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Planejamento socialista após o colapso da União Soviética

por Allin Cottrell e W. Paul Cockshott

Imagem: Ian Whadcock/The Economist

O presente texto foi originalmente publicado n’O Minhocário, que, gentilmente, nos autorizou republicá-lo. Se trata de um trabalho preparado para a conferência sobre The socialist calculation debate after the upheavals in Eastern Europe (O debate do cálculo socialista após os tumultos no Leste Europeu), Centre d’études interdisciplinaires Walras–Pareto, Universidade de Lausanne, 11–12 de dezembro de 1992. Publicado em Revue Européenne des Sciences Sociales, tomo XXXI, n. 96, 1993, p. 167–185.


Tradução: Everton Lourenço



Para muitas pessoas, deve parecer que o colapso da União Soviética (e das economias planificadas do Leste Europeu) teria efetivamente encerrado o debate do cálculo socialista, com um veredito decisivo em favor do mercado. Argumentamos aqui que essa conclusão não se justifica. O socialismo soviético apresentava uma forma específica de planejamento com deficiências próprias, e seu colapso não exclui mecanismos alternativos de planejamento socialista. Neste artigo apontamos algumas das limitações específicas do modelo soviético e oferecemos algumas justificativas para a visão de que existem métodos alternativos de planejamento que são tecnicamente viáveis e potencialmente eficientes e justos.


1. Introdução


O estado atual do debate sobre o cálculo socialista parece teoricamente insatisfatório. Após um período bastante longo em que o debate permaneceu adormecido, por assim dizer, uma série de contribuições importantes foram feitas em meados da década de 1980. Nessas contribuições, a sabedoria convencional do início do período pós-guerra — segundo a qual Lange e outros teriam demonstrado efetivamente como uma economia socialista poderia imitar a alocação de recursos de um sistema de mercado competitivo — foi desafiada de maneira aguda. Lavoie (1985), em particular, defendeu longamente que a argumentação austríaca pela impossibilidade do cálculo econômico racional no socialismo teria sido mal compreendida e, portanto, não teria sido abordada de verdade pelos autores neoclássicos responsáveis ​​por aquela avaliação anterior. [1] A partir de um ângulo um tanto diferente, Economics of feasible socialism (“A economia do socialismo viável”, 1983), de Nove, apresentou uma argumentação mais pragmática pela impossibilidade de um planejamento central eficaz. Embora o argumento de Nove não se baseasse em Mises ou Hayek – e, ao contrário dos austríacos, ele defendesse uma variante de socialismo de mercado –, não obstante, suas críticas ao planejamento central e as dos neo-austríacos se reforçavam mutuamente. E então, é claro, não muito tempo depois desses argumentos terem sido apresentados, testemunhamos o abandono do planejamento central na antiga União Soviética e na Europa Oriental.

Hoje em dia parece ser amplamente aceito como dado o fato de que esses últimos eventos teriam validado os argumentos antiplanejamento que os precederam. Mas isso é uma falácia próxima do post hoc ergo propter hoc [“ocorreu depois, logo, foi causado por”]: é como se, após o desastre de Hindenburg, alguém tivesse dito: “veja, eu lhe disse que é impossível construir uma máquina segura para transportar um grande número de pessoas pelo ar.” Pode ser que, no caso do planejamento central, o argumento da impossibilidade esteja correto (embora apresentemos argumentos no sentido contrário), mas isso precisa ser estabelecido em bases teóricas – e, desse ponto de vista, sugerimos que os argumentos anti-planejamento ainda não foram devidamente testados no debate.

Não é de surpreender que os economistas neoclássicos se contentem em seguir a marcha da História como ela se apresenta hoje – isto é, que eles tenham perdido todo o interesse no debate do cálculo socialista como tal, e que tenham voltado sua atenção para os problemas de transição para um sistema de mercado nos antigos Estados socialistas. Contudo, seria de se esperar que os economistas socialistas desejassem defender o planejamento que esteve por muito tempo no centro de seus argumentos, ou que pelo menos investigassem mais profundamente os argumentos dos críticos do socialismo antes de admitir a derrota. No entanto, tem havido pouquíssimos trabalhos nesse sentido: parece até que se seguiu nessa direção no automático. Examinando as edições dos últimos anos de periódicos como Socialist Review, Rethinking Marxism, Socialism and Democracy, New Left Review, Economy and Society e Socialist Register, descobrimos que o único autor que oferece uma defesa do planejamento socialista – além dos presentes autores (Cockshott e Cottrell, 1989) – é Ernest Mandel, em suas réplicas (1986, 1988) a Alec Nove e em seu artigo (1991) sobre a União Soviética. Neste último, Mandel argumenta, como nós, que a queda do planejamento soviético não indica o fracasso do planejamento socialista em geral. No entanto, a fundamentação dele é bem diferente da nossa. Em particular, não nos sentimos confortáveis ​​com as afirmações dele de que “o socialismo nunca existiu na URSS” (1991: 194); e que “as formas específicas de planejamento central soviético tinham [a extensão das dimensões, poder e privilégios da burocracia stalinista] como seu principal propósito social” (197). Tais alegações parecem preservar a virgindade teórica do socialismo, por assim dizer, ao custo de separar as ideias socialistas da realidade histórica. É melhor, em nossa visão, admitir que a URSS foi socialista, mas argumentar que ela não representava o único modelo possível de socialismo.

Não só tem havido bem poucas tentativas de defender o planejamento nos periódicos socialistas ultimamente, como tem havido pouquíssima discussão substantiva sobre o planejamento econômico em si. As raras observações que se encontram praticamente não passam de repetição acrítica das conclusões de Nove e dos neo-austríacos, juntamente do ocasional comentário melancólico sobre o “planejamento democrático”. Kenworthy (1990), por exemplo, ao discutir o “socialismo burocrático de planejamento centralizado” segue a moda padrão ao falar sobre “a impossibilidade para aqueles no centro de coletar da base informações precisas e atualizadas suficientes para projetar um plano bem coordenado que faça a alocação de recursos de maneira eficiente” (p. 110). Ele então deixa um parágrafo sobre o “socialismo democrático de planejamento centralizado”, que diz ser “o modelo mais comumente defendido pelos marxistas”, mas não oferece nenhum comentário sobre como o elemento democrático poderia superar a questão informacional levantada em relação ao planejamento burocrático.

O mesmo vale para livros recentes que defendem o socialismo; na maioria das vezes, ou o planejamento econômico não é sequer mencionado (por exemplo, Bronner, 1990), ou é rapidamente ignorado com um contra-argumento superficial (Levine, 1984). Uma exceção é Devine (1988), que tenta traçar um caminho intermediário entre o socialismo de mercado (sobre o qual ele produz uma crítica pertinente) e o planejamento central, por meio de seu conceito de “coordenação negociada”. Os argumentos de Devine são interessantes, mas nos parece que sua coordenação negociada, embora aplicável a algumas questões, é engessada demais para a regulação da economia em geral.

Przeworski (1989) comentou que “os partidos políticos na sociedade capitalista que carregam o rótulo socialista abandonaram até mesmo a aparência de uma alternativa”: isso parece ser verdade não apenas para partidos políticos organizados, mas também, com pouquíssimas exceções, para intelectuais socialistas. [2] Nosso objetivo neste artigo é suprir essa falta, que envolve apresentar duas linhas de argumentação. Primeiro, esboçamos os contornos de um sistema de planejamento adequado e examinamos sua viabilidade técnica, dada a moderna tecnologia de computação. Em segundo lugar, oferecemos uma análise de por que o planejamento soviético “fracassou”, em termos dos fatores ideológicos, sociais e técnicos específicos que impediram os soviéticos de desenvolver o tipo de sistema que defendemos. [3]


2. Elementos da nossa proposta


Em primeiro lugar, será útil estabelecer as condições gerais necessárias para operar um sistema eficaz de planejamento econômico central, deixando de lado por um momento a questão de saber se elas podem de fato ser realizadas em qualquer sistema viável. Adotando uma perspectiva da economia com base em [tabelas de] insumos-produtos, [3b] o planejamento central efetivo requer os seguintes três elementos básicos:


1. Um sistema para se chegar (e periodicamente revisar) um conjunto de metas para os produtos finais, que incorpore informações tanto sobre as preferências dos consumidores quanto sobre os custos relativos de se produzir bens alternativos (deixando em aberto num primeiro momento a métrica apropriada para esses custos).


2. Um método de cálculo das implicações de qualquer conjunto de produtos finais sobre os números brutos necessários de cada material. Neste estágio também deve haver um meio de verificar a viabilidade do conjunto resultante de metas de produção bruta, à luz das restrições impostas pela oferta de mão de obra e pelos estoques existentes de meios de produção fixos, antes que essas metas sejam encaminhadas às unidades produtivas.


3. Um sistema de monitoramento, recompensas e sanções que garanta que as unidades produtivas dispersas cumpram o plano em sua maior parte.


A provisão desses elementos envolve uma série de pré-condições, notadamente um sistema adequado de coleta e processamento de informações econômicas dispersas e uma métrica racional de custos de produção. Devemos também observar de imediato o ponto importante e inteiramente válido enfatizado por Nove (1977 e 1983): para um planejamento central eficaz, é necessário que os planejadores sejam capazes de realizar os tipos de cálculos indicados acima em detalhes desagregados por completo. Na ausência de vínculos de mercado horizontais entre as empresas, a administração no nível da empresa “não tem como saber de que a sociedade precisa a menos que o centro a informe” (Nove, 1977: 86). [4] Por conseguinte, se o centro não for capaz de especificar um plano coerente em um nível suficiente de detalhes, o fato do plano poder estar “equilibrado” em termos agregados é de pouca utilidade. Mesmo com a melhor boa vontade do mundo por parte de todos os envolvidos, não há garantia de que as decisões de produção específicas tomadas no nível de cada empresa irão se encaixar de maneira adequada. Esse ponto geral é confirmado por Yun (1988: 55), que afirma que, em meados da década de 1980, a Gosplan conseguia estabelecer balanços materiais para apenas 2.000 bens em seus planos anuais. Quando os cálculos da Gossnab e dos ministérios industriais são incluídos, o número de produtos rastreados sobe para cerca de 200.000, ainda muito aquém dos 24 milhões de itens produzidos na economia soviética na época. Esta discrepância significava que era “possível que as empresas cumprissem os seus planos no que diz respeito à nomenclatura dos artigos que haviam sido direcionados a produzir, e ao mesmo tempo falhassem em criar produtos imediatamente necessários a usuários específicos”.

Nossa argumentação abaixo envolve lidar com esse emaranhado específicamente: embora concordemos que “em um modelo basicamente não mercantil, o centro precisa descobrir o que precisa ser feito” (novembro de 1977: 86), e aceitemos o relato de Yun sobre o fracasso da Gosplan em fazê-lo, contestamos a afirmação de Nove de que “o centro não tem como fazer isso em micro detalhes” (ibid.).

Nossas propostas básicas podem ser apresentadas de forma bem simples, embora peçamos ao leitor que tenha em mente que não temos espaço aqui para os refinamentos, qualificações e elaborações necessários (esses são desenvolvidos detalhadamente em Cockshott e Cottrell, 1993). Em uma forma esquemática, as propostas são as seguintes.


2.1. O tempo de trabalho como unidade social básica de contabilidade e métrica de custos


A alocação de recursos para as diversas esferas da atividade produtiva toma a forma de um orçamento social de mão de obra. Ao mesmo tempo, o princípio da minimização do tempo de trabalho é adotado como critério básico de eficiência. Ou seja, estamos de acordo com Mises (1935: 116) sobre como o cálculo socialista racional exige “uma unidade de valor objetivamente reconhecível, o que permitiria o cálculo econômico em uma economia onde nem o dinheiro nem trocas estivessem presentes. Somente o trabalho poderia ser concebivelmente considerado como tal.” Discordamos, é claro, da afirmação subsequente de Mises de que mesmo o tempo de trabalho não poderia, no fim das contas, desempenhar o papel de “unidade objetiva de valor”. Rebatemos seus dois argumentos nesse sentido – a saber, que o cálculo do tempo de trabalho levaria necessariamente à subvalorização de recursos naturais não reproduzíveis e que não haveria maneira racional (a não ser por meio de um sistema de taxas de salários determinadas pelo mercado) de reduzir a mão de obra de diferentes níveis de habilidade a um denominador comum – em outra publicação (Cottrell e Cockshott, 1993a).


2.2. Sistema de distribuição baseado em cupons de trabalho


De Marx tomamos a ideia do pagamento do trabalho em ”cupons de trabalho” (ou “tokens”, “fichas” de trabalho) e a noção de que os consumidores possam retirar do fundo social bens que tenham um conteúdo de trabalho equivalente à sua contribuição de trabalho (após a dedução de impostos para compensar os usos comunais do tempo de trabalho: acumulação de meios de produção, bens e serviços públicos, apoio aos que não podem trabalhar). Prevemos um sistema de remuneração basicamente igualitário; mas, na medida em que este se afasta do igualitarismo (ou seja, alguns tipos de trabalho seriam recompensados com mais de um cupom por hora, e alguns com menos que isso), a conquista do equilíbrio macroeconômico exige, entretanto, que a emissão total de cupons de trabalho seja equivalente ao total de trabalho realizado em cada momento. Também sugerimos que o sistema de tributação mais adequado em tal contexto seria um imposto fixo por trabalhador – uma taxa uniforme de adesão à sociedade socialista, por assim dizer. Este imposto (líquido com relação às transferências para os não trabalhadores) deveria, de fato, “cancelar” o suficiente da atual emissão de cupons de trabalho para deixar os consumidores com cupons disponíveis ​​suficientes para comprar a produção de bens de consumo no seu valor imediato. (Este ponto será desenvolvido mais adiante.)


2.3. Decisões democráticas sobre as principais questões de alocação


A alocação do trabalho social às amplas categorias de uso final (acumulação de meios de produção, consumo coletivo, consumo pessoal) é um material adequado para a tomada democrática de decisões. Isso pode assumir várias formas: votação direta em categorias específicas de despesas em intervalos adequados (por exemplo, sobre aumentar, reduzir ou manter a proporção de trabalho social dedicada ao sistema de saúde); votação entre diversas variantes de planos pré-equilibrados; ou competição eleitoral entre “partidos” com plataformas distintas no que diz respeito às prioridades de planejamento.


2.4. Algoritmo dos bens de consumo


Nossa proposta nesse sentido pode ser descrita como “Lange mais Strumilin”. De Lange, tomamos uma versão modificada do processo de “tentativa e erro”, pelo qual os preços de mercado dos bens de consumo são usados ​​para guiar a realocação do trabalho social entre os diversos bens de consumo; de Strumilin tomamos a ideia de que no equilíbrio socialista o valor de uso criado em cada linha de produção deve estar em uma proporção comum ao tempo de trabalho social gasto. [5] A ideia central é esta: o plano solicita a produção de algum vetor específico de bens de consumo final, e esses bens são marcados com seu conteúdo de trabalho social. Se a oferta planejada e as demandas dos consumidores pelos bens individuais coincidirem quando os bens forem precificados de acordo com seus valores de trabalho, o sistema já está em equilíbrio. Em uma economia dinâmica, no entanto, isso é improvável. Se a oferta e a demanda forem desiguais, a “autoridade de mercado” para os bens de consumo é encarregada de ajustar os preços, com o objetivo de alcançar um equilíbrio (aproximado) de curto prazo, ou seja, os preços dos bens em falta recebem um aumento enquanto os preços são reduzidos em caso de excedentes. [6] Na próxima etapa do processo, os planejadores examinam as relações entre o preço de equilíbrio no mercado e o valor de trabalho nos vários bens de consumo. (Observe que ambas as magnitudes são denominadas em horas de trabalho; o conteúdo de trabalho no último caso e os cupons de trabalho no primeiro). Seguindo a concepção de Strumilin, essas razões devem ser equivalentes (e iguais à unidade) no equilíbrio de longo prazo. O plano de bens de consumo para o próximo período deve, portanto, exigir a expansão da produção daqueles bens com relação preço/valor acima da média e redução da produção daqueles com essa relação abaixo da média. [7]

Em cada período, o plano deve ser balanceado, usando métodos de insumos-produtos ou um algoritmo de balanceamento alternativo. [8] Ou seja, as quantidades brutas de produção necessárias para sustentar o vetor alvo dos produtos finais devem ser calculadas antecipadamente. Isso contrasta com o sistema de Lange (1938), no qual a própria coerência do plano – e não apenas sua otimização – parece ser deixada para “tentativa e erro”. Nosso esquema, entretanto, não impõe a exigência irracional de que o padrão de demanda dos consumidores seja perfeitamente antecipado ex ante [antecipadamente]; o ajuste a esse respeito é deixado para um processo iterativo que ocorre em tempo histórico. [9]

O esquema proposto como um todo é apresentado em forma sinótica na Figura 1.


Esse esquema atende à objeção de Nove (1983), que argumenta que os valores-trabalho não poderiam fornecer uma base para o planejamento, mesmo que forneçam uma medida válida do custo de produção. O ponto de Nove é que o conteúdo de mão de obra por si só não nos diz nada sobre o valor de uso de diferentes bens. Claro que isso é verdade, [10] mas isso significa apenas que precisamos de uma medida independente para as avaliações dos consumidores – e o preço, em cupons de trabalho, que equilibra aproximadamente a oferta planejada e a demanda dos consumidores, fornece justamente essa medida. Da mesma maneira, podemos responder a uma observação feita por Mises em sua discussão sobre os problemas enfrentados pelo socialismo sob condições dinâmicas (1951: 196ff). Um dos fatores dinâmicos que ele considera é a mudança na demanda dos consumidores, a propósito de que ele escreve: “se o cálculo econômico e, com ele, uma apuração aproximada dos custos de produção fossem possíveis, então, dentro dos limites das unidades de consumo totais atribuídas a ele, cada cidadão individual poderia ter a permissão de demandar aquilo que quisesse […]” Mas, continua ele, “uma vez que, no socialismo, tais cálculos não são possíveis, todas essas questões de demanda precisam necessariamente ser deixadas para o governo”. Nossa proposta permite precisamente as escolhas dos consumidores que Mises afirma não estarem disponíveis.


3. Viabilidade do cálculo


[Nota do Minhocário: O trecho abaixo faz várias referências à tecnologia informática disponível em 1992/1993, a época em que o artigo foi escrito e publicado. Incluímos cálculos próprios nas notas [11], [13] e [14], que extrapolam o tempo de execução desses algoritmos para a tecnologia informática disponível em 2018, época em que traduzimos outros artigos clássicos de Cockshott e Cottrell onde esses números apareciam.]


3.1. Cálculo de valores-trabalho

 

As propostas acima partem do pressuposto de que seja possível calcular o conteúdo de trabalho de cada produto na economia. Em princípio o problema admite solução, uma vez que se tem n valores-trabalho desconhecidos e relacionados entre si por um conjunto de n funções de produção lineares [e, na Matemática, em sistemas de equações lineares, um sistema possui solução quando o número de equações é igual ou maior que o número de incógnitas]. A dificuldade não está no princípio, mas na escala: quando o número de produtos chega aos milhões, o cálculo envolvido não é trivial.

Se representarmos o problema em termos matriciais clássicos, como uma matriz n por (n + 1), onde as linhas representam os produtos e as colunas representam os insumos (também produzidos) mais a mão de obra direta, a solução analítica das equações usando a eliminação Gaussiana nos coloca um problema que exige n3 operações de multiplicação e um número ligeiramente maior de adições e subtrações. A Tabela 1 fornece os requisitos computacionais para este cálculo, assumindo diferentes tamanhos para a economia. Assumimos que o uniprocessador é capaz de 106 multiplicações por segundo e que o multiprocessador pode realizar 109 multiplicações por segundo.


Número de produtos

Multiplicações

Tempo de processamento em segundos




Uniprocessador

Multiprocessador

1,000

1,000,000,000

1,000

1.0

100,000

15 10

9 10

1,000,000

10,000,000

21 10

15 10

12 10

Tabela 1: Solução Gaussiana para os valores-trabalho [com tecnologia de 1993]


Pode-se ver que, considerando apenas o tempo de computação, mesmo o multiprocessador [de 1993] levaria 1012 segundos, ou mais de trinta mil anos, para produzir uma solução para uma economia de 10 milhões de produtos. [11] Como se isso não bastasse, a situação seria ainda mais complicada graças à memória necessária para armazenar essa matriz, que cresce na proporção de n2. Como as maiores memórias viáveis [em 1993] são da ordem de 1010 palavras, isso estabeleceria um limite para o tamanho do problema que poderia ser tratado em cerca de 100.000 produtos.

Se, no entanto, levarmos em conta o quanto a matriz tende a ser esparsa (ou seja, a enorme proporção de entradas zeradas, quando a matriz é especificada em detalhamento completo), o problema se torna mais tratável. Suponhamos que o número de diferentes tipos de componentes que entram diretamente na produção de um único produto seja de nk insumos, onde 0 < k < 1. Se assumirmos um valor de 0,4 para k, um número que nos parece ser bem conservador, [12] descobrimos que os requisitos de memória agora crescem na proporção de n(1=k) = n1,4. Se pudermos simplificar o problema ainda mais utilizando técnicas numéricas iterativas (Gauss-Seidel ou Jacobi) para obter soluções aproximadas, obteremos uma função de complexidade computacional da ordem de An1.4 , onde A é uma pequena constante determinada pela precisão que exigirmos para a resposta. [13]

Isso reduz o problema para um nível nitidamente dentro do escopo da tecnologia informática atual [já em 1993], conforme demonstrado na Tabela 2. O requisito mais exigente continua sendo a memória, mas está dentro da faixa das máquinas disponíveis.


Número de produtos

Multiplicações

Palavras da memória

Tempo de processamento em segundos





Uniprocessador

Multiprocessador

1,000

158,489

31,698

0.158

-4 1.6 × 10

100,000

100,000,000

20,000,000

100

0.1

10,000,000

10 6.3 × 10

10 1.2 × 10

63,096

63.10

Tabela 2: solução iterativa para os valores-trabalho (assumindo A = 10) [com tecnologia de 1993]

Disso concluímos que o cálculo dos valores-trabalho é eminentemente viável. [14]


3.2. Alocação de recursos


Se assumirmos que o mix de artigos finais solicitados pelo plano está especificado, bem como as tecnologias disponíveis [para os processos de produção] e os estoques de meios de produção, quão difícil seria computar um plano viável? Por “viável” queremos dizer um plano que seja capaz de, utilizando os recursos disponíveis, produzir no mínimo a produção solicitada. Partindo disso, será que conseguimos determinar se o mix planejado de produtos é inviável, dados os recursos [disponíveis]?

A abordagem clássica para isso é utilizar a Programação Linear [também conhecida como Otimização Matemática], cujos requisitos computacionais infelizmente são proibitivos para uma economia com milhões de produtos. Contudo, se estivermos dispostos a relaxar um pouco nossos requisitos e nos contentar com uma solução “boa” ao invés de uma solução otimizada/ideal, podemos realizar uma simplificação semelhante àquela descrita para os cálculos de valores-trabalho. Uma abordagem seria começar a partir da lista alvo de produtos finais e trabalhar de maneira inversa, para se chegar às produções brutas necessárias que correspondam à lista alvo original (por meio do mesmo tipo de métodos de solução iterativa estabelecidos para os valores de mão-de-obra e explorando o aspecto esparso da matriz de insumos-produtos da mesma maneira). Dado o vetor de produção bruta [de cada produto], fica então simples determinar as necessidades gerais de mão-de-obra e de meios de produção fixos de vários tipos [incluindo os bens intermediários, que nessa etapa já estarão incluídos nos vetores de produção bruta de cada produto]. Se estes requisitos puderem ser atendidos, muito bem; e se não for o caso, então corta-se a lista alvo de produtos finais e tenta-se novamente. Essas etapas são mostradas na forma de um loop no canto inferior esquerdo da Figura 1. Embora seja computacionalmente viável, esse método possui as desvantagens de exigir um ajuste ”manual” do vetor alvo de produção a cada ciclo do loop e de não garantir que todos os recursos sejam utilizados ​​da forma mais completa possível. Uma técnica alternativa preferível, que se baseia em ideias da literatura sobre Redes Neurais, é apresentada em Cockshott (1990). A complexidade dessa abordagem é de An(1+k), assim como na solução iterativa dos valores de mão de obra. Os requisitos computacionais são, portanto, essencialmente os mesmos.

Em que sentido a solução produzida por esse último método [com base em ideias de Redes Neurais] seria uma “boa” solução? O procedimento envolve a definição de uma métrica para o grau de adequação entre o conjunto alvo de produtos finais e o conjunto viável calculado, conforme as restrições dos estoques existentes de meios de produção de vários tipos e pelo tempo de trabalho disponível. O algoritmo então realiza uma busca no espaço [de estados] de planos viáveis, visando maximizar este grau de ajuste. A natureza do algoritmo de busca é tal que ele pode parar em um máximo local em vez de continuar buscando o máximo global – esse é o preço que se paga pela tratabilidade computacional. Não obstante, o fato da solução não ser o plano ótimo ou ideal, mas apenas um bom plano viável, não se trata de um problema sério quando se compara o planejamento com o mercado, pois nenhum mercado real jamais atinge uma estrutura otimizada ou ideal de produção.


3.3. Comparação com a tecnologia computacional existente


Já estabelecemos a escala de recursos computacionais necessários para calcular os valores de mão de obra ou para calcular um plano viável para toda a economia. A partir da Tabela 3 (ver Bell, 1992), podemos ver que a memória e o poder de processamento necessários estão dentro das capacidades das máquinas disponíveis [já em 1993]. Acima, assumimos um multiprocessador capaz de 109 multiplicações por segundo; as taxas de processamento das máquinas mostradas na Tabela 3 variam de 1,6 × 1010 a 3 × 1011 multiplicações por segundo. [Em 2018, o IBM Summit já era capaz de 1.22 x 1017 multiplicações por segundo] Deve-se permitir alguma redução nas taxas de processamento antes de se chegar a um desempenho sustentável para um computador, mas nossa meta de desempenho é claramente realista. Os requisitos de memória também estão dentro do alcance dos produtos atuais. Com computadores modernos, podemos vislumbrar a computação diária de uma lista atualizada de valores-trabalho e a preparação de um novo plano de perspectivas semanalmente. Trata-se de uma reação [consideravelmente] mais rápida do que a maneira como uma economia de mercado é capaz de reagir.

Máquina

Número de processadores

Pico de execução (GFlops)

Preço ($M em 1992)

Memory (GB)

Cray90

16

16

30

16

KSR1

1088

43

30

34

INTEL Paragon

4096

300

55

128

DEC Alpha

1024

150

20

32

Tabela 3: Características de supercomputadores de 1992


[Nota do Minhocário: Apenas à título de curiosidade (e para ilustrar o quanto já avançamos em relação ao paradigma disponível para Cockshott e Cottrell em seus cálculos de 1992/1993), incluímos abaixo os dados equivalentes referentes ao IBM Summit, o supercomputador mais rápido do mundo entre 2018 e meados de 2020]


Máquina

Número de processadores

Pico de execução (GFlops)

Preço ($M)

Memory (GB)

IBM Summit

9216

6 9.96 x 10

200

8 2,53 x 10


4. O modelo soviético de planejamento e seus problemas


Nosso argumento é que os soviéticos, por razões tanto ideológicas como técnicas, não chegaram perto de construir os tipos de sistemas que identificamos como essenciais. É claro que o sistema de planejamento soviético foi bastante eficaz no início. Os soviéticos foram capazes de construir uma base industrial pesada, e em particular uma indústria de armamentos capaz de derrotar a máquina de guerra nazista, em um tempo muito mais curto do que qualquer economia capitalista, embora a um custo muito alto. Naquele estágio de desenvolvimento, métodos de planejamento rudimentares eram adequados: a economia era, naturalmente, muito menos tecnologicamente complexa do que no presente, e os planos especificavam relativamente poucas metas-chave. Mesmo assim, há muitos contos sobre desajustes grosseiros entre oferta e demanda durante o período dos primeiros planos quinquenais; uma enorme expansão dos insumos de mão-de-obra e de materiais significava que os principais objetivos poderiam ser atingidos apesar desses desequilíbrios.

Deve-se notar que os primeiros planos soviéticos não foram elaborados de acordo com o esquema descrito anteriormente. Trabalhar de maneira reversa a partir de uma lista de metas para os produtos finais para se chegar na lista exigida de produção bruta, de forma consistente e em detalhes, estava muito além da capacidade da Gosplan. [15] Muitas vezes, em vez disso, os planejadores começavam a partir de metas que eram, elas mesmas, estabelecidas em termos de produção bruta: tantas toneladas de aço em 1930, tantas toneladas de carvão em 1935, e assim por diante. Esta experiência inicial teve, sem dúvida, um efeito deletério sobre o mecanismo econômico nos anos posteriores. Ela deu origem a uma espécie de “produtivismo”, na qual a geração de resultados generosos de produtos industriais intermediários essenciais passou a ser vista como um fim em si mesmo. [16] De fato, a partir de um ponto de vista com base em insumos-e-produtos, na verdade se deseja economizar os bens intermediários tanto quanto for possível. O objetivo deveria ser a produção de quantidades mínimas de carvão, aço, cimento, etc., que fossem consistentes com o volume desejado de produtos finais.

De qualquer forma, tornou-se cada vez mais evidente, após o período de reconstrução do pós-guerra, que o tipo do sistema de planejamento herdado do início da industrialização era incapaz de desenvolver uma economia dinâmica e tecnologicamente progressiva que satisfizesse as demandas dos consumidores. Certos setores prioritários, como a exploração espacial, apresentaram sucessos impressionantes, mas parecia ser uma característica inerente ao sistema o fato de que tais sucessos não podiam ser generalizados; com efeito, o outro lado da prioridade dada aos setores privilegiados era o rebaixamento da produção de bens de consumo ao papel de demandante residual de recursos. Ao longo das décadas de 1960 e 70, repetidas tentativas de reforma de um tipo ou de outro foram basicamente um fracasso, levando à notória “estagnação” (“zastoi”) dos últimos anos Brejnev [que governou entre 1964 e 1982].

Por que esse resultado? À luz dos argumentos apresentados acima, um ponto que se sugere de imediato é o estado das instalações de computação e telecomunicações soviéticas na época. Ou seja, enquanto argumentamos que um planejamento eficaz e detalhado é possível usando a tecnologia de computação ocidental atual [em 1993], a tecnologia disponível para os planejadores soviéticos na década de 1970 era muito primitiva, em comparação. Este ponto é importante, e voltaremos a ele, mas é apenas parte da história, e algumas outras considerações merecem ênfase.


4.1. Resistência Ideológica a métodos de planejamento racional


É bem conhecido que a adesão oficial soviética à ortodoxia “marxista” colocava obstáculos no caminho da adoção de métodos de planejamento racionais. Novas abordagens para o planejamento eram geralmente vistas com desconfiança, mesmo aquelas que não tinham nada a ver com a introdução de relações de mercado. No que se refere ao método de insumos-e-produtos, Augustinovics (1975: 137) apontou a dupla ironia segundo a qual este método “era acusado de contrabandear o mal do planejamento comunista para dentro da economia democrática livre [com seu uso no ocidente] e o mal da ideologia burguesa para dentro da economia socialista”. Treml (1967: 104) também sugere que a própria ideia de iniciar o processo de planejamento a partir de metas de produção final era vista pelos guardiões oficiais da ortodoxia como sendo orientada para o consumo e, portanto, de alguma forma, uma ideia “burguesa”. De maneira similar, o trabalho pioneiro de Kantorovich sobre programação linear foi por muito tempo rejeitado.

Parece que o pior desse tipo de rejeição ideológica à inovação teórica já havia sido superado por volta de 1959. Tretyakova e Birman (1976: 161) citam 1959 como o ano em que o método de insumos-e-produtos tornou-se oficialmente respeitável; esse foi também o ano em que “Best utilization of economic resources” [Melhor utilização de recursos econômicos’] de Kantorovich, escrito em 1943, finalmente foi publicado. No entanto, mesmo depois de Kantorovich receber o prêmio Lenin em 1965 (junto de Nemchinov e Novozhilov) suas ideias ainda atraíam críticas desinformadas dos ortodoxos. [17] E embora o insumos-e-produtos e a programação linear eventualmente tenham recebido algum grau de bênção oficial, essas técnicas permaneceram marginais no que diz respeito aos verdadeiros procedimentos de planejamento soviéticos. Isto se devia em parte aos problemas computacionais referidos acima, o que significava que os métodos de insumos-e-produtos não tinham como substituir os cálculos muito mais rudimentares do “balanço material” para toda a gama de bens cobertos por este último (que eram, eles mesmos, apenas um subconjunto relativamente pequeno da lista completa de bens produzidos). [18] Observamos algumas outras razões a seguir.


4.2. Desconexão entre “planejamento prático” e pesquisa acadêmica


Nos referimos aqui à bifurcação entre as atividades rotineiras da Gosplan e da Gossnab [19] (desprovidas de uma base teórica adequada e impulsionadas por pressões políticas ad hoc vindas do Politburo [20]) e a hipertrofia da teorização altamente matemática sobre o planejamento nos institutos de pesquisa. Esta disjunção tinha dois lados: por um lado, os “planejadores práticos” parecem ter sido resistentes à inovação mesmo quando sua resistência não era racionalizada em termos ideológicos. Kushnirsky (1982) observa que, embora trabalhos sobre insumos e produtos fossem feitos em dois institutos de pesquisa da Gosplan – o “Instituto de Pesquisa Científica Econômica” e o “Centro Principal de Computação” – a participação neste trabalho pelos verdadeiros departamentos da Gosplan era “mínima”. Uma das razões que ele oferece para isso é que “os planejadores pensam que a determinação dos componentes da demanda final é ainda mais difícil do que a determinação da produção bruta” (p.118). Passar para um sistema de planejamento de produtos finais em primeira instância, como já observamos, marcaria uma mudança substancial em relação ao padrão soviético tradicional – uma mudança que a Gosplan aparentemente relutava em fazer. Como observa Kushnirsky, “uma vez que a demanda por bens e serviços na economia soviética é substituída pela ‘demanda satisfeita’, derivada do nível de produção, os planejadores acreditam serem capazes de determinar os planos de produção com mais precisão do que poderiam fazer com os componentes da demanda final. “(Ibid.).

Novamente, a introdução do Sistema Automatizado de Cálculos de Planejamento (ASPR) no final dos anos 1960 é vista por Kushnirsky como tendo pouco impacto nos procedimentos reais da Gosplan. Ele aponta que “o projeto ASPR não criou novos problemas para os planejadores, uma vez que seu envolvimento foi mínimo” (p.119), e explica que “não há muito espaço para mudanças nas técnicas de planejamento através da ASPR, mesmo que seus desenvolvedores possuíssem as habilidades necessárias para isso. A ASPR precisa seguir a metodologia de planejamento existente e elaborar apenas as alterações aprovadas pela Gosplan. Caso contrário, as técnicas sugeridas não poderiam ser aplicadas, e a Gosplan não pagaria por elas” (p.123). Resumindo, ele observa que a “Gosplan não é o lugar para experimentos” (ibid.).

O segundo aspecto da desconexão reside na natureza abstrata de pelo menos parte do trabalho realizado nos institutos de pesquisa. Estes últimos produziram algumas boas idéias para o planejamento no nível micro (por exemplo, a programação linear de Kantorovich), mas grande parte do trabalho feito sobre o “planejamento otimizado” do sistema como um todo era irremediavelmente abstrato, na medida em que exigia uma especificação prévia de algum tipo de “função de bem-estar social” ou uma medida geral de “utilidade social”. [21] Embora tenham feito pouco progresso nessa tarefa quixotesca, [ver nota 9] os teóricos do “planejamento ótimo” contribuíram para o “esfriamento do interesse” nos métodos de insumos-e-produtos, como descrito por Tretyakova e Birman (1976: 179): “Somente aqueles modelos e métodos que levassem a resultados otimizados/ideais mereciam atenção. Na medida em que se tornou claro quase imediatamente que um modelo ótimo não poderia ser construído com base nos métodos de insumos-e-produtos, muitos simplesmente perderam o interesse por este último”.

Nesse contexto, é interessante notar que S. Shatalin – autor do brevemente celebrado, mas absurdamente impraticável “plano de 500 dias” para a introdução do capitalismo na URSS em 1990 – foi, em uma encarnação anterior, o autor de uma noção igualmente impraticável para otimizar o plano. (Ver o relato de Ellman, 1971, p.11, onde Shatalin é citado como discutindo tanto o insumos-e-produtos quanto o “planejamento ótimo”, e alegando que somente este último seria “realmente científico”).

Em contraste, nossas próprias propostas – embora certamente dependam de sofisticados sistemas informatizados – são relativamente robustas e diretas. Não há nenhuma tentativa de definir a priori um critério de utilidade social ou otimalidade; a “utilidade social” é revelada (a) através de uma escolha democrática sobre a alocação ampla de recursos para os setores, e (b) através do padrão de razões dos preços de compensação de mercado em relação aos valores-trabalho para os bens de consumo.


4.3 A ideia de que técnicas melhoradas evitariam a necessidade de reformas fundamentais


Uma outra razão para o fracasso da tentativa de reforma do sistema soviético de planejamento no período dos anos 1960 ao início dos anos 80 era a idéia – aparentemente mantida pela liderança do PCUS em várias ocasiões – de que a aplicação de novos métodos matemáticos ou computacionais oferecia um meio “indolor” para melhorar o funcionamento da economia, um meio que não perturbaria os fundamentos do sistema existente (ao contrário, digamos, da introdução generalizada de relações de mercado). De fato, métodos técnicos avançados só poderiam trazer dividendos reais no contexto de uma revisão do conjunto do sistema econômico como um todo – o que envolveria, a saber, um reexame e um esclarecimento dos objetivos e da lógica do planejamento, bem como a reorganização dos sistemas de avaliações e recompensas para o desempenho das empresas. Goodman e McHenry (1986: 332) deixam claro que os Sistemas Automatizados de Gestão (ASUPs [na sigla original]) introduzidos a partir do final da década de 1960 foram em grande parte rejeitados como esndo um implante alienígena, cujos propósitos estavam em desacordo com os propósitos reais das empresas sob o sistema existente. Por exemplo, o objetivo idealizado da ASUP de “níveis mínimos e ideais de inventário” entrava em conflito direto com o objetivo tradicional das empresas de reunir “o máximo de suprimentos possível”, e o objetivo da ASUP de “avaliar realisticamente as capacidades”, contrariava o objetivo das empresas de “subestimar a capacidade”. Claramente, teria sido necessária uma reforma audaciosa e abrangente do sistema para tornar os objetivos da ASUP eficazes.

Considere o tipo de esquema de planejamento que descrevemos acima na seção 2, em que a produção é expandida para aqueles produtos que apresentam uma razão acima da média entre o preço de mercado (expresso em cupons de trabalho) em relação ao seu conteúdo em valor-trabalho; e reduzida para aqueles produtos com uma relação abaixo da média. Tal sistema efetivamente recompensa (com uma maior alocação de mão-de-obra e de meios de produção) as empresas que fazem uso particularmente eficaz do trabalho social; portanto, as empresas deveriam ter um incentivo para empregar quaisquer métodos que lhes permitissem economizar em insumos de mão-de-obra (direta e indireta) por unidade de produção. [22] Um tal esquema seria necessário para romper com o padrão soviético tradicional, pelo qual as empresas miravam meramente na garantia de cotas de produção dos planos que fossem facilmente atingíveis, e não tinham interesse em melhorar sua própria eficiência.


4.4. Incapacidade de empregar contabilização do tempo de trabalho


Derivado do ponto acima, devemos considerar por que a ideia socialista clássica de usar o tempo de trabalho como uma unidade de contabilidade foi abandonada – um passo que, defendemos, tornava viciado qualquer cálculo econômico racional em nível micro. Demonstramos (Cottrell e Cockshott 1993a) que a ideia de usar a contabilidade do tempo de trabalho já havia sido abandonada pela influente Social-Democracia Alemã antes da Revolução Russa. Todavia, a ideia estava por aí para ser redescoberta por qualquer um que estivesse familiarizado com Marx ou Ricardo. O fato de que ele não tenha sido adotado seriamente na URSS, pensamos, deve refletir os interesses econômicos daqueles com poder e influência naquela sociedade. Suas implicações radicalmente igualitárias não teriam sido bem recebidas por funcionários cujos diferenciais de renda ficariam ameaçados.

Uma vez que não foi adotado o cálculo de tempo de trabalho, as pressões da classe trabalhadora por medidas igualitárias eram compradas por meio de subsídios em bens essenciais. Os subsídios eram a má consciência da desigualdade socialista. Uma de suas consequências era a depreciação dos salários abaixo do nível do tempo de trabalho necessário. Sob o capitalismo, [uma situação em que] empregadores pagarem por apenas uma parte do trabalho de seus empregados, ao passo em que paguem integralmente por todos os bens de capital, introduz um viés sistemático contra a introdução de tecnologias de economia de trabalho, que variam inversamente com o nível dos salários. Baixos salários incentivam o desperdício de força de trabalho com tecnologias como as sweatshops. Os efeitos na URSS foram semelhantes. Com a força de trabalho barata, era racional para as empresas acumular mão-de-obra e prestar pouca atenção aos níveis de pessoal. O uso de valores-trabalho marxianos para pagamento e cálculo econômico, pelo contrário, teria introduzido uma forte pressão para se economizar no uso de mão de obra. Uma fábrica que tivesse que cumprir suas metas de produção dentro de um orçamento pré-determinado em força de trabalho, segundo o qual uma hora de vida ou uma hora de trabalho incorporado fossem custeadas de maneira equivalente, tenderia a estar alerta à possibilidade de substituir o trabalho por maquinário. [23]


4.5. O estado da informática e das tecnologias de telecomunicações


Como observamos acima, argumentamos pela viabilidade de nossas propostas de planejamento por referência à última geração de supercomputadores ocidentais [em 1993], e não há dúvida de que em comparação a tecnologia computacional disponível para os soviéticos era primitiva. Goodman e McHenry (1986: 329) descrevem o estado do setor de informática soviética em meados da década de 1980, observando que o atraso substancial em relação ao Ocidente era em parte o resultado do isolamento dessa indústria: “nenhuma comunidade de computação, incluindo a dos Estados Unidos, seria capaz de se mover no seu ritmo atual se tivesse seus contatos com o resto do mundo severamente restringidos”.

No entanto, embora tenhamos achado conveniente adotar os supercomputadores atuais [de 1993] como referência em nossos cálculos, argumentamos em outro lugar (Cockshott e Cottrell, 1989, apêndice) que o mesmo objetivo poderia ser alcançado – mais lentamente, mas ainda em uma escala de tempo útil para fins de planejamento prático – por meio de uma rede distribuída de computadores pessoais no nível empresarial, em comunicação com um computador central relativamente modesto. [24] Sob esta perspectiva, talvez a mais séria limitação técnica no caso soviético fosse o atraso do sistema de telecomunicações. Goodman e McHenry (1986) chamam atenção para a lentidão e falta de confiabilidade do sistema telefônico soviético, e os problemas para se encontrar links que fossem bons o suficiente para a transmissão de dados. Eles também citam a impressionante estatística de que mesmo em 1985, apenas 23% das famílias urbanas possuíam telefones.

Mais uma vez, entretanto, não queremos enfatizar demais a tecnologia. Os sistemas de informação econômica desenvolvidos por Stafford Beer no Chile de Allende (descritos em Beer, 1975) demonstram o que poderia ser realizado com recursos modestos, dada a vontade política e clareza teórica sobre os objetivos do sistema. Se os soviéticos tivessem sido igualmente claros quanto ao que esperavam conseguir através da informatização do planejamento, então mesmo que fosse impossível implementar tudo o que esperavam a princípio, teriam estado em posição para explorar os novos desenvolvimentos em tecnologias de informática e comunicações conforme eles fossem aparecendo. Na verdade, é claro, parece que os economistas soviéticos – ou pelo menos aqueles que eram ouvidos pela liderança política sob Gorbachev – estavam pouco interessados ​​em desenvolver os tipos de algoritmos e sistemas computadorizados que discutimos. Em meados da década de 1980, eles aparentemente já haviam perdido sua crença no potencial de um planejamento eficiente e muitos já haviam pulado no trem da moda ressurgente da economia de livre-mercado, representada pelas administrações de Reagan e Thatcher.


5. Conclusão


Uma pergunta pode surgir ao leitor dos argumentos acima: será que não estamos sendo extremamente arrogantes em supor que teríamos conseguido criar um esquema adequado para o planejamento central onde as “melhores mentes” da URSS falharam durante um período de, digamos, 25 anos? (Ou seja, a partir de 1960, mais ou menos, quando surgiu a questão da reforma do sistema de planejamento, até o final dos anos 1980, quando toda essa concepção foi abandonada em favor de uma transição para o mercado.) Nossa resposta é que, na verdade, não: a questão não é que nos consideramos mais inteligentes do que os economistas soviéticos, mas que não estamos operando sob as mesmas restrições. As duas principais contribuições intelectuais em nosso esquema são (a) um marxismo crítico e não dogmático e (b) a Ciência da Computação moderna. Seria muito difícil combiná-las na antiga URSS, onde o “marxismo” tantas vezes desempenhava uma função obscurantista e anticientífica. Nossos pontos de vista provavelmente teriam sido considerados desvios pelos guardiões da ortodoxia – e, ao mesmo tempo, ingenuamente socialistas por aqueles cuja visão do socialismo foi formada nos cínicos anos de Brejnev, e para quem o marxismo era, portanto, nada além de um dogma fossilizado.

Um outro ponto merece pelo menos uma breve menção em conclusão. O material da seção 3 acima refere-se apenas à viabilidade técnica de nossas propostas de planejamento; nas condições atuais, a viabilidade política é uma questão completamente diferente. Não obstante, temos duas observações a fazer sobre isso. Em primeiro lugar, embora careça de uma articulação política clara no momento, permanece uma reserva de apoio popular a alguma forma de socialismo na Rússia, de acordo com a pesquisa citada em Kotz (1992). [25] Em segundo lugar, gostaríamos de salientar que, embora nossas propostas estejam mais distantes da sabedoria convencional atual do que as propostas dos socialistas de mercado, no que tange à viabilidade de implementação, os socialistas de mercado estão essencialmente no mesmo barco que nós: se os principais meios de produção são privatizados, o socialismo de qualquer espécie está fora da agenda, e provavelmente por um longo período histórico.

Quaisquer que sejam, no futuro visível, as perspectivas para a implementação do tipo de esquema de planejamento que delineamos, esperamos que esses argumentos provoquem uma nova reconsideração do debate sobre o cálculo socialista. Esperamos ter demonstrado que o colapso do sistema soviético não pode por si só ser tomado como prova da validade da argumentação austríaca, ou de qualquer outra, em nome da impossibilidade geral de um planejamento socialista efetivo.


Notas


[1] Ver também Murrell (1983), Temkin (1989).

[2] Tem havido algumas argumentações recentes em favor do socialismo de mercado (e.g. Miller, 1989; Bardhan e Roemer, 1992), mas na medida em que tais argumentos admitem os argumentos contra o planejamento central, eles não representam exemplos contrários aqui. Não temos espaço para considerar esses escritos de maneira extensa neste artigo, mas nos parece que o “socialismo de mercado” se trata de um efeito colateral da desintegração das economias socialistas, com um prazo de vida potencialmente bem curto. [No original, “com uma meia vida que pode ser medida em meses”] A instabilidade do socialismo de mercado é debatida com bases teóricas por Scott Arnold (1987).

[3] Um terceiro tipo de argumentação também é relevante – uma réplica de ponto por ponto contra os argumentos anti-planejamento dos austríacos. Oferecemos isso em outra obra, em Cottrell e Cockshott (1993a).

[3b] Método utilizado na administração da produção, também conhecido como “entrada-e-saída”, “entradas-e-saídas” e “input-output”, ou “matriz de Leontief” (segundo o nome de um dos principais desenvolvedores desse método, Wassily Leontief) e que se baseia em tabelas com as quantidades necessárias dos insumos utilizados no processo de produção de cada bem produzido em uma economia. (N. do M.)

[4] Com uma reserva: se, digamos, o plano central solicitar que a empresa A forneça o bem intermediário x para a empresa B, onde esse bem será usado na produção de algum outro bem y, e se os planejadores informarem as empresas A e B desse fato, não há escopo para a discussão “horizontal” entre as duas empresas sobre a especificação precisa do projeto de x? (Ou seja, mesmo na ausência de relações de mercado entre A e B.)

[5] Esse ponto – um tema básico da obra de Strumilin atravessando praticamente meio século – está expresso de maneira particularmente clara em (Strumilin, 1977: 136–7)

[6] Com preços de equilíbrio que “limpem” o mercado, evidentemente, os bens irão para aquelas pessoas que estiverem dispostas a pagar mais por eles. Dada uma distribuição de renda igualitária, não vemos objeção a isso.

[7] Naturalmente, um elemento de previsão de demanda também se faz necessário neste ponto: as proporções atuais fornecem um guia útil, ao invés de uma regra completamente mecânica. [N. do M.: E para esse elemento de previsão de demanda (que evidentemente não se pode pretender ser completamente preciso) as técnicas e mecanismos mais recentes com base em avaliações e retroalimentação de dados, principalmente com o avanço na utilização de big data e aprendizado de máquina (machine learning) podem oferecer muitas possibilidades, como indicado por Evgeny Morozov em seu artigo recente (2019) na New Left Review].

[8] Um algoritmo alternativo que leva em consideração os estoques de meios de produção específicos é apresentado em Cockshott (1990).

[9] Em suas reflexões posteriores sobre o debate do cálculo socialista, Lange (1967) parece sugerir que um plano otimizado poderia ser pré-calculado por computador, sem a necessidade do processo de tentativa e erro em tempo real que ele imaginou em 1938. Na medida em que isso exigiria que todas as funções de demanda dos consumidores fossem conhecidas antecipadamente, [a visão de Lange de calculo computadorizado de um plano otimizado no sentido do equilíbrio Walrasiano] nos parece implausível. [N. do M.: em um artigo posterior, Cockshott e Cottrell citam o trabalho de Deng e Huang (2006, “On the complexity of market equilibria with maximum social welfare” – “Sobre a complexidade do equilíbrio de mercado com bem-estar social máximo”, Information Processing Letters 97(1), 4–11.) que, nos marcos da Teoria da Complexidade Computacional, demonstraram que o equilíbrio, nos termos neoclássicos do equilíbrio walrasiano, como imaginado por Lange, é um problema “NP-difícil”, o que, para um problema que envolve milhões de entradas, se torna na prática inviável de solução. Cockshott e Cottrell comentam:

“Mas essa faca corta dos dois lados: Por um lado, isso demonstra que nenhum computador de planejamento poderia resolver o problema neoclássico do equilíbrio econômico. Por outro lado, também demonstra que nenhum conjunto de milhões de indivíduos interagindo através do mercado poderia resolvê-lo, tampouco. Para a teoria econômica neoclássica, o número de restrições sobre o equilíbrio será proporcional, entre outras coisas, ao número de atores econômicos n. O recurso computacional constituído pelos atores será proporcional a n, mas se o problema é NP-difícil, então o custo computacional crescerá como en – os recursos computacionais crescem de maneira linear, os custos computacionais crescem de maneira exponencial. Isso significa que uma economia de mercado [considerada como um grande e único computador para realizar o cálculo econômico] nunca poderia ter recursos computacionais suficientes para encontrar seu próprio equilíbrio mecânico.

Disso segue-se que o problema de encontrar o equilíbrio neoclássico é uma miragem. Nenhum sistema de planejamento seria capaz de descobri-lo, mas o mercado também não o seria. O problema neoclássico do equilíbrio geral representa de maneira deturpada o que as economias capitalistas realmente fazem e também estabelece um objetivo impossível para o planejamento socialista.”

Contra a noção de “equilíbrio mecânico” utilizada pelos neoclássicos para descrever a Economia desde Walras (e reproduzida por Lange), Cockshott e Cottrell passam a defender uma visão baseada no “equilíbrio estatístico”/”equilíbrio estocástico” da Economia, como exposto por Ian Wright.]

[10] Como foi claramente entendido por Marx: “Em uma dada base de produtividade do trabalho, a produção de uma certa quantidade de artigos em cada esfera particular de produção requer uma quantidade definida de tempo de trabalho social; embora essa proporção varie entre as diferentes esferas de produção e não tenha relação interna com a utilidade desses artigos ou com a natureza especial de seus valores de uso”. (1972: 186-7)

[11] No ano de 2018 o supercomputador mais poderoso do mundo naquele momento, o IBM Summit, era capaz de alcançar a velocidade de 122 PetaFlops, ou seja, realizar 122 quadrilhões de operações de ponto flutuante por segundo( 1.22 x 1017). Isso significa que a tarefa de inversão da “matriz de Leontief” por força bruta via eliminação Gaussiana para 107 produtos, que para a tecnologia disponível para Cockshott e Cottrell em 1993 ainda demoraria 1.5 milhões de anos (para um computador de mesa) ou mais de 30.000 anos (para um supercomputador), com a tecnologia disponível em 2018, poderia ser realizada em 8 x 105 segundos, ou seja, pouco mais de 9 dias de processamento. Isso significa que em 2018, do ponto de vista do processamento básico, se quiséssemos, nem precisaríamos buscar técnicas mais avançadas do que a força bruta computacional, como precisaram fazer Cockshott e Cottrell no artigo, para possibilitar a solução da inversa da matriz de insumos-produtos (que revela os valores-trabalho ou valores de mão de obra verticalmente integrados para cada bem produzido na economia). Mas, é claro, não seria necessário usarmos essa abordagem, pois com as técnicas usadas por Cockshott e Cottrell, como veremos mais à frente, a tarefa computacional hoje seria praticamente trivial mesmo para computadores de mesa. [N. do M.]

[12] Isso significa, por exemplo, que em uma economia com 10 milhões de produtos se assume que cada produto tenha em média 631 insumos diretos.

[13] Novamente, consideremos a tecnologia disponível em 2018, com o super-computador IBM Summit sendo o máximo de desempenho possível, como indicado na nota anterior. Nesse caso, apenas a aplicação dos métodos de Gauss-Seidel ou de Jacobi seria o suficiente para baixar o tempo de execução da inversão da matriz de Leontief para uma economia de 107 produtos para 0.16 segundos, claramente uma tarefa não apenas viável, mas trivial – e nem precisaríamos de buscar outras técnicas, como fizeram Cockshott e Cottrell em 1993. Claro que para um computador de mesa equipado com um processador Intel Core i7 7500U, capaz de lidar com apenas 49 milhões de instruções por segundo, esta ainda seria uma tarefa completamente inviável – estaríamos falando de algo como 5 x 108 segundos, ou seja, em torno de 15 anos. Para o cálculo em computadores domésticos, ainda precisaríamos avançar para a utilização de outras técnicas, como fizeram Cockshott e Cottrell. [N. do M.]

[14] Em outro artigo posterior, Cockshott e Cottrell apresentam uma terceira abordagem, onde o processo iterativo roda sobre uma representação da matriz de insumos e produtos na forma de uma estrutura de dados do tipo lista encadeada, com a qual reduzem ainda mais o tempo de execução, para nmr, onde n é o número de produtos, m é o número médio de insumos diretos para cada produto e r é o número de iterações necessárias para produzir uma aproximação satisfatória. Utilizando essa técnica, novamente com a tecnologia de 2018, temos um tempo de execução do processamento ridiculamente pequeno no IBM Summit para o procedimento iterativo de inversão da matriz (agora na forma de listas encadeadas): 0.000006 segundos para o cálculo dos valores-trabalho de todos os produtos para uma economia de 10 milhões de produtos. Se utilizarmos um computador de mesa como aquele indicado nas notas acima, e utilizarmos esta mesma técnica, a tarefa de cálculo dos valores-trabalho para todos os 10 milhões de produtos, do exemplo da União Soviética, temos um processamento em 5 x 103 segundos, ou seja, em torno de 1 hora e 15 minutos de processamento. Se acima os autores mostravam que esse processamento já era uma tarefa viável para os super-computadores da sua época, aqui podemos ver que hoje ela é viável para qualquer computador doméstico atual (e, em breve, para qualquer celular). [N. do M.]

[15] Sigla em russo para “Comitê Estatal de Planejamento”, era o departamento responsável por estabelecer os planos quinquenais para o desenvolvimento da economia soviética. [N. do M.]

[16] Vale ressaltar que Stalin (1952) se sentiu obrigado a contestar a ideia de que o objetivo básico da atividade econômica no socialismo seria a própria produção (ver suas críticas ao camarada Yaroshenko). Tal como acontece com a sua crítica aos “excessos” da coletivização forçada na agricultura em “Atordoados com o sucesso” (“Dizzy with success”, 1930, reimpresso em Stalin, 1955), este pode ser um caso de Stalin atacando tardiamente uma visão ou prática que havia encorajado anteriormente.

[17] Como discutido na introdução de Smolinski (1977); ver também Nove (1977, capítulo 12).

[18] Para as limitações no tamanho dos sistemas de insumos-e-produtos com os quais os planejadores se consideravam capazes de lidar em vários momentos, ver Treml (1967), Ellman (1971), Yun (1988), Treml (1989).

[19] Sigla em russo para “Suprimentos Estatais da URSS”, cuidava da alocação de muitos recursos que a Gosplan não administrava, mas em um nível diferente de administração da produção (muitas vezes com técnicas diferentes). [N. do M.]

[20] Abreviação consagrada internacionalmente para “Burô Político”, o comitê central do Partido Comunista. [N. do M.]

[21] Além desse tipo de problema, Kushnirsky aponta a má qualidade dos estudos da tecnologia de planejamento existente realizados nos institutos de pesquisa no contexto do projeto ASPR. Ele descobriu que as explicações produzidas nos institutos não eram passíveis de apresentação algorítmica e “era difícil determinar o propósito desses materiais” (1982: 124).

[22] é importante ressaltar que um tal sistema de incentivos favoreceria a automação de mão de obra, e a diminuição do tempo social necessário para a produção dos itens necessários à sociedade, trabalhando, assim, na direção de uma sociedade que poderia funcionar com semanas de trabalho mais curtas, liberando mais horas de tempo livre à sua população, trabalhando para realizar as promessas do socialismo – ver textos como ‘Lingerie Egípcia e o Futuro Robô‘, ‘Precisamos Dominá-la‘, ‘Quatro Futuros‘, ‘Tecnologia e Ecologia Como Apocalipse e Utopia‘, ‘Comunismo Como Futuro Automatizado de Igualdade e Abundância‘, de Peter Frase; ‘Tecnologia e Estratégia Socialista‘, de Paul Heideman; ‘Robôs e Inteligência Artificial: Utopia ou Distopia?‘, de Michael Roberts; ‘Os Robôs Vão Tomar Seu Emprego?‘ de Nick Srnicek & Alex Williams; ‘Rumo a Uma Sociedade Pós-Trabalho‘, de David Frayne; ‘Robôs, Crescimento e Desigualdade‘, de Andrew Berg, Edward F. Buffie, e Luis-Felipe Zanna; ‘Automação e o “Fim do Trabalho” na Mídia Internacional Dominante‘;. [N. do M.]

[23] Ver (Marx,1867 [1976]: 515–7), e para mais discussão sobre esse ponto, Cockshott and Cottrell (1993).

[24] Comparar com as tecnologias de comunicações disponíveis atualmente (2022) é até risível. Vivemos em um mundo de serviços digitais e bancos de dados gigantescos, acessíveis de qualquer lugar com uma conexão de internet. Exemplos de sistemas distribuídos em escala global interligados através dessa infraestrutura de comunicações, e que envolvem estruturas de processamento desse tipo não faltam: o Google, um mecanismo de busca centralizado capaz de reunir e indexar cada página na internet e disponibilizar tudo isso para todo o mundo segundo os mais diversos critérios de busca; operadoras de cartão de crédito como Visa e MasterCard, capazes de utilizar cartões magnéticos e registros digitalizados para oferecer os serviços de compra e venda à crédito em praticamente qualquer loja física ou virtual no planeta; o mastodonte das lojas virtuais Amazon, cuja logística global garante uma agilidade gigantesca no despacho dos materiais e no gerenciamento de seus armazéns de estoque; o Uber, capaz de usar a localização por satélite dos celulares para calcular as melhores rotas, custos, tempo de corrida e os motoristas mais próximos para realizá-las; as cadeias logísticas globais dos sistemas de produção just-in-time, que estabelecem uma coordenação muito mais interconectada entre os processos dos vários nós na cadeia produtiva (mesmo que sejam representados por empresas específicas e sem conexão de propriedade entre si), eliminando a necessidade de estoques e transformando as antigas fábricas em unidades que na verdade se espalham por diversas empresas e fornecedores diferentes; o planejamento global centralizado de qualquer empresa transnacional; os centros monolíticos de processamento e de armazenamento de dados dos Googles e Facebooks da vida; para não falar nos sistemas de vigilância generalizada por agências como a NSA dos EUA. Perto dos sistemas globais que conhecemos hoje, a humilde proposta de rede necessária para o processamento da alocação dos recursos produtivos como proposto por Cockshott e Cottrell parece quase uma brincadeira infantil. [N. do M.]

[25] Em maio de 1991, uma pesquisa realizada na Rússia mostrava 12% dos entrevistados a favor de “uma sociedade socialista nos moldes que tínhamos no passado”, mais 43% a favor de “um tipo mais democrático de socialismo”. Apenas 20% eram a favor de “uma forma de capitalismo de livre-mercado, como a encontrada nos EUA ou na Alemanha”.


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