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O 8 de janeiro e o jardim da democracia 


 

por Lígia Cerqueira Fernandes, Ayrton Otoni e Pedro Badô 

Imagem: José cruz - Agência Brasil 

Os sites de notícias e os canais de televisão inundam o dia de ontem de referências ao ocorrido em 8 de janeiro de 2023. Tenta-se criar uma atmosfera de que a data tornou-se um marco histórico, como se, coletivamente, estivéssemos diante de uma “marca indelével na história da democracia constitucional do país”, como dito pela ex-ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber. 

 

Entretanto, estamos diante de um marco histórico oficialista, sintético. Grandes nomes da institucionalidade frequentaram cerimônias feitas em salões dos lindíssimos palácios de Brasília numa tentativa de divulgar a emulação de um marco efetivo, coletivo e de impacto na vida das amplas massas populares. 

 

Abrir um franco embate contra o falso universalismo da democracia burguesa é uma questão essencial, principalmente em tempos onde a forma democrática é tomada como um fim em si. Em nossos dias, muito mais que no passado, a democracia toma um conteúdo profundamente manipulatório e figura falsamente como a etapa final da história humana, a qual – segundo seus apologetas – precisa apenas de alguns ajustes para atingir a perfeição. 

 

Para alguns leitores, pode parecer nítida a ideia que a democracia representa somente uma forma específica de gestão da luta de classes, entretanto, como aponta Lênin: “trata-se exatamente de que não devemos encarar como superado para a classe, como superado para as massas, aquilo que está superado para nós”. A burguesia, com seu poder ideológico, se esforça cada vez mais para tentar tornar universal seus interesses particulares. 

 

Se olharmos para os entusiastas dos eventos de ontem, veremos que eles são os mesmos que abriram espaço para a consolidação do golpe militar no Brasil de 1964, são os mesmos que, em nome da democracia, apoiam massacres de povos inteiros, tal como aquele que ocorre hoje em Gaza. Eles encontram na democracia a sua redenção, enxergam nela um suporte ideológico mais confortável para dominação, ainda que estejam sempre dispostos a abrir mão de tais princípios vazios para alcançar seus interesses materiais. 

 

Todos aqueles jornalões e comentadores políticos que, nas últimas décadas, vinham insuflando os sentimentos mais conservadores entre a opinião pública – principalmente através do pânico moral disfarçado de cruzada anticorrupção –, se assustaram em 2018 com o monstrengo reacionário que ajudaram a criar. É precisamente essa gente que agora quer usar a data para limpar sua reputação. É essa gente que mais repercute a máxima oficialista: “8/1, a salvação da democracia brasileira!”. 

 

Porém, não há liga, não há um corpo que sustente essas comemorações insossas. Não há uma ligação fática ou qualquer proximidade entre as festividades e a realidade da vida dos brasileiros. Controlado o levante do brasileirinhos patriotas no dia 8 de janeiro, o que se preservou foram os prédios frios e estéreis do poder político. E as obras de arte, recuperadas depois do quebra-quebra bolsonarista, permanecem enclausuradas nas redomas de vidro dos palácios modernistas do Plano Piloto de Brasília. Os vasos chineses, as esculturas e quadros continuam distantes da massa de pessoas desse país. Continuam a gerar um certo tipo de desprezo popularesco porque permanecem sendo itens vinculados diretamente à vida suntuosa de quem habita a capital da República. 

 

Devemos notar como, nos últimos anos, os ministros do Supremo Tribunal Federal suspenderam suas intrigas pessoais para que, unidos, pudessem se defender dos ataques bolsonaristas. E agora, eles colhem os louros por terem sido o mais eficaz freio à destrutividade de Bolsonaro. O STF, principalmente na figura de Alexandre de Moraes, chafurda em prestígio porque soube aproveitar a oportunidade de se lançar como herói no momento em que o Congresso Nacional, hipnotizado pelo tamanho do orçamento que abocanhava, era absolutamente conivente com as ações do governo. É por isso que em um dos eventos de ontem, em tom professoral, Rosa Weber, convidada a discursar no plenário do STF, citou Voltaire, com seu impecável sotaque, “qu'il faut cultiver notre jardin”, emendando logo depois: “é preciso cultivar o jardim da democracia”. 

 

O Congresso Nacional, por sua vez, manifestou-se protocolarmente. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em evento oficial, fez mais um de seus discursos empolados em defesa da democracia. O presidente da Câmara de Deputados, Arthur Lira, criou um pretexto para não ter que comparecer à solenidade e não ter que se desgastar com sua base de apoio bolsonarista. Mas a verdade é que toda essa conversinha democrática importa menos ainda para eles do que para os juristas do STF. O que move verdadeiramente os parlamentares é manter, a todo custo, a quota robusta de poder conquistada sob o governo anterior. O seu ridículo servilismo diante de Bolsonaro era o preço pago por controlarem ainda mais o orçamento. E não restam dúvidas de que, diante da opinião pública, o Legislativo permanece sendo o mais medíocre, mesquinho e acanalhado dos poderes da República. Seus métodos chantagistas sempre ficam mais expostos aos olhos da nação. Na verdade, o único princípio mais sólido defendido por Arthur Lira e Rodrigo Pacheco é a implantação do modelo semipresidencialista de governo, o que, mais uma vez, só expressa a voracidade do Congresso Nacional em tomar definitivamente as rédeas do poder republicano. 

 

Enquanto isso, o presidente da República segue convicto em sua covardia política. Até agora, finge não ter ouvido os gritos de “sem anistia!” no evento de sua posse em 1 de janeiro de 2023. Na verdade, Lula nomeou José Múcio, um sabujo dos militares, como seu ministro porque tem medo da caserna. A questão é que, mais do que nunca, temos diante de nós a oportunidade de enquadrar as forças de repressão do Estado, a reserva moral e material da autocracia brasileira. A covardia de Lula está deixando passar a única chance que tivemos nas últimas décadas de meter a mão no bolso dos gorilões das Forças Armadas, de arrancarmos deles todos os privilégios que as altas patentes sempre tiveram nesse país, de por fim no desperdício de dinheiro que sustenta um grupo de indivíduos que só têm duas funções: conspirar e trucidar. Além disso, Lula está deixando escapar entre os dedos a melhor oportunidade que temos de extirpar a polícia militar – esta vanguarda do genocídio negro –, já que tais forças estiveram metidas até o pescoço com o bolsonarismo em todas as unidades da Federação. 

 

Aqueles que prometeram vencer Bolsonaro e salvar a democracia, não parecem tão preocupados com o conteúdo material dessa democracia. Dia após dia, cedendo pouco a pouco às chantagens mais mesquinhas das forças do capital, a chamada vitória da democracia se parece cada vez mais com uma mera administração – menos brutal, é verdade – da tragédia brasileira. 

 

Diante de tudo isso, até agora, não pudemos saber exatamente a que tipo de jardim Rosa Weber se referia em seu palavrório democratista. Mas certamente, a ministra deve estar bem acostumada aos gramados amplos, áridos, sem sombras e esturricados pelo sol que se estendem diante da Praça dos Três Poderes. Mas isso é apenas especulação nossa. 

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