top of page

O Congresso e o flerte autocrático: o futuro do Brasil como uma conversa de compadres


A forma política que tentou equacionar a luta de classes no Brasil a partir do fim dos anos 1980 tem sofrido mudanças significativas. O chamado presidencialismo de coalizão, ao mesmo tempo em que se reafirma e prevalece como modelo, também aponta para uma transformação. Há sinais de esgotamento e de transmutação. Basta ver o exemplo do Poder Judiciário, que inaugurou uma imensa cruzada moral contra a corrupção através da Operação Lava-Jato, a qual abalou significativamente a vida da República. Iniciada por arrivistas em busca de fama no grotão chamado Curitiba: Moro, Dallagnol e seus cupinchas tentaram se lançar ao centro do poder no país, conquistando até mesmo ministros do STF. Explorando a trilha de lama deixada pelos governos petistas, seu principal feito foi prender Lula, tirando-o da disputa eleitoral de 2018. Mas a alegria durou pouco. Moro caiu em desgraça por ter se associado ao governo Bolsonaro. Além disso, a confabulação entre juiz e promotor foi descoberta e o STF, que hoje se vê sem forças materiais para encarar Bolsonaro, livrou Lula das condenações, no que parece ser uma tentativa desesperada de equilibrar o jogo eleitoral através da soltura do único candidato que pode vencer o imbecil capitão.

Malfadada a aventura jurídica do bando de rábulas, o Legislativo ganhou protagonismo. Se antes eram os “políticos corruptos”, alvos dos justiceiros dos tribunais, agora a festa parlamentar, pouco pudica, acontece à luz do sol. Os dias felizes advém de um gigantesco esquema de repasses de verbas pelo Poder Executivo chamado orçamento secreto. Evidentemente, uma pilantragem tão arrojada e de tal monta só poderia ter saído da cabeça de um dos nossos gorilas, o general Luiz Eduardo Ramos – então chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República.

Depois de mais de um ano de governo, tentando cumprir suas promessas de bufão, Bolsonaro evitava adotar a prática de loteamento de cargos e ministérios para os partidos – até então, o grande sustentáculo do modelo presidencialista brasileiro. Sem muitas perspectivas de efetivar um golpe de Estado, diante da pandemia, isolado politicamente, sob ameaças de impeachment e de paralisação de seu governo, a virada dessa situação se deu com a eleição dos candidatos bolsonaristas à presidência da Câmara – Arthur Lira (PP) – e do Senado – Rodrigo Pacheco (PSD). Claro que foi preciso ceder um dos mais importantes ministérios, a Casa Civil, ao notório pilantra Ciro Nogueira (PP). Entretanto, Bolsonaro conseguiu manter as aparências através das emendas completamente obscuras de um orçamento paralelo que compra a base parlamentar e que tem garantido sua sustentação.

Lira tornou-se um verdadeiro administrador dessa montanha de dinheiro. De um sabujo do governo, passou a ser reconhecido como uma espécie de presidente de facto da República. O sujeito concentra, segundo nosso jornalismo crítico – ou quase crítico –, um poder nunca antes visto nas mãos de um presidente da Câmara. Desde 2019, o Poder Legislativo controlou R$ 115 bilhões em emendas parlamentares, um montante três vezes maior que os R$ 33 bilhões dos quatro anos anteriores, além de que, pela primeira vez em dez anos, o número de projetos tornados leis, com assinatura de deputados e senadores, superou os de iniciativa do Poder Executivo.

Mesmo depois de todas as evidências de corrupção que envolvem tal orçamento – um clientelismo fundado na relação entre os deputados e suas bases estaduais e municipais –, o bem bolado segue a todo vapor. O orçamento secreto está sendo ampliado, enquanto as instituições da República – as quais dormem furiosamente –, como STF e TCU, limitam-se a proclamar que isso “fere a Constituição” por não respeitar a transparência na divisão das verbas. Sob a retórica de tornar o esquema mais transparente e atender aos clamores mais republicanos, a canalha parlamentar segue sua escalada, tornando a pilantragem orçamentária não tão transparente, mas cada dia mais institucionalizada.

A recondução de Lira ao cargo em 2023 é quase garantida, já que metade das emendas que tem sob seu poder só será liberada aos deputados depois que for reeleito. As últimas notícias são de que o Centrão de Pacheco e de Lira buscou – embora sem sucesso – embutir na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023 uma regra que tornaria as indicações das emendas do orçamento secreto praticamente impositivas.

Mas a questão vai além da simples farra com o vil metal. O poder político concentrado nas mãos dos chefes parlamentares têm mudado a prática da vida legislativa. Em maio de 2021, Arthur Lira bancou uma alteração regimental para diminuir o poder de veto da oposição. Além disso, a tramitação de matérias que interessam à cúpula do Congresso, que nos tempos de Eduardo Cunha durava cerca de 269 dias, com Lira caiu para 140 dias.

Agora a cúpula da Câmara se prepara para atacar o STF, o qual tem sido um incômodo para Bolsonaro e para certas ações do Legislativo. A ideia é um acinte aos doutores constitucionalistas, já que este covil de ladrões chamado Câmara de Deputados pretende elaborar uma PEC que permita aos parlamentares anularem decisões do STF sempre que elas não sejam unânimes e contenham uma alegada extrapolação dos “limites constitucionais”.

E Arthur Lira já tem pensado no futuro. Como já alertamos em outro editorial, Lira segue com sua campanha pela implantação do semipresidencialismo no país, agora com um “grupo de trabalho” composto por ilustrados uspianos. O objetivo do político alagoano é que o chefe da administração federal – que hoje é o presidente da República –, seja escolhido não mais pelo voto direto, mas sim pelo Congresso, na figura de um primeiro-ministro. O semipresidencialismo serviria para que o protagonismo da Câmara, arrancado de Bolsonaro, se tornasse permanente e oficial.

A proposta – que conta com apoio de gente como Michel Temer e Gilmar Mendes – tiraria o peso que tem o voto popular no presidente da República. Ela evitaria que tanto os chamados outsiders, como Bolsonaro, peguem o grande capital de surpresa nas eleições, como inviabilizaria também candidatos que contam com certa indisposição de setores da burguesia, mas que possuem imenso apoio popular capaz de elegê-los, tal como é o caso de Lula. O controle sobre o presidente seria muito mais fácil, evitando desgastantes impeachments. Além disso, diminuiria de vez o número de partidos, centralizaria a disputa e reduziria o clientelismo interiorano – essa reminiscência de um período em que a gestão do Estado era, predominantemente, um pacto entre as frações industriais e agrárias da classe dominante. Tudo isso garantiria maior agilidade e poder ao Legislativo, sendo possível atender melhor aos interesses impopulares do capital.

Um deputado preposto de Lira já foi discursar sobre a ideia semipresidencialista a uma simpática plateia da burguesia paulista na Fiesp. Os jornalões ainda não parecem ter encampado a proposta – talvez estejam ainda envergonhados de dizer alguma coisa depois da imensa contribuição que deram à criação do bolsonarismo nos últimos anos. Lira é astuto. Está lançando a ideia na véspera do furdunço geral que promete ser as eleições de 2022 e seus desdobramentos. É possível que sua intenção de garantir tanto poder ao Congresso venha a ser útil para a burguesia, para os militares emporcalhados pela sujeira que fizeram – não nos esqueçamos que foram os generais que forçaram a implementação do parlamentarismo em 1961 para tirar poder de João Goulart e frear suas reformas de base –, e útil até mesmo para Lula e para o PT – os quais pretendem fazer qualquer coisa pela ilusão da governabilidade. Se o governo presidencialista tem, no Brasil, uma clara orientação antipopular, o semipresidencialismo vem com o objetivo de ser uma saída ainda mais conservadora, ainda mais de conchavos – agora todos feitos exclusivamente no parlamento –, transformando o governo em uma verdadeira conversa de compadres, cada vez mais imune à pressão popular.

O que incomoda os parlamentares hoje é ter que lutar pelo voto de quatro em quatro anos, pois ainda que sob uma democracia capitalista, a “opinião popular” – mesmo com seu forte viés manipulatório – precisa ser levada em conta. Afinal, o que poderia explicar a atual flexibilização do chamado teto de gastos? O capital no Brasil lutou incessantemente nos últimos anos para implementar regras fiscais rígidas e ferir de morte os chamados gastos sociais. O Congresso acompanhou a euforia fiscalista dos jornalões que bradavam pelo “equilíbrio das contas públicas”. Entretanto, chegamos às vésperas das eleições com um exército de famélicos, desempregados e doentes – mas que, apesar de tudo, ainda votam. Só um economista da FGV ou um comentarista político poderia ser contra a ampliação dos auxílios sociais. Pois então, vemos Bolsonaro, Lira e até Paulo Guedes incitando o “furo” ao teto de gastos, declarando estado de emergência nacional – num espetacular drible à Constituição e às regras eleitorais – para aprovar a “PEC Kamikaze” – assim apelidada pelos fanáticos do fiscalismo. O Congresso também engavetou as reformas tributárias e administrativas – tão exigidas pela Febraban –, dando uma banana para as principais pautas da grande burguesia na reta final antes das eleições.

Pois na verdade, a luta de Arthur Lira – esteja ele consciente disso ou não – é parte da luta de importantes setores da burocracia do Estado brasileiro por mais autonomia em meio à dinâmica geral da luta de classes. Se por um lado desejam uma relativa independência do lobby de alguns setores da burguesia (ainda que, efetivamente, ao fim, trabalhem para a prevalência dos interesses do capital) – tal como prova a bolada que aprovaram para si mesmos de R$ 4,9 bilhões de fundo eleitoral, abocanhando mais recursos públicos e dependendo menos de recursos privados –, por outro lado, o semipresidencialismo aliviaria as pressões políticas advindas das necessidades da classe trabalhadora e de outras camadas populares.

Diante de tudo isso, a forte tradição autocrática do Brasil assombra os mais incautos como se fosse essa uma vocação nossa. Pior, os candidatos que se autointitulam democratas, que pretendem transformar a luta de classes em uma disputa eleitoral do ódio contra o amor, pouco se interessam pelo tema. O fato é que Bolsonaro – o Poder Executivo – já deixou claro que ainda não deu um golpe porque não possui força para isso. O STF – cérebro do Poder Judiciário –, em suas lamentações professorais, pode ter perdido a chance de ouro de realizar um tipo simpático de ditadura da toga através do lava-jatismo. O Congresso, no entanto, parece ainda ruminar uma saída para si. Não devemos duvidar que aquela alcova está ensaiando sua hora e sua vez. Quem sabe através de um “grande acordo nacional”? Quem sabe não seja a hora de uma frente ampla de pilantras que seduza essa burguesia voraz, mas que anda um tanto atônita?

É preciso não se iludir com doces sonhos democráticos e republicanos – os quais nem Montesquieu acreditava tanto assim. Há uma horda de trambiqueiros dispostos a tudo, a qualquer picaretagem para salvar seus cargos, seus orçamentos e seus negócios. É precisamente essa gente que aparenta estar completamente acima dos diferentes interesses das classes sociais, que parecem representar o bem comum, a ordem e toda essa fraseologia. Bolsonaro acirrou a bagunça que tomou a Nova República nos últimos anos. A classe trabalhadora ainda lambe suas feridas de décadas de derrota, enquanto a burocracia operária petista rifa o futuro em troca de cargos fugazes. Entre a burguesia, não despontou, até agora, nenhum setor capaz de unir toda a classe capitalista numa saída unívoca, ou capaz de encabeçar sozinho uma solução política independente dos demais setores burgueses. Entre os poderes da República, portanto, é possível que prevaleça o salve-se-quem-puder, a imposição do mais forte e os acordos covardes de gabinete. Os digníssimos democratas de hoje, amanhã podem estar negociando anistias e silêncios com generais, ministros e parlamentares. E é em meio a tudo isso que, talvez, o Congresso planeje finalmente dar sua contribuição derradeira na história da autocracia burguesa no Brasil. Aquele que sobreviver verá.

bottom of page