalho e, assim, estreitando os limites de sua potência de valorização. É o que expressa a lei tendencial à queda da taxa de lucro: com o aumento da produtividade do trabalho, tornam-se necessárias quantidades crescentes de capital constante (valor investido em meios de produção) para empregar uma quantidade dada de trabalho (capital variável). Um exemplo simples: quando uma máquina de tecer se torna duas vezes mais produtiva, é preciso comprar o dobro de fio para incorporar igual tempo de trabalho da mesma trabalhadora. Quer dizer, ele tem que produzir o dobro de valores de uso para reproduzir o mesmo quantum de valor. Se não existe mercado para o dobro de tecido, o capital liberado da produção têxtil precisa desenvolver novas mercadorias, que constituem novos campos de aplicação, para se reproduzir. Quando a produtividade ampliada atinge os ramos de meios de subsistência dos trabalhadores, esse processo barateia também os salários, ampliando a taxa de exploração (mais-valor) e obstaculizando a ampliação do poder de consumo.

É um expediente comum, nos momentos que antecedem a crise, a transferência de montantes de capital para a esfera financeira. Trata-se de um modo de evitar a superprodução de mercadorias, mas não impede a superprodução do capital. Marx escreve: “Nas crises – após o momento de pânico –, no período da estagnação da indústria, o dinheiro é fixado nas mãos de banqueiros, corretores de títulos etc., e assim como o cervo grita por água fresca, o dinheiro grita por campo de aplicação para que o capital possa ser valorizado” (MARX, 2011, p. 519).

Esse processo, conhecido como financeirização da economia, pode ser entendido como a atribuição do caráter fictício ou especulativo ao conjunto do capital social, seja ou não produtivo de mercadorias ou serviços: a expectativa de rentabilidade futura fixada em contrato passa a determinar o valor presente dos capitais, como fica nítido em todas as formas de capital acionário, conferindo ao conjunto do capital a forma de rentabilidade característica do capital a juros.

Nas crises, com os títulos financeiros desvalorizados e o excesso de dinheiro, que opera no sentido de baixar a taxa de juros, montantes de capital fictício, especulativo ou sobre-estimado, mas também de capital real, morrem de sede, revelando a necessária unidade entre a esfera que cria o valor e a esfera de sua realização, que funcionam autonomizadas em momentos não críticos da reprodução social.

A solução para recuperar a valorização do capital é sua ampliação extensiva, isto é, um salto na escala da produção, em seu nível de socialização. As crises mais profundas exigem, por isso, o estabelecimento de uma nova base técnica e uma expansão geográfica e intensiva dos mercados. Isso implica a concentração do capital: para estabelecer uma nova base material, pequenos capitais falidos na crise, ou sem capacidade de concorrência, são incorporados aos maiores, que assim arcam com os custos da nova estrutura. Criam-se mercados, novas mercadorias, barateiam-se produtos. O capital, por um lado, compensa assim uma queda na taxa de lucro pelo aumento da massa de lucro, e por outro, expande seu campo de aplicação, com maior número de consumidores e gama de necessidades, gerando o crescimento econômico. Este resulta de uma ampliação extensiva absoluta do valor criado em dado período. Se considerarmos que a ampliação da produtividade implica o aumento da quantidade de valores de uso produzidos com um dado montante de capital, o crescimento econômico medido em valor (produto interno bruto, descontada a inflação) significa um aumento proporcionalmente maior na quantidade de mercadorias, ou valores de uso. Isto é, a expansão do mercado deve ser proporcionalmente maior que o crescimento econômico.

Mas, no caso do neoliberalismo, há uma especificidade com relação ao que se chamou de ciclos das crises. De acordo com David Harvey, o neoliberalismo foi bem-sucedido ao promover a expansão do capital e um novo nível da socialização ou escala da produção, fundada na nova técnica da informatização, tendo ampliado a produtividade do trabalho e as interconexões mundiais. O desenvolvimento da divisão internacional do trabalho e da especialização das nações é também um resultado desse bem-sucedido processo de ampliação da mundialização do capital, assim como a forma financeira ou fictícia que passa a permear o conjunto do capital social, baseada tecnicamente na informática, e alça o capital a um nível de fluidez, mas também de especulação, inéditos.

Contudo, o neoliberalismo não foi bem-sucedido em restaurar os níveis de crescimento econômico anteriores às crises da década de 1970. O resultado mais notável do neoliberalismo, de acordo com o autor, foi a centralização sem precedentes do capital, que permitiu a emergência de uma classe capitalista mais estreita e poderosa, com características de capital rentista, tanto no setor financeiro como no produtivo, por meio, por exemplo, das patentes e da monopolização da tecnologia. A restauração do poder de classe, tanto econômico quanto político, agora livre da conciliação de classe que caracterizou a organização dos países centrais do ocidente durante os trinta anos que sucederam à segunda guerra, foi o festejado desfecho desse processo[3].

Tendo seguido todo o script da expansão necessária para recolocar a acumulação sobre bases mais amplas, a reprodução capitalista não foi bem-sucedida em reestabelecer-se sobre fundamentos favoráveis para a continuidade do processo, o que indica para uma crise estrutural, ou seja, uma condição em que a ampliação do nível de socialização do capital, sua expansão, não é mais capaz de superar a crise: há uma superprodução insolúvel de capital.

Alguns dados expressam essa relação entre o último processo de aprofundamento da mundialização do capital, que a partir da década de 1990 consolidou a produção informatizada e a financeirização, sua incapacidade de gerar crescimento econômico e a centralização extrema do capital. Considerando os países do centro do sistema, aqueles que compõem a OECD desde 1961 (EUA, Canadá, Japão, e Europa Ocidental)[4], o crescimento econômico anual (crescimento real do PIB) foi em média acima de 4% na década de 1950, perto de 5% na de 1960, 3% na de 1970 (valor médio que conta com o crescimento de mais de 5% até 1972, caindo em 1973 com a crise do petróleo), 3% na década de 1980, abaixo de 3% na de 1990, e abaixo de 2% nas décadas de 2000 e 2010. No movimento amplo dos últimos 50 anos, após o último ciclo expansivo das décadas de 1950 e 1960, assistimos a uma redução do ritmo de crescimento econômico real dos países centrais, de 5% para menos de 2%. Se o crescimento econômico mundial se manteve sempre acima de 3% e, na década de 2010, chegou a 3,8%, isso se deveu à expansão capitalista dos países não-ocidentais, especialmente a China, cujo crescimento constante na casa dos 10% durou três décadas (1980 a 2010), caindo um pouco apenas na última (7,6% na média anual para década de 2010), mas também, a partir de 1990, da Rússia, da Índia, da Coreia do Sul. A abertura dos países do chamado socialismo real ao capital é em grande parte responsável pelo fôlego do capital nas últimas décadas.

Frente ao crescimento econômico pífio que acompanhou tanto a consolidação da produção informatizada e a financeirização, quanto as políticas neoliberais, observamos a centralização do capital e a concentração sem precedentes da renda. O ritmo de crescimento econômico esteve então muito mais lento que o da centralização do capital – concentração do “patrimônio”, nos termos de economistas, como Thomas Piketty – e que o do avanço da desigualdade de renda. O termo “renda”, para os economistas, engloba tanto os rendimentos do trabalho quanto os dividendos do capital (lucro, juro, renda da terra e das patentes, que funcionam hoje como qualquer título financeiro). Assim, o aumento da desigualdade de renda envolve dois processos: a ampliação da parcela do valor socialmente criado que constitui dividendos do capital em relação à que constitui salários, e o crescimento da desigualdade no interior dos rendimentos do trabalho. Ambos são marcantes a partir da década de 1980.

Com dados específicos dos EUA, Piketty escreve:

Concretamente, se acumularmos o crescimento total da economia americana ao longo dos trinta anos que antecederam a crise, isto é, de 1977 a 2007, observa-se que os 10% mais ricos se apropriaram de três quartos desse crescimento — o 1% mais rico absorveu sozinho cerca de 60% do crescimento total da renda nacional ao longo desse período. Para os 90% restantes, a taxa média de crescimento da renda foi de menos de 0,5% por ano. (PIKETTY, 2014, p. 372)

Mas esse movimento de apropriação capitalista que se beneficiou da dissolução do bloco soviético, da abertura da China, da desregulamentação dos mercados comerciais e financeiros e das políticas neoliberais privatistas e destrutivas da seguridade social foi mundial: “Eles permitiram que o capital privado recuperasse, no início da década de 2010 — apesar da crise de 2007-2008 —, uma prosperidade que não se via desde 1913” (PIKETTY, 2014, p. 51). Com a finalidade de garantir o apoio da elite do trabalho, daqueles que atuam na alta gerência das empresas, a guinada neoliberal também ampliou desmesuradamente os salários desta corte que circula em torno dos grandes proprietários e acionistas. David Harvey escreve que “a proporção entre a remuneração mediana dos trabalhadores e os salários dos CEOs (Chief Executive Officer) passou de apenas 30 para 1 em 1970 a quase 500 para 1 por volta de 2000” (HARVEY, 2008, p. 26).

Para recuperar a lucratividade em um ambiente econômico tendente à estagnação, e no qual as crises levam a quedas cada vez mais acentuadas, a redução significativa da proporção de valor que cabe ao conjunto da classe trabalhadora é um expediente necessário. As políticas neoliberais fazem isso tanto pela flexibilização das relações e direitos trabalhistas e pela ampliação do desemprego, que acirra a concorrência entre os trabalhadores e age no sentido de reduzir salários, como por meio do próprio orçamento estatal, que direciona os recursos públicos para contribuir com a valorização dos grandes capitais financeiros e produtivos, tornando-se o que diferentes autores chamam de fiador último do capital, especialmente daqueles que são too big to fail. As privatizações também são um meio de transformar a riqueza pública em capital privado. Nos termos de Piketty, “A riqueza pública hoje está muito baixa na maioria dos países desenvolvidos (às vezes até negativa, quando a dívida pública é maior do que os ativos públicos), e veremos que a riqueza privada representa a quase totalidade da riqueza nacional em praticamente todos os países. No entanto, nem sempre foi assim” (PIKETTY, 2014, p. 57).

Esse processo de redução de direitos trabalhistas e ampliação do mercado de trabalho informal (trabalho excluído da esfera do direito trabalhista e da seguridade social), bem como a transformação de toda forma de apropriação em propriedade privada, representa-se, no campo da teoria neoliberal, pela redução de todas as relações sociais à relação de concorrência, alçada ao status de natureza humana: o famoso darwinismo social, vulgarizado no termo meritocracia. Dardot e Laval escrevem que, hoje,

(...) a exigência de uma universalização da norma de concorrência ultrapassa largamente as fronteiras do estado, atingindo diretamente até mesmo os indivíduos em sua relação consigo mesmos. (...) A empresa é promovida a modelo de subjetivação: cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que deve se fazer frutificar. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 368)

As teorias apologéticas precisam em primeiro lugar ocultar a diferença de classe, e assim concebem a vida social novamente como a guerra hobbesiana de todos contra todos. Mas, se Hobbes a coloca como aquilo que deve ser controlado pela constituição do estado e da sociedade civil, os neoliberais a apresentam positivamente, como o que deve ser. Por essa razão, as teorias neoliberais precisam da moralidade, como único meio de conferir limites à violência constitutiva de sua visão sobre o devir da sociedade: se o estado é desnecessário, se não há classes sociais, mas apenas indivíduos e famílias, como limitar a ação violenta em prol do interesse egoísta? O acirramento da moralização é assim necessário à defesa do neoliberalismo, e explica o sucesso das igrejas pentecostais.

Mas a propaganda moralista não é suficiente para o apaziguamento social. Com a pauperização das classes trabalhadoras, também se amplia a violência de estado como forma de controle social, profilaxia contra a revolta da classe trabalhadora. O encarceramento em massa é uma instituição do neoliberalismo: nos EUA, a população carcerária se torna massiva a partir da década de 1980, e no Brasil, a partir da década de 1990[5].

Não apenas o abandono pelo Estado para que os mais fracos pereçam, mas políticas de genocídio também caracterizam o neoliberalismo. A classe dominante age preventivamente, por meio do Estado, quando há razões para amplo descontentamento social. Há ainda outra razão pela qual a violência se amplia nos momentos de crise econômica: o capital aprofunda os expedientes do que Marx denominou acumulação primitiva, isto é, as expropriações e os cercamentos que hoje vitimam povos indígenas e o meio ambiente, e que são um expediente paralelo – e perene – da acumulação capitalista. Trata-se de um modo de ampliar o capital por meio de novos monopólios (patentes sobre plantas, por exemplo) e cercamento de terras, como as florestas, ou seja, realizar a apropriação privada daquilo que antes ainda permanecia fora da reprodução capitalista.

A ampliação da concorrência no interior das classes trabalhadoras, em um momento em que a divisão internacional do trabalho fixou países inteiros em condições semi-coloniais, intensifica a violência racial, mais ainda quando as migrações de trabalhadores se tornam intensas. Se o capital há muito migra de um país a outro, o trabalho livre passa a migrar internacionalmente de modo intenso apenas no período do chamado neoliberalismo[6], de sorte que a concorrência dentro da classe amplia também o racismo. O aumento da pobreza tem ainda o efeito de chacoalhar o patriarcado: os homens não são mais capazes de sustentar a família; mas a maior presença de mulheres no mercado de trabalho e na chefia da família impulsionou uma reação patriarcal, que observamos na defesa da família tradicional por parte de diversos líderes políticos da extrema direita, bem como com as ascensões religiosas fundamentalistas. Uma sociedade que mantém sua estrutura com base na violência, tende a estender essa violência para o conjunto das relações sociais e, de fato, observa-se um aumento das violências raciais e de gênero[7].

É essa cena de aprofundamento das contradições capitalistas – centralização do capital; ampliação da pauperização e da exclusão de contingentes humanos do palco da socialização, que é o mercado; regressão de países a condições econômicas análogas às coloniais; rapina dos recursos ambientais e do patrimônio público; além do genocídio estatal de povos e grupos sociais – que os intelectuais críticos enfrentam hoje. Trata-se de insistir na necessidade de transformação desse modo de vida e de propor caminhos.

1.2. O império do algodão e da China

Antes de irmos a eles, vale expor o problema que os tuis brechtianos devem resolver. O imperador da China é dono do monopólio sobre a produção de algodão no país. Ocorre que, neste ano, as colheitas foram especialmente abundantes, e isso levaria a uma queda do preço do algodão. A saída encontrada pelo governo é subtrair o algodão do mercado para, reduzindo a oferta, reconstituir o preço. O desaparecimento do algodão gera, contudo, uma revolta popular, que vai ao governo exigir explicações e uma solução.

Para resolver esse conflito, e para a alegria de Turandot, o imperador manda organizar um congresso de tuis, que devem discursar para o povo oferecendo uma razão para a falta de algodão, e assim acabar com a revolta. Os tuis são convocados, em suma, para lavar a roupa suja do governo-proprietário. “Todo mundo sabe onde o algodão está realmente. Minhas quatro criadas falam abertamente sobre isso”, diz a mãe de um importante tui. Trata-se, portanto, de “Uma enorme dificuldade. É preciso ser um mestre para provar que dois mais dois é igual a cinco” (BRECHT, 1993, p. 136). Esse mestre, qual seja, o que conseguir convencer o povo de que o sumiço de algodão se deve a causas externas contra as quais o imperador nada pode, e assim alcançar novamente a resignação e a confiança popular, receberá um prêmio. Esse prêmio é o casamento com Turandot, que se oferece, considerando a si mesma premiada pelo casamento com o homem mais inteligente do reino. Os tuis visam esse prêmio, mas também a manutenção de seus privilégios e da vida mesma: aqueles cujos discursos não forem capazes de convencer o povo, terão suas cabeças cortadas.

Se todos sabem onde o algodão está e se, ademais, há grandes sublevações populares, por que o Imperador aposta no congresso das lavadeiras para resolver o conflito e apaziguar o povo? Em frente ao castelo, há uma passeata tão grande que levará de oito a dez horas para passar. Há panfletos por toda parte, em cujo texto se reconhece o estilo da escrita de Kai Ho: “Onde estará o algodão da China? Será que os filhos da China terão de ir nus ao enterro dos seus pais mortos de fome? O primeiro imperador Mandchu só possuía a quantidade de algodão necessária para fazer uma capa de soldado. Quanto algodão possui o último imperador?” Ao ouvir a mensagem do panfleto, o Imperador exclama: “Esse tui desgraçado!” Isso afeta o Tui da Corte que, suando frio, extravasa: “De jeito nenhum! Mande nos chicotear à vontade, mas não diga que esse sujeito imundo é um tui. Um agitador, um subversivo que está sempre metido com a pior escória da China” (BRECHT, 1993, p. 123). Aqui ficamos sabendo que Kai Ho, banido e censurado, já fora um tui.

Além da passeata e dos panfletos, representantes de duas Ligas vão ao imperador exigir explicação sobre a falta de algodão: a Liga dos Camiseiros, cujas fábricas foram fechadas por falta de matéria-prima, e a Liga dos Sem-camisa. Parece, assim, uma grande ingenuidade do governo apostar nos tuis como meio de pacificar o povo. A cena que se passa entre os representantes das duas Ligas em seu encontro com o Imperador, contudo, o convence. Esses representantes são tuis que tomaram para si causas de cunho sindical. São chamados por isso de Tuis Aliados. Ora, se são tuis que formulam para determinadas classes profissionais, por que não foram proibidos de usar o chapéu tui, como Kai Ho? Por que são, por assim dizer, uma oposição tolerável? Isso se explica pela afiliação do pensamento de ambos os tuis aliados ao clássico da sociologia Ka Me, que aparece como uma autoridade no seu campo. Brecht oferece-nos duas de suas máximas: “Não há nada que possa deter a força do povo quando o povo está unido”; “Só em plena liberdade é que se pode conquistar a liberdade”. Baseando-se na primeira máxima, o tui da Liga dos Camiseiros ameaça o Imperador com uma aliança entre as Ligas adversárias (a dos camiseiros vendem as camisas de que os sem-camisa são privados pela pobreza), na medida em que enfrentam um problema em comum.

Mas nesse ponto, já começam a divergir. Sobre a unidade das Ligas, o tui aliado dos Sem-camisa pondera que não deve ser “de cima para baixo, e sim de baixo para cima”, mas o tui dos camiseiros revida: “A liderança de baixo é a gente mesmo que escolhe” (BRECHT, 1993, p. 126). A partir daí, as acusações se multiplicam: “Quem fala por sua boca é o seu Kai Ho”, “E pela sua os honorários pagos pelo traidor que é o Führer dessa liga de fazedores de pactos e de traidores”. Quer dizer, trocam as costumeiras acusações de comunista, da parte do sindicato patronal, e fascista, do lado do sindicato dos descamisados, quando ambos reivindicam as teses do mesmo autor[8]. Acabam partindo para as vias de fato e o tumulto se generaliza, para delírio de Turandot. O Imperador observa que “Eles nunca estão de acordo entre eles mesmos” e, por essa razão, convence-se de que “um congresso de tuis é suficiente para essa boa gente” (BRECHT, 1993, p. 128). Essa gente, a das ligas descontentes, é boa porque não representa uma ameaça real. A aliança se dissolveu antes mesmo de se realizar e a unidade popular não parece iminente.

Além disso, os tuis gozam de grande prestígio entre o povo, o que se manifesta pelo comentário de Sen, um camponês idoso que chega em Pequim para realizar o sonho de estudar o tuísmo. Ele traz uma carga de algodão para vender e, com o dinheiro, pagar seus estudos, mas a mercadoria é confiscada pelo Império: “Há cinquenta anos que eu sonho em pertencer à grande irmandade daqueles que se chamam tuis, de acordo com as iniciais de Telect-Uai-In. São seus elevados pensamentos que fazem tudo funcionar no Estado. Eles são os guias da humanidade” (BRECHT, 1993, p. 120).

A persuasão do povo pelo discurso intelectual parece pois viável ao Imperador. Em sua argumentação no congresso, esses guias da humanidade podem criticar tudo, menos o império da China e o monopólio do algodão. Também os pensadores franceses que buscamos examinar deixam de fora da sua crítica sempre os mesmos pontos: a propriedade privada, a divisão do trabalho, a organização da sociedade em classes. Assim, também enfrentam a enorme dificuldade de provar que dois mais dois é igual a cinco, como veremos.

Os tuis da peça brechtiana têm como ocupação central produzir “formulações” sob demanda. Há uma especialização no interior desta atividade, por áreas do conhecimento ou habilidades determinadas. Eles têm a profissão em comum, e nesse sentido específico das corporações profissionais da Idade Média, são uma classe, que se organiza em uma Liga. Por isso, distinguem-se a longa distância pelo alto chapéu tui. Os tuis são uma das múltiplas classes de profissionais que compõe a mítica China criada por Brecht. A caracterização da população como um conjunto dividido em classes profissionais, em que cada uma tem um interesse próprio, é alvo da sátira brechtiana, já que oculta a real divisão social entre, por um lado, proprietários que são direta ou indiretamente detentores do poder político e que sustentam uma espécie de corte constituída também por tuis, e, por outro lado, o conjunto da classe trabalhadora. O tui Ki Leh, primeiro a discursar no congresso das lavadeiras, não deixa de definir o povo desse modo “exageradamente científico”, em que mistura proprietários e trabalhadores[9].

Embora sejam uma classe profissional, os tuis existem associados a diferentes esferas sociais. Há os que aconselham o rei, e são uma nobreza parasitária, espécie de cargo de confiança do governo, como o tui da corte. Há o redator da escola e reitor da universidade imperial, instituições oficiais em que os alunos pagam para estudar e tornarem-se tuis de diferentes especialidades. E, mais importante, há o mercado tui. Trata-se de uma feira em que os tuis aparecem como meros trabalhadores vendendo seus serviços no mercado. Não vendem exatamente sua força de trabalho, mas, numa forma semelhante a profissionais liberais pobres, vendem suas formulações, destinadas a resolver todo tipo de problemas[10]. Há propaganda desses serviços na Casa de Chás dos Tuis, que a desejosa Turandot visita: “Duas formulações menores por três ienes”, “Aqui se alteram opiniões. Ficam novas em folha”, “Mo-Si, o famoso Rei da Desculpa”, “Por que você é inocente? - Nu Shan lhe dirá”, “Você comercia. Eu forneço os argumentos”, “Faça o que quiser, mas formule decentemente” (BRECHT, 1993, pp. 114-15).

Independentemente de pertencerem ao governo, de trabalharem nas instituições de pesquisa e educação oficiais, ou venderem seus serviços numa feira, todos os tuis têm o direito de utilizar os famosos chapéus; independentemente de serem reconhecidos e ricos, ou desconhecidos e pobres, são todos socialmente respeitados por deterem o conhecimento, como uma classe de pessoas guardiãs do saber, da verdade, do uso da razão.

Na Casa de Chás dos tuis, todos estão buscando ganhar a vida. Um prepara uma difícil formulação sob demanda do Banco Municipal para justificar o aumento de cobranças; outro descansa por ter já vendido “a um vendedor de tripas uma opinião sobre música atonal” (BRECHT, 1993, p. 115); um terceiro introduz o pagamento a prazo, já que os tempos são difíceis. Turandot paga o tui Nu Shan e se diverte discutindo o próprio desejo sexual; passa um garçom anunciando a demanda por “intelectuais com prática em comunicados ao público para lavar negócios sujos”, e completa em voz baixa, “vendas superfaturadas” (BRECHT, 1993, p. 117): três tuis se levantam e saem.

A situação na Casa de Chás é tensa, devido à rebeldia popular. A polícia proíbe os tuis de atenderem clientes maltrapilhos, ao que um mendigo se levanta dignamente e sai; um tui menciona o alto preço das roupas; outro prevê que “Daqui a pouco os pobres já não vão se permitir nenhuma opinião”; um terceiro brinca: “Aqui só existe um problema difícil de resolver: quem paga o chá?” (BRECHT, 1993, pp. 115 e 117)

Com essa caracterização, observamos que os tuis são uma categoria da divisão do trabalho, que precisam vender sua força de trabalho ou seus serviços. A despeito de seu maior ou menor reconhecimento e remuneração; sejam parte da corte, funcionários das escolas tuis, ou profissionais liberais que atendem outros trabalhadores, os tuis são não-proprietários, e precisam trabalhar para viver. Como classe profissional, concorrem entre si pelos empregos disponíveis ou por uma fatia do mercado de formulações. Suas condições objetivas, seu lugar na divisão social do trabalho, é, pois, o da classe trabalhadora, submetida aos fins dos contratantes. Mas seus altos chapéus, que ampliam o tamanho da cabeça, os distinguem do resto desta classe: trabalham com o saber e não com o fazer, com o pensar e não com o agir. Nisso consiste sua privilegiada posição social.

Também na Casa de Chás, Turandot tem seu coração fisgado por um que a “agradou à primeira vista”. Não é, contudo, um intelectual, mas sim um “bonitão” que entra para comprar formulações do tui que oferece duas menores por três ienes. Gogher Gogh, é esse o nome do bonitão, provará ser o mais inteligente do reino, a despeito de ter falhado duas vezes nos exames de admissão da escola tui. Vale caracterizar brevemente esse personagem, já que é na história que envolve Turandot e o famoso assaltante Gogher Gogh num caso amoroso que Brecht figurará o estado em suas últimas consequências, e assim, a natureza mesma do estado. Trata-se de um aspirante a tui, que se tornou assaltante para pagar os estudos[11]. Hoje, contudo, lidera uma milícia remunerada para proteger os comerciantes de assaltos. Assaltos que ele mesmo executaria, caso não fosse pago para evitá-los. Tendo sido reprovado para ingressar na escola tui, desistiu dela, que, aliás, “não serve para nada” (BRECHT, 1993, p. 118). Vem à Casa de Chás dos tuis adquirir um discurso de justificativa por ter roubado a caixa e empenhado as armas de sua própria “empresa”, ou seja, seu bando miliciano, para pagar os exames escolares. Como não é um tui, não será no congresso das lavadeiras que ele fará sua inteligência brilhar. Até este congresso, ainda vigora a ideia, expressa por um eminente tui, de que “é o espírito quem decide sobre os destinos de um povo, não a força”. O ilustre Munka Du constata que, “Em agonia e desespero, o país volta os olhos para os intelectuais. O que eles dirão? (...) Oh, eu sinto a responsabilidade que recai sobre meus ombros” (BRECHT, 1993, p. 137).

Com a sátira da classe intelectual e da política a um tempo, Brecht figura a crítica à divisão social do trabalho e à oposição entre razão/direito e força, que estão na base das teorias políticas burguesas, recolocando a compreensão da produção e da organização social da vida sobre bases materialistas. Digo recolocando porque Brecht acaba por figurar a viragem ontológica que Marx, nosso Kai Ho, opera ao desvelar o conteúdo da alienação: a esfera política é produto das relações materiais contraditórias da sociedade civil; o pensamento, como atributo do ser que pensa, é produzido mediante a atividade e as relações sociais deste ser. Essas duas clivagens sociais – a separação entre estado e sociedade e o desmembramento da atividade produtiva do ser humano em trabalho material e criação intelectual – são desmistificadas na peça de Brecht. Ficará claro que ambas se originam da forma privada da propriedade e da divisão da sociedade em classes. Em duas classes sociais, e não em múltiplas classes profissionais.


NOTAS

[1] Filósofa marxista, professora do CEFET-MG. Contato veraacotrim@gmail.com .

[2] A peça de Brecht é uma releitura de Turandot, de Carlo Gozzi, uma comedia dell’arte encenada pela primeira vez em 1762. À moda do século XVIII, a peça se passa em uma China mítica e conta a história de Turandot, uma princesa traumatizada com os homens devido uma guerra anterior e cujo pai demanda que se case. Ela então exige cruelmente de seus pretendentes que resolvam três complicados enigmas, sob pena de morte. No final, acaba por ser domada por um príncipe cruel como ela, que a compreende. A peça ganhou versões de Schiller, Goethe, uma ópera de Puccini, um filme de Gerhard Lamprecht, e uma versão para o teatro de Yevgeny Vakhtangov, em Moscou, em 1922. É com esta interpretação que, acredito, Brecht está discutindo. A versão de Brech, satírica, é a única que altera completamente o enredo. Nesta, Turandot não é cruel e não tem poder político; é uma princesa ingênua, desbocada, que tem um fraco pelos intelectuais: “Tui da Corte – Certas formulações elegantes a excitam./ Turandot – Fisicamente./ Tui da Corte – Novas posições.../ Turandot – ... de ideias.../ Tui da Corte – ... deixam esta mulher totalmente escravizada a um homem./ Turandot – Sexualmente. Conta do sangue./ Tui da Corte – O sangue dispara do seu coração quando ela vê uma cabeça erguida, um gesto cheio de significados, quando ouve uma redonda.../ Turandot – ... frase” (BRECHT, 1993, p. 117).

[3] Harvey escreve: “Gerard Duménil e Dominique Levy, depois de uma cuidadosa redistribuição dos dados, concluíram que a neoliberalização foi desde o começo um projeto voltado para restaurar o poder de classe”. E adiante: “A neoliberalização não foi muito eficaz na revitalização da acumulação do capital global, mas teve notável sucesso na restauração ou, em alguns casos (a Rússia e a China, por exemplo) na criação do poder de uma elite econômica” Ele afirma ainda: “A liberdade de mercado que Bush proclama como ponto alto da aspiração humana mostra não ser nada mais do que meios convenientes de disseminar o poder monopolista corporativo – e a Coca-Cola – pelos quatro cantos do globo, sem restrição” (HARVEY, 2008, pp. 26; 27 e 47).

[4] A partir do fim da década de 1990, outros países passam a integrar a OECD, que hoje soma 38 membros e congrega assim algo em torno de 80% da circulação mundial de valores. Esses países são especialmente do leste europeu, mas também a Austrália e alguns latino-americanos. Para a lista completa, ver http://www.oecd.org/about/members-and-partners/.

[5] Para dados e análise sobre o sistema carcerário nos EUA, ver WACQUANT, Löic. “Crime e castigo nos Estados Unidos: de Nixon a Clinton” Revista de Sociologia e Política nº 13, Nov/1999, pp. 39-50. No Brasil, o encarceramento cresce 618% entre 1990 e 2018. Para dados sobre o Brasil, ver o site do INFOPEN e AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CIFALI, Ana Cláudia “Política criminal e encarceramento no Brasil nos governos Lula e Dilma - Elementos para um balanço de uma experiência de governo pós-neoliberal”, Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 1, jan.-mar/2015, pp. 105-127.

[6] Os fluxos migratórios internacionais de trabalhadores começam a ser significativos a partir de 1980, quando trabalhadores de países pobres se dirigem ao centro do capital. Esses fluxos dão um salto na década de 2010, quando passa a haver também significativas migrações no eixo Sul-Sul, que também se tornam mais femininos. Ver http://panoramainternacional.fee.tche.br/article/migracoes-internacionais-e-seus-fluxos-de-contradicoes/ e https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:N-Qz8QtJz1EJ:https://nacoesunidas.org/estudo-da-oit-mostra-salto-no-numero-de-trabalhadores-migrantes-no-mundo/+&cd=3&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br

[7] Os dados do Brasil exemplificam esse aumento: “(...) em 2017, 4.473 feminicídios representaram um aumento de 6,5% em relação a 2016. Conforme o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, os estupros no Brasil cresceram 8,4% de 2016 a 2017, passando de 54.968 para 60.018 casos registrados. Isso quer dizer que ocorreram cerca de seis estupros de uma mulher brasileira a cada dia. (...) De acordo com o Atlas da Violência, publicado em 2018, 4.645 mulheres foram assassinadas no país em 2016. Isso significa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Todavia, há uma diferença de 71% entre a taxa de homicídios das mulheres negras e as não-negras.” (PINASSI, Maria Orlanda. “A radicalidade revolucionária é feminina”. 07/03/2020 Disponível em: https://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/14075-a-radicalidade-revolucionaria-e-feminista?fbclid=IwAR2d0VwM86xmTJ5FNhnZU1-BoWV5nCGCVKHh2FE5NA5YPJzp76Db5mpbXlc)

Em São Paulo, os assassinatos pela polícia aumentaram 23% entre 2019 e 2020 mesmo com a redução da criminalidade, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Ver https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-02/mortes-em-operacoes-policiais-aumentam-no-brasil-apesar-da-quarentena.html

[8] Ka Me parece ser o Max Weber desta China mítica brechtiana. No Brasil, observamos que partidarismos que se colocam como opostos se valem igualmente deste sociólogo: as teses de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e de Fernando Haddad (PT) são ambas fundamentadas em Weber.

[9] “Um bosque não é simplesmente um bosque, pois se constitui de diferentes árvores. Do mesmo modo, o povo não é simplesmente o povo. E de que se constitui o povo? Muito bem. No povo há os funcionários, os copeiros, os proprietários rurais, os funileiros, os comerciantes de algodão, os médicos e os padeiros. Há também os oficiais, os músicos, os marceneiros, os vinhateiros, os advogados, os pastores de ovelhas, os poetas e os ferreiros. Sem esquecer os pescadores, as domésticas, os matemáticos, os pintores, os açougueiros, os farmacêuticos, os químicos, os guardas noturnos, os luveiros, os sapateiros, os professores de idiomas, os agentes de polícia, os jardineiros, os jornalistas, os portuários, os cesteiros, os garçons, os astrônomos, os peleteiros, os quitandeiros, os vendedores de gelo, os jornaleiros, os pianistas, os flautistas, os percussionistas, os violinistas, os acordeonistas, os tocadores de cítaras, os violoncelistas, os violeiros, os trompetistas, os tocadores de instrumentos de madeira, os comerciantes de madeira e os peritos em madeira. E quem já não ouviu falar nos vendedores de tabacaria, nos metalúrgicos, nos lenhadores, nos trabalhadores do campo, nos tecelões, nos pedreiros, nos arquitetos e nos marinheiros? Outros ofícios são os de fiandeiros, telhadores, atores, jogadores de futebol, escafandristas, garimpeiros, escultores, amoladores, cabelereiros de cachorros, hoteleiros, carrascos, escrivãos, carteiros, banqueiros, carroceiros, parteiras, alfaiates, mineiros, criados, desportistas e pilotos” (BRECHT, 1993, pp. 140-1).

[10] Não posso deixar de me lembrar aqui de um episódio da minha própria formação intelectual, no primeiro ano da graduação em Filosofia na USP, e que alguns amigos irão também se lembrar. Um professor, hoje querido, mas que na época foi alvo de muitas críticas e rendeu muitas risadas, assim definia a filosofia, repetindo animadamente em toda e cada aula: “O que é filosofia, senhores? Filosofia é resolução de problemas!”.

[11] Ao que Turandot pergunta:

- Quer dizer que é mais fácil viver como intelectual do que como assaltante?

O tui Nu Shan responde que não há muita diferença. (BRECHT, 1993, p. 119)

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