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A crise do movimento comunista: breves notas sobre a forma partido.


Por Ayrton Otoni



Nos últimos dias, grande parte da esquerda brasileira voltou seus olhos para crise/ruptura do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Com todas as divergências teóricas, nenhum militante pode enxergar essa cisão com algum nível de satisfação. A crise instaurada no Partido Comunista Brasileiro expressa algo relevante e sintomático do último período: o desgaste da forma partidária e as consequências disso para a vida militante.


Apontar o desgaste da forma partidária, não significa aqui, de nenhuma maneira, fazer coro com as teses que defendem o fim de organismos centralizados da classe trabalhadora ou ser mensageiro da "novidade" propondo formas horizontais e rizomáticas (como se propõe a concepção pós-moderna), mas compreender que as condições objetivas exigem mais do que as estruturas partidárias hoje tendem a oferecer. A construção de uma forma organizativa que tenha capilaridade na classe trabalhadora, ainda parece ser motivo de aflição.


1. A máquina de moer militantes.


Sabemos o papel fundamental das organizações de esquerda no processo de recrutamento e formação política, principalmente no que tange ao ingresso de jovens militantes na luta política. As frentes de juventude, as entidades de base, os congressos estudantis, as mobilizações de jovens trabalhadores, são por muitas vezes a porta de entrada para milhares de camaradas nas fileiras da esquerda. Entretanto, é inegável que há tempos os organismos partidários se transformaram em "máquinas de moer militantes". Utilizamos esse termo, não como forma de impacto, mas como um processo real na forma partido. Talvez seja o relato mais comum, pessoas que abandonaram sua militância alegando uma intensificação do adoecimento mental ou de exaustão física, dado processos de manipulação e a impossibilidade de suportar a sobrecarga da construção. Em nossa compreensão, esse processo se dá principalmente por dois motivos: a falta de uma centralidade de atuação das organizações partidárias e o tarefismo.


1.2 A falta de centralidade na atuação das organizações.



Para iniciar o debate sobre a "falta de centralidade na atuação das organizações" é fundamental traçar os motivos que direcionam este erro.


Toda atuação política e revolucionária deve necessariamente se orientar para a transformação da realidade, visando a supressão do sistema capitalista. Entretanto, para que essa atuação seja efetiva, e também que sejam realizadas de maneira correta as mediações necessárias, é preciso compreender de forma assertiva o movimento do real, entender como a práxis deve se desdobrar sobre o atual estágio de desenvolvimento da sociabilidade capitalista.


No último período é notável que a dimensão da produção teórica foi terceirizada dentro das organizações partidárias, com um atraso na consolidação de verdadeiros centros de formação e pesquisas que essas organizações poderiam ser para nortear suas intervenções. É preocupante o quão pouco se produz dentro das organizações estudos sistemáticos sobre a "Crise capitalista”, “atual fase do capitalismo" ou "a composição da classe trabalhadora ". Esses temas se encontram en passant nos programas partidários, ou como jargões em notas políticas ou como mercadorias em um “novo sistema de produção intelectual”. Mas qual o último grande estudo desenvolvido pelos partidos sobre as temáticas? Quando as pessoas inseridas em seus locais de atuação foram provocadas a intervir e produzir sobre esses temas?


Os desenvolvimentos dessas formulações foram delegados aos poucos intelectuais de esquerda nas universidades.


Por outro lado, devido ao vácuo teórico da esquerda brasileira, surgiram à margem das organizações políticas, indivíduos que se propõem a debater esses temas de forma rasteira e superficial. A cada dia nas redes sociais surge um novo "canal" ou "conteúdo" que se propõe a desvendar e estabelecer caminhos para a revolução. Com conteúdo frágil, rápido e muitas vezes contaminado por interpretações pessoais, esse tipo de análise ganha força por ser de fácil produção e consumo, assim como um macarrão instantâneo. Aqui, apesar de alguns poucos exemplos notáveis, ainda tal produção permanece refém da lógica de circulação; rápido e rasteiro focando somente nos seus cliques para obter cada vez mais alcance.


É um fato que os partidos de maneira geral perderam a sua capacidade de produção teórica, atingindo assim diretamente a sua capacidade de orientação prática. Sem centralidade, tudo se torna relevante, e tudo é ao mesmo tempo, nada. Com o objetivo de abraçar todas as "demandas" e se fazer presente em todos os "espaços", as organizações criam dentro de si indivíduos que vivem no entorno de acumular tarefas. O importante é a demarcação estética nos espaços, e falta a precisão de onde e como atuar. A atuação militante é suplantada pelo produtivismo tarefista.


Chegamos então ao segundo ponto: o tarefismo.


1.3 O tarefismo: a criação do militante religioso.


A falta de uma compreensão correta acerca da realidade, produz na lógica partidária o chamado tarefismo. O tarefismo se ancora em uma visão romântica e religiosa da atuação militante. Os debates internos, as formações políticas se tornam momentos raros na vida do militante e são de maneira paliativa "encaixadas" em reuniões organizativas. As ações não visam mais a construção objetiva do processo revolucionário, mas passam a se agarrar na ideia de sacrifício, o sujeito heróico que se enfia diariamente em tarefas, achando que todos os dias contribui para construção de um pedaço do paraíso. Neste ponto, não existe mais a divisão científica do trabalho, tudo se torna uma amálgama de abstrações, intenções e reverenciamento de ações voltadas para a afirmação abstrata do “Partido”. A ideia de partido como um organismo de amplo debate e unidade estratégica é escravizada de maneira mecânica pelo pragmatismo.


Da reunião pragmática para a eleição, da eleição para a panfletagem, da panfletagem para a próxima reunião de balanço e o balanço serve sempre como uma exaltação romântica da pura ação, ou como define a sátira poética de Maiakóvski: "Eles estão em duas reuniões ao mesmo tempo. A vinte reuniões por dia – e às vezes mais – temos que assistir. Por isso somos forçados a dois nos dividir! Uma metade está aqui, a outra lá longe". Esse tipo de "prática" se preocupa somente com as questões mais incipientes, não consegue dar um salto para além da cotidianidade, unificar as questões imediatas com as necessidades gerais da humanidade, se rendem ao mero "materialismo" formal.


O tarefismo muitas vezes é consagrado na estrutura partidária através de "cargos". Os cargos não são mais responsabilidades coletivas, mas dádivas divinas a quem sacrifica maior parte do seu tempo. A lógica produtivista e da recompensa passa a ser um imperativo dentro do partido.


Quem ousar a ir contrário a esse modus operandi, é rapidamente expelido da máquina partidária. A "quebra" constante de militantes é um sintoma, e ao não ter nenhuma assistência acabam por virar céticos e até mesmo críticos das organizações de esquerda.


As direções partidárias na maioria das vezes são compostas por militantes que sobreviveram a esse processo e agora são prestigiados com a sua benção: dirigir. Dirigir é compreendido por muitos como um status, um conforto, por isso um lugar a ser defendido a qualquer custo, que formou ao longo dos anos uma "aristocracia", parte da direção que se coloca acima das bases e se tornam imunes a críticas. Obviamente, essa análise e caracterização não se estende a todos (as) que estão em algum cargo de direção, mas é um movimento recorrente nas organizações. Assim, chegamos ao nosso problema final: o taticismo.


1.4 O taticismo: a pequena política e o oportunismo.


O taticismo se define pelo seu caráter idealista, onde visa suplantar as dimensões estratégicas em detrimento das questões práticas. Todo taticista é necessariamente um imediatista. Ao contrário do que defende a boa tradição marxista, que as táticas são mediações subordinadas a um objetivo final (estratégia), os taticistas tentam encaixar seus esquemas a priori na realidade. Ou seja, as medições passam a subordinar o movimento real e distorcer os fatos para enquadrar em esquemas ideais, pragmáticos e subjetivos.


No partido o taticismo assume sua pior forma, os debates sobre as questões estratégicas - que como demonstrado tem pouca força nas organizações - passam a ser substituídos pela pequena política, pela disputa nos bastidores e pela conspiração. As direções contaminadas, passam a tratar os movimentos e autonomia de crítica das bases como um processo sempre de ataque à estrutura partidária. Qualquer situação que se desloque dos esquemas ideais do partido, são agora vistos como desvio. Ao passo que, as alterações de posições e os erros das direções são justificadas a todo momento como "questões táticas momentâneas" ou "espere a hora certa para criticar, pois estamos enfrentando mais um problema que nós criamos". Não cabe aqui nenhuma defesa ao "basismo" ou entender que os militantes que não ocupam cargos de direção estão sempre corretos, mas apontar que as direções deveriam ser necessariamente, os indivíduos que conseguem ter um nível mais "destacado" de consciência nas organizações, capazes de unificar a clareza do objetivo estratégico com a flexibilidade das posições táticas, mas acabam cedendo aos vícios das estruturas partidárias. Os dirigentes se tornam cada vez mais ajudantes de obras do taticismo e base se torna mera argamassa desse muro de lamentações.


1.4.1 Um exemplo prático do taticismo.


Vamos aqui a um exemplo prático de taticismo. Em Live transmitida pelo Instagram, pela página do PCB-RR, uma fala do Ivan Pinheiro retrata bem esse quadro.


Ivan ao se referir aos erros táticos do PCB, Ivan aponta a alteração do partido em relação a sua estrutura interna. O PCB durante alguns anos se posicionou como um partido de quadros ou posteriormente um partido de quadros revolucionários. O que isso significa? Um partido restrito, no qual compõe necessariamente indivíduos destacados, que formam um núcleo coeso e dirigente, capaz de atuar nos processos como uma vanguarda. Essa posição tática Ivan Pinheiro defende como acertada. Entretanto, essa tese do partido de quadros foi amplamente derrotada nos congressos do PCB, dando lugar a formulação do "partido de massas" ou partido de militantes revolucionários. A tese do partido de massas compreende que o PCB deveria ampliar seus membros para além da vanguarda dirigente, e de seus quadros destacados, incorporando em sua militância, qualquer indivíduo que tenha acordo com as resoluções partidárias.


Por qual motivo citamos a divergência das duas posições. A tese de um partido de quadros como defende Ivan, foi por muito tempo a principal responsável por tornar o Partido Comunista Brasileiro um partido pequeno, restrito a "intelectuais" e com pouca inserção na realidade brasileira. Com a alteração para um partido de militantes revolucionários foi nítido o crescimento do PCB, principalmente nas suas "frentes de massas" (os coletivos e a juventude).


Agora vejam como funciona o taticismo. Ivan acusa o Comitê Central de reduzir o partido atacando os coletivos e querendo manter no organismo partidário somente um grupo restrito de militantes, e acusa o comitê central de ser composto pôr em sua maioria de acadêmicos e vanguardistas. Sendo que, a posição tática de Ivan contribuiu justamente por anos para o encastelamento das direções partidárias. Ivan guiado pela sua formulação a priori não consegue enxergar que sua posição é contraditória e ataca justamente a ampla maioria de militantes que hoje estão ao seu lado.


Ao passo que, o "C.C" do PCB altera sua posição tática de defesa de um partido de militantes revolucionários - na tentativa de frear as cisões - e passa a defender um partido restrito. Com a justificativa de que nem todos os membros dos coletivos partidários são integrantes do partido. Um argumento interessante, que poderia se basear nas resoluções partidárias, mas o Comitê Central não questiona a legitimidade dos integrantes dos coletivos enquanto membros do partido, quando estão desempenhando seu papel de tarefismo e de forma acrítica a estrutura partidária. Muito pelo contrário, em diversos momentos anteriores ao seu crescimento atual, as funções entre direção dos coletivos e direção do partido eram quase indissociáveis. E um movimento interessante ocorre desta transição, se antes para garantir a verticalidade diretiva era necessário confundir esses postos, hoje para a manutenção dessa mesma verticalidade se faz necessário separar. E em ambos os casos, o compromisso não é com a oxigenação da práxis partidária, mas com a manutenção de sua verticalidade.


Percebam, o taticismo não faz uma avaliação concreta das necessidades da forma de ser do partido correlacionada com uma finalidade estratégica, ela se altera de acordo com os interesses privados de algum punhado de indivíduos e, ao mesmo tempo se engessa perante o dinamismo da realidade, visto que tais interesses privados não se sintonizam com interesses gerais da classe trabalhadora. A relação vanguarda X classe aqui se altera para a relação dirigentes X dirigidos, simplesmente. E percebam mais, às duas visões (a cúpula do PCB-RR e do CC do PCB) acabam de ter um acordo em comum, a defesa de um partido restrito, somente composto por aqueles que se movimentam de acordo com seus interesses e, quando muito, avançam para a defesa da democracia em abstrato, colocando a agitação a frente da concretude das relações. Os dois campos se comportam como moradores de "um hotel de luxo à beira de um abismo".


A crítica aqui ganha, por vezes, outra conotação interessante: tudo passa a ser definido como uma "crise de direção". Em nenhum momento é feito um balanço do processo interno da estrutura que gestou essa forma de se "dirigir" os processos. Bastaria agora substituir uma cúpula pela outra, para em um passe de mágica, resolver os problemas. Posição equivocada, quando é nítido que essas questões são justamente fruto e responsabilidade desta forma partido, que permite a produção do tarefismo, direções oportunistas e posições taticistas.


Por este motivo, ambos os lados estão administrando de forma tão equivocada a crise que hoje se estabelece no Partido Comunista Brasileiro. Devido à pressa da autocracia para manter suas posições e cargos, ou da fração de consolidar como um novo organismo diretivo, as bases se encontram à deriva, sem tempo de aprofundar um balanço qualificado. Enquanto os aristocratas esperneiam:


"Tomem um lado, façam a defesa histórica do partido".


Mas a "defesa histórica" se revela como a manutenção de interesses particulares, sustentados pela condução ou apagamento de interesses coletivos. Como disse o poeta Brecht, “Assim marchou o Velho, travestido de Novo”.


A estrutura partidária contaminada por vício pequeno burgueses, passa então a reproduzir a prática de um partido burguês. Em nossa posição é necessária uma profunda reflexão sobre os motivos e consequências que de tempos em tempos geram as crises partidárias, um processo de crítica e autocrítica da condução e dos objetivos estratégicos das organizações comunistas. Utilizamos a crise do Partido Comunista Brasileiro, somente como um exemplo prático desta falência dos métodos implementados em diversas organizações.


Não existe nenhuma receita de bolo, nem a proposta de criar um novo instrumento artificial. Finalizamos essas breves considerações sobre a falência das estruturas partidárias propondo uma reflexão:


A quem serve e qual o objetivo de uma organização comunista?



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