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Nem tudo passa: a amarga sinfonia da Argentina

Por Wesley Sousa


(BBC Imagens)


A grande mídia hegemônica repercute a eleição presidencial na Argentina a associando como uma nova etapa de como “lidar com a crise econômica”. As “mudanças radicais” do presidente eleito, no entanto, nada mais são do que uma radicalização do que Maurício Macri (2015-2019) tinha encaminhado rumo ao desmonte do estado em anos anteriores: redução de gastos públicos e a entrega do patrimônio estatal às privatizações.


O aparecimento de uma excêntrica figura no contexto argentino, que alguns dizem ser similar ao Brasil (no caso da figura caquética de Bolsonaro), mostrou que no “espaço” político de Javier Milei, entretanto, não havia tanta surpresa assim: ele era o único concorrente da coalizão “A Liberdade Avança”. Já o “peronismo” (uma nostalgia neodesenvolvimentista), venceu com amplitude o candidato “chapa branca” Sergio Massa (até então Ministro da Economia) – um centrista pragmático apoiado pela ex-presidente Cristina Kirchner. Por sua vez, Javier Milei era o candidato reacionário que defendeu o rompimento comercial com o Brasil e a China (pelo “populismo de Lula” e “pelo comunismo”). Ao mesmo tempo, propôs um alinhamento com os Estados Unidos e Israel, apontados por ele como símbolos do “mundo livre”, idolatrando facínoras como Ronald Reagan (1981-1989) e Margareth Tatcher (1979-1990), tratando-os como “ídolos”.


No caso da eleição presidencial recente, essa seguiu uma tendência das últimas eleições na América Latina: elas foram decididas por “votos defensivos” e radicalizados na crise, como Chile, Colômbia, Brasil e Equador, etc. De um lado, a população se dividiu entre uma opção de extrema-direita defensora de Estado mínimo e o banditismo do mercado e a desestruturação de arranjos públicos, e, de outro lado, uma tendência “progressista”, reticente em seu futuro, mas defensora de um Estado com alguma distribuição de riqueza, ao passo que subserviente ao mercado. Em outros termos, duas tendências em que estão cada vez mais submersas à tirania do capitalismo. (Este é apenas um breve esboço que faço da situação referente às candidaturas majoritárias.)


A extensa crise econômica se arrasta no país hermano por décadas. O que resultou na “jornada” de Milei é que havia duas “alternativas” a se votar: uma era de manter a mesma política, que não mostrava resultados satisfatórios, e a outra era eleger qualquer coisa distinta (embora ligada à ideologia dominante). A “coisa distinta” seria aquela que fosse contra toda ingerência político-econômica do país. No que consegui ler e acompanhar brevemente de periódicos e analistas locais, o “perfil eleitoral” de Milei aponta uma significativa adesão da juventude e a massiva adesão de eleitores em províncias do interior do país. Tal espaço político só poderia ganhar votos irritados e de descontentamento contra um governo de ajuste, crise social e uma inflação histórica para os parâmetros das últimas três décadas. O peronismo, portanto, abriu espaço para a direita alucinada e que esteve catalisada na figura de Milei. Em resumo, onde a esquerda faz o papel de defensora da ordem do capital, atuando como caseiro de uma fazenda devastada, qualquer comprador a leva por alguns trocados...


Este descontentamento tem, sem dúvidas, algumas bases verificáveis. O fracasso dos últimos dois governos se pode comprovar em números. Desde que o FMI voltou à Argentina em 2018, a pobreza aumentou drasticamente dos 27,3% aos 40,1% na última pesquisa. As políticas do FMI aplicadas primeiro por Macri, depois por Martín Guzmán e agora por Sérgio Massa (com apoio de Cristina Kirchner), são uma máquina de gerar pobreza. Os salários de todos os trabalhadores despencam, com especial gravidade para os sem carteira assinada, que perderam 46,7% do seu poder aquisitivo desde 2016. No entanto, a situação da classe trabalhadora é desigual, e isso se expressou também na fragmentação dos apoios políticos a um ou outro lado nas eleições. De modo similar, conforme pode-se perceber, é o caso do lulismo no Brasil, cuja plataforma, guardada devidas proporções e motivações, anos depois arregimentou-se ao “golpe parlamentar” de 2016; por fim, abrindo espaços para a caminhada de Bolsonaro ao Planalto Central.


Na análise do economista marxista britânico Michael Roberts, no artigo “Argentina election: from peso to dollar?”, há o argumento de que uma das principais questões a ser respondida na política econômica é o porquê de o país ter entrado em uma espiral inflacionária prolongada e que é intercalada com crises da dívida pública e sucessivas recessões. Segundo ele, 


Parte da resposta é que a Argentina nunca se industrializou como o Leste Asiático, ou mesmo o Brasil. Os governos peronistas não conseguiram fazer com que os capitalistas argentinos investissem em setores produtivos, apesar dos abundantes recursos naturais da Argentina e de uma força de trabalho educada. O número de empregos formais no setor privado mal cresceu em mais de uma década, e mais da metade dos argentinos empregados trabalham fora dos livros ou para o Estado. Em vez disso, havia dependência da agricultura que fornecia alimentos baratos para o ‘Norte Global’. A agricultura está sujeita aos caprichos do clima e dominada por algumas multinacionais (tradução livre).


A crise da política econômica da Argentina não é algo simples, e nem se reduz aos elementos puramente internos, muito menos comparativos com o Brasil. Para fundamentar rapidamente, no interessante e profundo texto publicado no site “A terra é redonda”, redigido por Claudio Katz, professor de economia na Universidade de Buenos Aires, ele escreve o seguinte:


A Argentina teve uma industrialização precoce, com recursos que o Estado reciclou da renda agrária. Mas nunca conseguiu formar uma estrutura industrial autossustentável e competitiva. O setor não gera as divisas necessárias para sua própria continuidade. Depende das importações, que o Estado garante através de subsídios indiretos, para uma atividade com elevada concentração em poucos setores, grande predomínio estrangeiro e baixa integração de componentes locais” (“Os enigmas da Argentina”).


Em linhas gerais, é crível afirmar que o caminho adotado pela Argentina é a de um país que tem como singularidade política um conteúdo que vinha sendo aquele da persistência do “peronismo” como estrutura política dominante. Desde a redemocratização do país, 8 dos 12 presidentes estavam alinhados ao “peronismo”. A política peronista, neste sentido, mantém uma grande influência na cultura, na identidade política, bem como é ressonante em força eleitoral e na rede de poder institucional. O curioso nisso é que o guarda-chuva peronista atrai tanto figuras de centro-esquerda, pragmáticos centristas, até aqueles não-liberais vinculados mais à direita.


No cenário econômico, a sucessão de fracassos reafirma a instabilidade que anteriormente afetou as ditaduras e os governantes civis e militares. Seja pelo lado “progressista”, seja pelo lado reacionário, tanto um quanto o outro se redundam em desgoverno, cujo núcleo tem sido a caraterística permanente de problemas sistêmicos – crises, aliás, prolongadas sob a batuta do FMI e do Banco Mundial. Ainda segundo Roberts,


o país enfrenta enormes obrigações de reembolso ao FMI e aos detentores de títulos estrangeiros depois que o programa de 44 bilhões de dólares do FMI usado para resgatar o anterior governo de direita de Macri evaporou-se em déficits crescentes do governo e na fuga de capital para o exterior” (tradução livre).


Devido a tamanha inconsistência contínua que põe a corroer os estratos sociais e as administrações das três formações políticas presentes (esquerda, peronistas e a direita), nenhuma delas conseguiu satisfazer seus eleitores ou suas referências dos grupos dominantes. No meio de uma crise internacional, que arrasta populações e povos mundo adentro à precarização, violência e na pobreza, o capitalismo busca à fórceps a hegemonia intocável, nem que para isso precise de figuras exóticas para fazer o trabalho de porteiro do inferno.


Relembro aqui de um dilema conhecido advindo do liberalismo: entre uma democracia “socialista” e uma ditadura liberal, sempre será “melhor”, para seus sicários, a segunda opção. Por isso, vários liberais apoiaram, e continuam a apoiar, as diversas ditaduras militares ao redor do mundo, como foi o caso do Chile, Nicarágua, El Salvador, etc. Mas no caso de Milei não se trata apenas de cinismo ou de dois pesos e duas medidas. Entre todas coalizões de direita e reacionária na argentina, em suas propostas coexistem uma tensão entre o seu “anarquismo” e o seu “direito” visando uma rejeição mais ou menos explícita da democracia formal (ainda que dependa dela), associada aos odiados políticos tradicionais. O projeto de Milei propõe privatizar o conjunto da vida social, até “as ruas”, que, sendo públicas, “cospem socialismo”, ou as prisões. Durante o derradeiro debate da eleição, defendeu o fechamento do Banco Central, o fim do Peso argentino e a adoção do dólar estadunidense como moeda, bem como reafirmou seus “princípios” econômicos, embora tenha se esquivado de todas as perguntas objetivas sobre como pretende efetivá-los na prática. O novo presidente se comprometeu a apagar a história de “Verdade, memória e justiça”, marco que colocou a Argentina à frente na luta pela reparação histórica no continente ao punir os responsáveis pelo assassinato e desaparecimento de mais de 30 mil pessoas durante a ditadura militar dos anos 70.


Em suma, vejo uma grande ingenuidade e visão míope de sociedade de setores de esquerda, principalmente na América do Sul, em ficar chocada com o óbvio. Dito mais precisamente, a “gestão” da crise do capitalismo por ela se volta contra a si quando o refúgio da reação será sempre o pior. E exemplos para isso não faltam. Ao redor do globo, a crise do capital joga na esfera da subjetividade excentricidades de um futuro nebuloso e que, por esta razão, o forte apego à catástrofe se torna uma regra do jogo; agora não se trata de uma “anomalia” social, como se percebe. Mas, se a luta de classes ultrapassa devaneios morais, será pelo poder vigente que ela também se expressa. Neste caso, não terá democracia ou instituições benevolentes que trabalhem como “freio racional” da politicidade em pleno vigor. O fracasso da política de “gerir a crise” faz com que uma crise de gestão se torne um fardo imenso, justamente por ressurgir daí figuras que surfam na onda de uma insatisfação, e arrebatam  jovens e desesperançados (embora o máximo que se extraia é o escancaramento da podridão que o capital engendra na dinâmica da vida política).


Numa linguagem filosófica, diria que a percepção dos vultos do passado soam agora como aquilo que não escapa ao “destino”; o heroísmo promulgado em certos indivíduos, por mais bizarros que sejam, joga uma mitologia de que a humanidade sempre se vê assolada pela expectativa de grandes catástrofes iminentes. Uma das características diferenciais mais profundas da ideia moderna de “crise” é a consciência de que estamos numa espécie de marcha irrefreável da História, cujo desfecho é a sucção da subjetividade tornada em combustível de autodestruição. A adesão social e política a tais figuras (como o caso de Milei e tantos outros) é parte condicionante da ausência de perspectivas diante da forma de vida atual que nelas se sintetizam. O que tenho visto em inúmeras análises é que os pressupostos estão limitados sempre na ideia de “boa política” como resolução de problemas mais profundos. Aí se vê o aprofundamento de uma crise que remonta à percepção da fratura social vindoura sem precedentes.


Por um lado, em condições muito desiguais contra o poder político e econômico, o espaço da atuação política pode ter alguma base objetiva. Em termos concretos: uma esquerda que tenha como horizonte a transformação radical do mundo a aposta será no caminho contrário à institucionalidade, ou seja, não na “democracia”, mas visando enfrentar a tragédia continuada da política burguesa. Contra a repressão, os planos de “ajuste” que abrem o caminho para a direita se manter e ampliar seu poderio, e o silenciamento de alguns por não denunciar o atual oficialismo imperialista, nos mostra que o caminho do “mal menor” é desastroso em inúmeros contextos, e somente permitiu a dissuasão da esquerda. Este segundo cenário – o fracasso do “mal menor” – foi o que se concretizou na Argentina. O resultado expressivo de Milei na “segunda volta” é conclusivo.


Por outro, diria que é possível assegurar com relativo grau de segurança que nem todas as propostas absurdas de Milei irão se concretizar (apesar de que isso não ameniza tanto os ânimos). Após o término da eleição argentina pude ler que o novo presidente eventualmente “não terminará o mandato”. Entretanto, vale lembrar às mentes mais “otimistas” e cínicas que o mesmo dizíamos a respeito de Bolsonaro. E, porém, conforme certa vez escreveu o historiador holandês Johan Huizinga: “hoje em dia a noção de que nos encontramos em meio a uma grave crise civilizacional, potencialmente destruidora, penetra em amplas camadas da sociedade” (Nas sombras do amanhã, 1935). Agora, na capital Buenos Aires, há mais uma nota arranhada da maldita sinfonia no espetáculo destrutivo da burguesia. Alguns dizem que “vai passar”, mas, ao que parece, nem tanto.


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